Perigos e fontes da escrita

Por Norman Mailer

Ilustração: Leonard Beard 


 
Kurt Vonnegut e eu somos amigos, embora com alguma reserva. Em dado momento de nossas vidas, costumávamos sair muito juntos, porque nossas esposas gostam uma da outra. Kurt e eu nos sentávamos então, como suportes de livros. Tínhamos muito cuidado um com o outro; nós dois sabíamos o alto custo de uma luta literária, então certamente não queríamos discutir. Por outro lado, nenhum cometeu o erro de dizer ao outro: “Nossa, gostei do seu último livro”, para logo se encontrar com um silêncio pois o interlocutor não poderia retribuir. Então estávamos falando sempre sobre outra coisa: Las Vegas ou as Hébridas. Só tivemos uma conversa literária durante uma dessas noites em Nova York. Kurt ergueu os olhos e suspirou: “Bem, terminei meu romance hoje”, disse ele, “e isso quase me matou”. Quando Kurt fica sentimental, fala com um velho sotaque de Indiana que não consigo reproduzir. Sua esposa murmurou: “Oh, Kurt, você diz isso toda vez que termina um livro”, e ele respondeu: “Bom, é assim, e sempre é certo, e cada vez é mais certo, e este último me matou mais que qualquer outro”.
 
O que ele quis dizer com isso? Por um acaso eu sei. Trata-se do vínculo que Kurt e eu temos. É assim que nos entendemos, o que sem dúvida é um tema para esta noite: os perigos e as fontes da escrita.
 
Ao contemplar o fabuloso território que se deve percorrer para dar forma a um romance, talvez ajude dividir esta área de trabalho em três terrenos distintos: técnicas, perigos e fontes. Poderíamos falar sobre todas técnicas, composição do enredo, ponto de vista, ritmo e as estratégias narrativas, mas sendo como um velho mecânico que sou, tendo a resmungar sobre esses assuntos. Provavelmente me colocaria um problema literário prático dizendo algo como: “Coloque essa coisinha na frente dessa.” Portanto, passarei à segunda e à terceira partes dessa divisão altamente arbitrária do assunto e falarei da psicologia ou, mais exatamente, do estado existencial do romancista depois de superado seu noviciado.
 
Os anos necessários para se firmar como escritor se encontram expostos a todos os perigos da profissão: os de bloqueio e da falta de energia, o alcoolismo, as drogas e a deserção. Muitos escritores abandonam a escrita para ingressar numa profissão parecida, na publicidade ou na academia, nas revistas especializadas, nas publicações... A lista é longa. É menos comum tornar-se um jovem escritor com um nome bem estabelecido. Sorte e talento ajudam a salvar essa primeira fronteira. Alguns passam nos testes para adquirir uma técnica e realmente ganham a vida nesta estranha profissão. Então, porém, começam os perigos menos documentados.
 
Quero expandir os riscos do ofício, as crueldades que se impõem à mente e à carne e, então, se não ficarmos muito deprimidos com a revelação de perspectivas tão desoladoras, podemos passar para a última das três áreas, as fontes, comparável a um reino submarino porque pertence à dimensão misteriosa do nosso inconsciente, a origem dos nossos voos estéticos — e nenhum ser humano, por mais profissional que seja, pode falar com autoridade do que ali se passa. Só poderemos vagar pelas fronteiras de uma tão magnífica região e nos contentar com vislumbres fugazes de suas maravilhas. Ninguém é capaz de explorar o mistério da escrita de romances até sua fonte mais profunda.
 
