O pai da menina morta, de Tiago Ferro

Por Renildo Rene


Tiago Ferro. Foto: Mira Cervino


 
Escrever sobre Tiago Ferro é poder escrever sobre a questão da forma no romance contemporâneo brasileiro: são vários os caminhos para entender a correspondência da estrutura com o tema, e cada escritor parece oferecer um norte para isso. E no centro dessa ideia, um sentido claro: é preciso ter o olhar crítico sobre os nossos escritores, sobre o que eles nos dizem sobre sua escrita e, principalmente, sobre suas narrativas. Neste caso, a resposta de Tiago Ferro parece mais congruente diante do que ele nos apresenta em seu primeiro lançamento. Sua concepção literária de luto perpassa pelo narrador e pelo estilo fragmentado — pensados em conjunto para o romance.
 
O sentido humano dado ao narrador de O pai da menina morta é uma das razões pelas quais o livro se torna atraente a cada leitura, e porque devemos nos lembrar dele como um exercício exemplar de escrita que pode desestabilizar o leitor do lugar-comum. Essa mais nova curva para a produção contemporânea, uma obra lançada em 2018 pela editora Todavia e muito bem recebida pela crítica, fornece um das experiências latentes mais recentes na produção nacional, e introduz Tiago como uma das carreiras mais curiosas nessa nova leva de autores.
 
Não existem capítulos ou partes que dividam a história; o romance na verdade se constitui e ganha camadas pela leitura de fragmentos, retalhos desse personagem enlutado que o título esclarece. Há apenas a personalidade desse narrador para acompanhar e articular os seus registros, e os seus pensamentos do ser após a perda de sua filha. É por meio dessa “estrutura caleidoscópica do luto” que vamos observando uma identidade combinada por diferentes imagens, oferecendo novas perspectivas sobre a vida diante daquelas páginas.
 
Não existe também, logicamente e consequentemente, uma linearidade temporal e uma ligação direta/ pragmática ao que está posto no romance. Portanto, cada seção se apresenta de maneira própria ao que se quer mostrar: uma lista, uma música, uma mensagem, um verbete, uma anotação e até mesmo imagens. Os colchetes que abrem cada parte do livro, em sua maioria curtos, são vislumbres de que estamos adentrando em um novo momento do cotidiano do pai que perdeu a sua filha.
 
Você pode imaginar que o livro é justamente isso: uma sucessão de fragmentos, suspensos no espaço e no tempo, que captam o ritmo desenfreado e por vezes monótono e desconexo. Porém, toda a história se torna sublime pois não acompanhamos um monólogo ou uma narração melodramática, mas um narrador “memorioso”, construído formalmente pelo autor para manifestar a experiência do luto em seu status quo (a partir dessas seções dispersas).
 
“Todos os detalhes de cada dia estão vivos em mim, num ininterrupto acionamento de memórias, roubadas e inventadas” diz ele. E nessa vivacidade do que se é contado, a história se aproxima de nós, mostrando o caminho que Tiago Ferro escolheu para dizer sobre tal tema em uma estrutura pensada e consonante: é o próprio vazio que dá sentido a fragmentação, e esta proporciona uma literatura menos plástica do que costumamos ver.




 
Essa é uma breve introdução de como a obra foi vista, pela editora e pela crítica, desde que foi lançada: um romance fracionado. A organização geral nos afirma mais uma vez que esse conflito gerado pelo funcionamento da memória, com a relação da perda x ausência da filha perpassa pela própria forma da escrita — a problemática da abordagem do luto se reverbera do tema para a organização geral. Ou seja, Tiago recusa completamente estar somente na representação superficial da emoção e propõe uma imersão pela fisionomia de seu romance.
 
Observemos por exemplo, que para reproduzir um certo “diário do luto” o ritmo adquirido tende a ser o mais objetivo possível, com cada excerto aparecendo como gatilhos da memória (recortes de alucinações, pensamentos, anotações e hiperlinks variados, sem compatibilidades diretas). A sensação mais provável, então, é como se a leitura fosse totalmente desconexa e sem sentido, por haver fragmentos que não apontam para um enredo óbvio e sequenciado.
 
Ora, é justamente por essa simulação do desconexo, dos pensamentos diferentes que aparecem recorrentemente pelo processo, em conjunto com as ações cotidianas, que O pai da menina morta prevalece. Dos tais fragmentos é que a unidade deriva, um romance tecido meticulosamente. Cada seção, pois, é pensada a partir de sua própria intencionalidade: se o significado da palavra “céu” é capaz de despertar sensações tristes, o seu vocábulo aparece no meio; se a lista de compras pode lembrar de tantas outras tarefas pesadas, assim ela é reproduzida — sentimentos mistos (“pensar na minha filha a cada cinco minutos”) em meio aos alimentos para a casa.
 
