Vargas Llosa diante de um jovem romancista

Por Rafael Narbona

Mario Vargas Llosa. Foto: Samuel Sánchez.


 
Mario Vargas Llosa não é apenas um ficcionista. Ele também é um excelente crítico literário. Seus ensaios sobre Tirante, o branco, Gabriel García Márquez ou Gustave Flaubert são peças que por si só justificariam sua fama como escritor. O barulho gerado por suas visões políticas está provocando o esquecimento de alguns de seu status de clássico vivo. Algo semelhante acontece com Javier Marías ou Arturo Pérez-Reverte, dois autores com uma obra de extraordinário mérito, mas cuja falta de inibição na hora de opinar carreou muita antipatia.
 
Vargas Llosa é acusado de reacionário, mas acho o que é mais correto dizer que é um liberal. Ele não é nostálgico do passado, nem se opõe à eutanásia, ao aborto ou ao casamento igualitário. Não compartilho de muitas de suas opiniões — principalmente de sua fé cega na bondade do mercado, embora também não acredite na bondade cega do Estado, um ogro pouco filantrópico, para parodiar a famosa expressão de Octavio Paz —, mas acusá-lo de reacionário me parece injusto e falso.
 
Em 1997, o escritor peruano publicou um ensaio curto e esclarecedor sobre como escrever um romance: Cartas a um jovem romancista.¹ Em vez de adotar um tom professoral, recorreu a um ardil que efetivamente evitava o risco do academicismo. Criou — é o que fazem os demiurgos, quero dizer, os escritores — um jovem aspirante a romancista que lhe pedia conselhos para começar sua aventura como autor de ficção. Vargas Llosa dividiu seu ensaio em doze cartas, não sei se pelo alto valor simbólico desse número, e com aquele estilo elegante e preciso que o caracteriza, começou a desnovelar orientações. Omitiu a palavra conselho, talvez por sempre ter sido avesso ao paternalismo, talvez por respeito à liberdade individual.
 
Vargas Llosa recomenda que o jovem romancista não pense muito no sucesso, já que seu surgimento é algo imprevisível. Às vezes, se esquiva obscenamente de quem merece e se esbanja com quem mal sonhou com ele. O essencial para escrever não é a expectativa de ganhar prêmios e homenagens, mas sim considerar que não há outra maneira de viver. A vocação literária não é uma escolha racional, mas uma necessidade. Se for sincera, não pode ser esquecida ou deixada de lado. Será sempre experimentada como uma necessidade urgente.
 
A rebeldia pode ser uma das motivações que impulsionam a escrita, mas a mais comum é a insatisfação. Escreve-se porque se pensa que a vida como se apresenta é insuficiente e decepcionante. A ficção permite expandir a realidade e, às vezes, modificá-la. Escrever multiplica nossas experiências, abrindo portas para territórios inacessíveis. Alguns celebrarão essa possibilidade como um verdadeiro dom, mas não é um dom gratuito, mas algo que se obtém em troca de uma servidão exigente, quase escravidão.
 
A vocação literária não é um passatempo, mas uma atividade exclusiva: “Não se escreve para viver, mas se vive para escrever”. Vargas Llosa sustenta que não existem romancistas precoces, mas é fato que ele próprio foi um. Com apenas 26 anos, publicou A cidade e os cachorros, um romance magistral. No entanto, geralmente não é o habitual.
 
O romancista não escolhe seus temas. Sua liberdade é rara. Na verdade, são os temas que o escolhem. Os romances alimentam-se do vivido. Foi o que aconteceu com A cidade e os cachorros, onde Vargas Llosa recriou seus anos de cadete no Colégio Militar Leoncio Prado. Claro, a literatura não é um simples testemunho. Os temas vêm da experiência pessoal, mas devem ser retrabalhados literariamente, como fez Proust, que transformou sua vida banal e anódina em um poderoso afresco de seu tempo. O romancista parte de algo real, mas o que ele faz é mentir. A literatura é uma impostura, prestidigitação, ilusionismo.
 
Mas nessa impostura está a verdade mais profunda do autor, seus demônios mais íntimos. Não há tópicos ruins ou insípidos, porque o fundamental não é o que se conta, mas como se faz. O tratamento e não o tema é o que transforma um texto em literatura. A distinção entre fundo e forma é artificial, pois o que torna uma história crível e comovente é a forma como ela é contada. Os grandes romancistas possuem grande poder de persuasão. Eles nos fazem acreditar que é possível levantar-se da cama e descobrir que você se transformou em um inseto gigante.
 