Deixe-me começar com os perigos. Eu sei algo sobre eles, como deve ser. Meu primeiro conto foi publicado há quarenta e sete anos; nesta primavera, meu primeiro romance a ser impresso fará quarenta e dois anos. Obviamente, estou acostumado a pensar em mim mesmo como escritor há tanto tempo que até os outros me veem assim. Consequentemente, ouço um lamento, uma e outra vez, entre desconhecidos: “Oh, eu também gostaria de fazer livros”. Quase posso ouvi-los refletindo em voz alta sobre a liberdade da vida. Que felicidade não ter patrão ou enfrentar a correria da manhã para ir ao escritório; como é emocionante aprender sobre os delírios da celebridade. Além dessas razões superficiais, as pessoas também desejam satisfazer a voz interior que continua dizendo a elas: “Pena que ninguém sabe como minha vida tem sido incomum! Com todos os segredos que não posso contar!” Anos atrás eu escrevi: “A experiência, quando não pode ser transmitida a outro, murcha por dentro e é pior do que algo que se perdeu”. Muitas vezes me lembro dessa afirmativa.
 
De vez em quando a mão escreve uma linha que parece verdadeira, mas você não sabe de onde veio. Dez ou vinte palavras parecem capazes de viver em equilíbrio com sua experiência. Para um escritor, a recompensa pode ser melhor. Você sente que se aproximou da verdade. Quando isso acontece, poderá olhar para a página anos depois e meditar novamente sobre o seu significado.
 
Então acho que entendo por que as pessoas querem escrever. De qualquer forma, também sou um profissional, e há outra parte de mim, confesso, que é menos condescendente com estranhos que expressam suas aspirações literárias. Digo a mim mesmo: “Eles podem escrever uma carta interessante, então assumem que estão prontos para contar sua história de vida. Eles não entendem a enorme quantidade de trabalho que envolve obter apenas  o básico da narrativa.” No entanto, se a pessoa que falou comigo dessa maneira estiver falando sério, eu gentilmente a advirto: “Bem, aprender a escrever provavelmente leva tanto tempo quanto aprender a tocar piano”. As pessoas não devem ser encorajadas a escrever por muito pouco. É uma vida esplêndida quando você pensa em suas recompensas, mas se você não for bom nisso, a morte da alma está envolvida.
 
Permita-me então cumprir minha promessa e explorar um pouco as regiões mais cinzentas de minha vocação. Para ver de um lado os anos fascinantes em que você é um novo escritor e aprende algo todos os dias (pelo menos nos bons dias), enquanto há uma pressão abominável na vida do romancista maduro. Quando apenas se conclui um livro conseguido com tanto esforço chegam as resenhas — e elas podem ser criminosas.
 
Compare a recepção de um autor com a de um ator. Com a notável exceção de John Simon, não é sempre que os críticos de teatro tentam matar os artistas. Eu acho que há um acordo tácito de que os atores merecem ser protegidos dos perigos das primeiras noites. No final de contas, o ator corre o risco de uma rejeição que pode ser tão assustadora quanto uma lesão grave. Para seres humanos sensíveis como atores, um buraco no ego pode ser pior do que um buraco no coração.
 
Essa moderação não se aplica à crítica literária. Pretensioso, desonesto, trabalhoso, repugnante, prosaico, incompetente, asqueroso, decepcionante, obsceno, mal trabalhado e chato são palavras frequentes na típica crítica negativa. Lembro-me, e já se passaram trinta e oito anos, que meu segundo romance, Barbary Shore, foi marcado pela enorme autoridade do crítico do Time como “sem ritmo, sem gosto, sem graça”. Ainda quero conhecê-lo um dia. É difícil encontrar outro campo profissional onde a crítica seja tão selvagem. Contadores, advogados, médicos, engenheiros e talvez até físicos não costumam falar publicamente uns dos outros dessa maneira.
 
O mais triste que se pode dizer, porém, é que nossa prática crítica pode até ser bastante dura, mas justa. Afinal, prepara-se um livro na segurança do escritório. A autoestima, as contas a pagar, o editor ou o ego obrigam você a mostrar o que escreveu. Se pode tomar o seu tempo, pegue o livro apenas quando estiver pronto. Às vezes, a necessidade econômica lhe obriga a escrever mais rápido do que é conveniente; bem, todo mundo tem histórias tristes. Do ponto de vista prático, não se escreveu muito em um vendaval e poucas anotações precisam ser feitas à beira de um penhasco. Em geral, um autor cumpre seu dever em seu gabinete, sem sentir muita fome e sem maior dor do que a visão do caderno vazio. É claro que essa folha branca pode parecer tão vazia quanto uma tela de televisão quando a estação está fora do ar, mas isso não é um perigo, apenas uma presença oca. O escritor, ao contrário de outros artistas criativos, trabalha sem perigos imediatos [...].
 
Na verdade, poucos bons escritores permanecem produtivos por décadas. Existem outros perigos também. A mídia pressiona e sacode para nos colocar na moda e deixar de estar na moda; cada gota de popularidade pode parecer o fim de nossa carreira. Essa insegurança não ajuda a moral, pois mesmo em seus melhores dias todos os escritores conhecem um terror recorrente: Isso acaba amanhã? Isso tudo finda amanhã?
 
Escrever é assustador. Não há rotina de trabalho que mantenha você em movimento, apenas a página em branco todas as manhãs, e você não sabe de onde vêm essas palavras, essas palavras divinas. Por isso, seu profissionalismo, na melhor das hipóteses, é frágil. Você nem sempre pode dizer a si mesmo que a moda passa e que a história vai lhe sorrir novamente. Não é fácil adquirir o estoicismo para suportar o mundo literário, especialmente se você começou como um adolescente hipersensível. Não é nem automático rezar pela sorte quando o pessimismo deu força aos seus primeiros trabalhos. Talvez não passe de uma vontade cega, mas alguns autores persistem nisso. Vez após vez, eles escrevem um novo livro e o fazem sabendo que provavelmente serão dilacerados e incapazes de responder. Pode-se escolher um crítico ocasional para lançar um contra-ataque ou enviar uma carta ao editor na seção de livros, mas esses esforços de autodefesa são como disparar um rifle contra uma frota de aviões.
 
O escritor é poderoso quando se senta à escrivaninha, mas no palco público pode sentir que seus direitos são insignificantes. Sua coragem, se houver, está em aprender a conviver com os comentários sobre o que produz. Embora a pele espiritual possa afrouxar ou endurecer como couro, o esforço para superar as críticas negativas e voltar a escrever tem que ser análogo à coragem inadvertida de quem vive sob o aperto de ferro de uma longa doença e de alguma forma resolve suas mais íntimas contradições.
 
Imagino que isso equivale a dizer que não é possível tornar-se escritor profissional e manter-se na ativa por três ou quatro décadas, a menos que se aprenda a conviver com a condição profissional mais imediata da própria existência: assumir que a resenha superficial de livros é irresponsável e que a crítica literária séria pode se aproximar do implacável [...].
 
Qualquer bom autor que conseguiu forjar uma longa carreira deve, portanto, ser capaz de construir um personagem que não se aborreça com uma má recepção. Isso requer uma coragem robusta. Quando jovens, poucos escritores são rudes. Em geral, as meninas raramente se veem como possíveis vencedoras de concursos de beleza, e os meninos não parecem futuros protótipos de seu país. É mais provável que fiquem à margem, para começar a inventar aquela visão distorcida, apaixonada e sardônica da vida que mais tarde os trará aos olhos do público. Isso acontecerá mais tarde.
 
Os jovens escritores muitas vezes começam como solitários. Eles são forçados a viver com o reconhecimento de que é melhor que o mundo esteja equivocado ou que eles estejam errados. Disso depende a avaliação que se faz do seu direito à sobrevivência. Graças à ganância, à imagem, à mídia e várias abominações da tecnologia, oh meu Deus, o objetivo de um jovem escritor vesgo é facilmente desviado do objetivo final. Então, às vezes, escritores iniciantes ganham um lugar ao sol por um curto período de tempo. Sua visão os projeta para a frente, mas raramente dura mais do que um tempo. Mais cedo ou mais tarde, o miserável e solitário ato de escrever os obriga a voltar. A composição também mexe com a psique e permite que o escritor descanse feliz.
 