O sucesso de uma ficção se revela quando o texto se emancipa de seu criador, adquirindo autonomia própria. Não existe um estilo canônico para contar uma história. A única coisa prescritiva é que o estilo transmita coerência interna e necessidade, como acontece com Joyce. Ulysses poderia ter sido escrito de forma diferente? Sem dúvida, mas não seria a brilhante obra que deslumbrou gerações de leitores. Como você sabe quando encontrou a palavra certa? Imitando Flaubert, que lia seus textos em voz alta e não ficava satisfeito até que “soassem bem”.
 
Embora Vargas Llosa não o diga, vale ressaltar que a literatura é uma atividade sensual. As palavras são saboreadas, como se fossem notas. O estilo correto é incompatível com o discurso moralizante. Segundo Flaubert, cuja autoridade o escritor peruano invoca repetidamente, um romancista deve narrar, abstendo-se de opinar. É verdade, mas em alguns casos as opiniões se fundem com o texto sem estragá-lo, como acontece com Juan Benet ou Javier Marías. Victor Hugo nunca poupou o leitor de suas opiniões, mas era outra época. Flaubert, pai do romance moderno, acabou com essa forma de narrar, mas às vezes ela reaparece e os resultados não são necessariamente desastrosos.
 
Um romancista não deve ter medo dos tempos mortos. Em um romance, eles são necessários, pois acrescentam coesão e continuidade. As digressões e a introspecção também são elementos que contribuem para o aprimoramento do texto. Virginia Woolf não estava tão preocupada com o mundo exterior quanto com sua vida interior. Seus romances são uma paisagem da alma. Eles nos mostram quem somos por dentro. Os fatos não são a única coisa que define um ser humano. Suas emoções são extremamente esclarecedoras. Elas nos dizem o que está por trás de um rosto egocêntrico, um olhar retraído ou um gesto de aparente indiferença.
 
Seja qual for o registro adotado, o leitor sempre tem que esquecer o artifício, sentir que está contemplando uma realidade que suplantou o mundo. Para conseguir isso, o romancista deve saltar no tempo e no espaço, mas se não o fizer de forma verossímil, provocará uma sensação de irrealidade. Não é importante apenas o que é contado. Talvez seja mais significativo o que é silenciado. Um romance é apenas um fragmento de uma história muito maior, mas o que está oculto, o que não é dito, deve ser omitido apropriadamente.
 
Segundo Vargas Llosa, Hemingway é um mestre nesse assunto. Assim como no romance certas coisas ficam nas sombras, outras se destacam, adquirindo um papel hiperbólico. Os objetos minuciosamente descritos funcionam como guias, articulando o que é narrado, assim como uma diagonal em uma tela. Além disso, esses objetos não denotam apenas a si mesmos. Na verdade, eles conotam o universo, a totalidade.
 
Os romances às vezes recorrem aos vasos comunicantes: duas histórias que fluem simultaneamente, se sobrepondo e se complementando. Flaubert combina magistralmente uma feira agrícola com uma cena de sedução. Vargas Llosa domina esse procedimento, que permeia muitos de seus romances. Em Conversa no catedral, ele intercala a conversa de Zavalita e Ambrosio com acontecimentos do passado. Longe de fragmentar a ação, introduz perspectivas complementares que dão mais densidade aos personagens.
 
Vargas Llosa termina seu ensaio aconselhando — desta vez sim — ao jovem romancista a esquecer tudo o que lhe contaram e a começar a escrever. Embora seja um personagem imaginário, esse jovem pode ser o autor que em um amanhã não muito distante revolucionará o romance, inventando novas técnicas. O gênero narrativo não para de se reinventar e isso garante sua continuidade. No dia em que os romances repetirem o mesmo modelo indefinidamente, sem inovar ou acrescentar nada de diferente, teremos chegado à fase terminal de uma invenção genial. Felizmente, estamos longe desse momento fatídico.
 
Na verdade, Vargas Llosa começou um novo romance aos oitenta e seis anos. Suas reflexões sobre gênero são um exercício de sabedoria. Longe do formalismo e do academicismo, eles nos fornecem a visão de um autor que viveu felizmente escravizado por uma impostura. Escrever romances é mentir e poucos autores mentem tão bem quanto o autor de A casa verde e A guerra do fim do mundo, duas obras que nos ajudam a compreender melhor o ser humano, animal paradoxal incapaz de viver sem ficção. 

Notas da tradução
1 Existe uma tradução brasileira há muito fora de catálogo intitulada Cartas a um jovem escritor: toda vida merece um livro, tradução de Regina Lyra (Rio de Janeiro: Elsevier, 2008). No texto, entretanto, adotamos a tradução portuguesa para o título, que melhor diz do original, Cartas a un novelista


* Este texto é a tradução livre para “Vargas Llosa ante un joven novelista”, publicado inicialmente aqui, em El Cultural.

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