Não é fácil explicar tamanha perturbação a quem não se dedica à literatura. Qualquer pessoa que tenha experimentado a ficção a duras penas entenderá imediatamente que, dentro do escritório, um escritor geralmente se sente divino. Aí julga confortavelmente as outras pessoas. Mas olhe para a pessoa na cadeira: ela pode estar confiante ou cheia de vergonha pelo que fez ontem ou dez anos atrás. Os velhos insucessos esperam como fantasmas na enorme casa do eu vazio da meia-idade. Consciente ou inconscientemente, a cada dia que você tenta escrever deve estabelecer uma nova paz com o passado. É preciso se elevar ao invés de se depreciar. Se não puder, provavelmente você perderá sua proibição de sentimento divino por tempo suficiente para julgar os outros.
 
No entanto, enquanto o escritor está trabalhando, ele também não deve tolerar muitas boas notícias. É melhor que a pessoa não acabe se amando demais. Em certas manhãs podem aparecer lembranças maravilhosamente agradáveis, mas se não tiverem nada a ver com o trabalho devem ser banidas ou deixarão o autor muito alegre, cheio de energia, indulgente demais e muito excitado.
 
Nossos rabiscos se movem melhor na página com a calma depressão de um bom juiz. Assim como um magistrado decente sente que a sociedade pode ser prejudicada se ele der um veredicto injusto, o escritor deve se perguntar se está sendo justo com os personagens de seu livro. Se o autor comete violência contra a vida de um personagem, isto é, se no pânico constante de tornar um livro divertido ele começa a distorcer as pessoas criadas de maneiras mais cômicas, corruptas ou malignas do que ele secretamente acredita que elas merecem, então o escritor fere o leitor. Embora possa ser uma lesão sutil, ainda é um crime moral.
 
Poucos escritores são inocentes de tal prática; por outro lado, há muitos artistas que suavizam seus retratos. Alguns autores evitam destruir a simpatia do leitor por uma heroína atraente ao não admitir que ela grita com os filhos. As vendas podem cair. É preciso tanta integridade literária para ser duro quanto para ser compassivo. O caminho é estreito. É difícil manter o próprio nível literário nos longos trechos do meio de um livro. Os primeiros prazeres da concepção não sustentam mais o escritor, que se arrasta sobre os pés de chumbo do hábito, o hálito seco da disciplina e a certeza de que do outro lado da colina os críticos, que também têm talentos expressivos, esperam. Mais cedo ou mais tarde você chega à conclusão de que, se quiser sobreviver, é melhor se tornar o melhor crítico de todos. Um autor que tem os recursos para continuar escrevendo de uma geração para a próxima faz bem em ir acima do ego, alto o suficiente, para ver cada falha em seu próprio trabalho. Caso contrário, ele ou ela nunca terão claros seus méritos.
 
Deixa-se viver, porém, consciente das deficiências e atalhos do seu livro, com o seu brilhantismo onde a coragem poderia ter produzido um verdadeiro fulgor; então você suportará as críticas negativas. Você pode até perceber quando o crítico não está expondo sua psique, mas esvaziando seus bolsos sujos. É incrível quantas críticas ruins alguém pode engolir quando está confiante de que fez o melhor que poderia ao escrever um livro, até o limite da honestidade, mesmo raspando um pouco da própria desonestidade. Atinja esse ponto de pureza e talvez suas regalias possam ser prejudicadas por uma má recepção, mas sua moral permanecerá intacta. Existe até a esperança de que, se o livro exceder sua recepção, seus leitores favoritos acabarão por apreciá-lo melhor.
 
A receita, portanto, é simples: não publique uma obra que tenha uma mancha grave. Pelo menos a receita deve ser simples, mas quem são aqueles poucos de nós que fizeram um trabalho do qual não nos envergonhamos? Isso se resume a uma questão de grau. Há aquele comentário de Engels a Marx: “A quantidade muda a qualidade”. Temos apenas uma batata para comer, mas dez mil batatas constituem uma mercadoria e devem ser colocadas em recipientes ou caixas.
 
Um lucro deve ser obtido ou certamente haverá perdas. Por analogia, uma pequena falha em um livro é tão perdoável quanto o estilo do autor, embora um crime literário considerável seja um órgão doente, ou assim parecerá se os críticos começarem a criticá-lo e se mostrarem certos pela primeira vez. Portanto, nossos credores não irão embora. Eu me pergunto se tocamos o medo que está por trás da escrita nos corações de muitos bons romancistas, o perigo por trás de todo o resto.
 
Dito isso, podemos sair com um bem-vindo reforço moral: é preciso oferecer o melhor de si e ser honesto. Mas infelizmente é preciso levar em conta outras variáveis.
 
Escrever é como o amor. Você nunca o compreende completamente. É um mistério, e quanto mais você trabalha nisso, mais consciente se torna de que não se trata tanto das respostas que você oferece, mas de uma melhor apreciação do escopo de seus mistérios literários. A maior alegria de passar seus dias como escritor é a ressonância que isso pode trazer à sua experiência pessoal. O mistério da profissão —de onde vêm essas palavras e como explicar sua alquimia na página — pode não apenas despertar terror ao pensar em poderes que desaparecem; traz também a felicidade de estar em contato com a fonte da própria literatura.
 
Agora, é claro, não podemos encontrar respostas diretas para essas questões tão prodigiosas. Basta se divertir com uma ou outra abordagem do problema. Nos meus anos de faculdade, os alunos tinham uma certeza. Diziam que o ambiente dava todas as respostas: era-se produto do meio, dos pais, da comida, das conversas, das relações humanas mais queridas e/ou mais odiosas. Alguém era a soma de sua própria história emoldurada pela história mais ampla de seu tempo. Alguém era um produto. Se você escrevia romances, estes eram simplesmente um produto do produto.
 
Com essa filosofia de trabalho escrevi um livro — Os nus e os mortos — que foi totalmente cômodo. Antes, eu não sabia o que um autor queria dizer ao rotular uma de suas obras como incômoda. Os nus e os mortos parecia o resultado certo de tudo o que aprendera até os 25 anos, experimentara e lera — o reconhecível fim de uma longa e ativa linha de montagem. Eu me senti capaz de explicar cada parte dela.
 
No entanto, logo perdi essa perspectiva imperturbável sobre minha literatura. Você me perdoará, mas agora sou forçado — inevitavelmente, temo — a falar de minhas obras. Acontece que sou uma autoridade nas condições particulares em que foram escritos. Esse é o único assunto no qual posso ser uma autoridade; se eu fosse discutir os romances de outras pessoas da mesma maneira, estaria apenas especulando sobre como eles fizeram isso. Conheço meu próprio trabalho. Posso dizer, então, que o livro em que embarquei depois de Os nus e os mortos era um mistério tão grande para mim que até hoje não sei dizer de onde veio.
 
Eu costumava sentir que aquele segundo romance, Barbary Shore, foi escrito por outra pessoa. Enquanto Os nus e os mortos foi montado com o esforço agradável de um jovem carpinteiro capaz de construir uma casa decente porque domina as técnicas e a sabedoria dos que construíram antes dele, no caso de Barbary Shore muitas vezes me senti como se uma fantasma estivesse me ditando isso no meio de uma floresta. Sentei-me para trabalhar todas as manhãs sem saber como continuar. Meus personagens eram estranhos. Todos os dias, depois de horas de trabalho às cegas (nunca parecia conseguir mais do que uma ou duas frases), eu percebia meu enredo e meus personagens tinham feito progressos em três páginas manuscritas para seu desenlace final. No entanto, nunca soube o que estava fazendo ou de onde vinha esse impulso.
 
Felizmente eu já tinha ouvido falar de Freud e do inconsciente; caso contrário, eu mesmo teria de postular tal condição. Uma mente inconsciente era a única explicação para o que estava acontecendo comigo. Mas eu certamente estava ciente de duas presenças cooperantes em uma obra literária — e a segunda, estranha para mim, tinha a capacidade de assumir o ato de autoria desde o início.
 
Não escrevi um romance desde então que não se enquadrasse em uma categoria ou outra. Alguns, é claro, compartilhavam as duas. Vieram do fundo do meu inconsciente e foram também o resultado de uma longa e voluntária preparação.
 
Acho que Parque dos cervos e Noites antigas se inscrevem fielmente nessas duas categorias, enquanto meu romance A canção do carrasco se prendeu tanto aos fatos de um evento real que muitos diriam que não é um romance.
 
No outro extremo Por que estamos no Vietnã? saiu com uma voz que, nem remotamente, é a minha. Quando tento lê-lo em público, preciso de um ator com um bom sotaque do Texas para ocupar o meu lugar, para excitar o público. Escrevi esse livro em três meses felizes e atordoados. Há romances que levam anos, outros mudam para sempre os pesos e contrapesos de sua condição pelo simples ato de escrevê-los, mas esse trabalho me levou apenas três meses e me atravessou com o mais estranho dos tons selvagens e cômicos. Eu costumava ir para a minha mesa de trabalho todas as manhãs. Era ali que começava a falar a voz do meu personagem principal, um gênio adolescente altamente improvável de dezesseis anos — eu nem sabia se ele era branco ou negro, já que em diferentes momentos ele dizia ser um ou outro. Não fazia ideia de onde vinha ou para onde íamos. Livros como este fazem você se sentir um médium espiritual. Tudo o que eu tinha que fazer era chegar ao trabalho na hora e isso — não posso chamá-lo assim — começava a deixar escapar palavras. Alguém pensa nesses livros como se fossem presentes, em comparação com outros, porque dificilmente precisam ser trabalhados.
 
Às vezes, quando me sinto tolerante com a ideia do carma, dos demiurgos, dos espíritos da época e da intervenção dos anjos, santos e demônios, também me pergunto se ser um escritor de longa data não abre para você mais de uma fonte. Depois de anos de trabalho, pode-se avançar com muitos valores que são fruto do próprio trabalho e da dedicação pessoal. Mas também me pergunto se de vez em quando os deuses têm seus próprios romances para inventar, olham uns para os outros e dizem: “Aqui está algo bom para Bellow” ou “Isso teria sido um boato picante para Cheever; pena que acabou” ou talvez, no meu caso, “Olhe para o pobre e velho Mailer retomando essa história. Vamos dar a ele algo grande”.
 
Quem sabe? Se somos em grande parte robustos engenheiros literários, cheios de uma sólida prática, não podemos também ser agentes de forças além de nossa compreensão? Talvez nossos livros às vezes venham de lugares que nós mesmos não podemos adivinhar. Aplaudo essa ideia. Dada a nossa fome enorme e insatisfeita, é gratificante acreditar que também podemos receber alguns presentes que não merecemos totalmente de passagem. Como é gostoso sentir a força que pôs pinturas nas paredes das cavernas, que dotou os pedreiros de precisões que permitiram arcos góticos, que deu o cálculo à época de Newton. Não, não é tão ruim sentir que somos herdeiros de emanações de alguma fonte inexplicável e fabulosa. Nada dissipa nossos horizontes como uma sorte inesperada ou a generosidade dos deuses. 


* Este texto é a tradução livre de artigo publicado em Bulletin of American Academy of Arts and Sciences, fevereiro de 1990.

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