Se o leitor observar, não precisamos da trama clássica para conhecer a história do narrador (do dia da morte da filha em diante, a exemplo), mas sim, dessas indefinições que proporcionam os vestígios reais de sua história. Já sabendo do que o livro trata, e isso o título informa bem do que precisamos, as 173 páginas se tornam mais um todo em continuidade de episódios e temas, do que uma contiguidade rasa apenas para ganhar facilmente.
 
Entre as frações de um todo é o cotidiano que garante a relação: é na ordinariedade de acontecimentos que o seu aspecto de vida pulsa pelo romance; tudo é aleatório, mas é aceitável pois é o que se vive e o que se é.
 
O narrador é como um corpo constituído por diferentes órgãos, com estrutura e funcionamentos próprios e diferentes entre si, mas ainda sim um corpo — um sentido. “Eles jamais vão entender a anatomia do sofrimento enquanto insistirem nas fórmulas prontas...”, ele nos avisa.
 
Um a um, os devaneios desse pai enlutado mostram que há dois sentidos possíveis do romance para lê-lo como uma literatura menos guiada pelo comercialismo de algumas leituras contemporâneas. O primeiro é justamente esse caráter fragmentário que além das pequenas seções exemplificadas, traz ainda espaços de reflexões mais interiores do sujeito. Entre esses diversos estilhaços causados pelo luto, estão também excertos que são momentos de meditações. É como se ele precisasse escrever de maneira mais tradicional (como um monólogo) em algumas passagens, para ter um pouco de controle dos episódios que vivencia, ou melhor, para registrar genuinamente algum dos seus sentimentos e o que ele vê ao seu redor.
 
Isso acompanha o segundo sentido, que é justamente o de como o romance proporciona o mecanismo do luto, e o que pode ser observado a partir dele. Ao entrar no desafio de como seria possível manter essa representação, o romance passa a responder por tudo que está inscrito na ausência da filha, e também fora dela. É que seria muito dramática retratar somente um pai chorando e recontando uma mesma história, e então a obra edifica mais um significado próprio pelo “exercício de sensibilidade e inteligência” como diz Beatriz Sarlo em seu comentário sobre a obra.
 
Por esse exercício, entendemos que há um trânsito pela vida do narrador, de um discurso que não cessa apenas no sentimento doloroso da ausência. A identidade na obra é flexível e aberta, pois permite caminhar pelas várias nuances e fases daquele pai. O olhar dele é direcionado para si, e o luto apenas canaliza um aprofundamento maior, pela voz da primeira pessoa.
 
Pelo cruzamento do que acontece após a morte, e do que se rompe a partir daí que o romance também traz uma concepção menos sacralizada desse processo. Essa é uma das questões que não se relativiza com O pai da menina morta, pois ele se aproxima do fenômeno real ao se arriscar em sua matéria. O leitor pode ser surpreendido ao perceber, por exemplo, os vários momentos nos quais o sexo aparece de maneira natural como temática, e isso recorre a intenção daquele “eu” — o choque que o luto traz com o que era banal ou até mesmo, esquecido na memória.
 
De fato, Tiago enquanto escritor cumpre tais desafios de sentido muito bem, mas vai além e enriquece seu texto. As evidentes referências a eventos do mundo real tonificam o universo próprio do romance, e ele dialoga com tantos outros artistas que passaram pela mesma situação e reconstruíram a seu modo (e em suas linguagens artísticas) esse processo, gerenciando um controle criativo de como dizer sobre o mesmo acontecido.
 
Gilberto Gil, Eric Clapton, Carlos Drummond de Andrade, Hermann Kafka passam agora a circular na mesma órbita que O Pai da Menina Morta, e este passa a afirmar sua singularidade narrador literário entre esses outros artistas. Assim como eles, passa também dar voz a sua dor, amplificando os sentidos da sua história.
 
Com esse controle criativo que emerge, e que ajudou a edificar a obra levanta-se outra discussão que ainda não apareceu diretamente aqui. No cerne desse projeto literário está a questão de que a obra partiu de uma vivência real, quanto o escritor perdeu sua filha de nove anos, e publicou um ensaio para a revista Piauí em 2016.
 
Apesar do fato de que naquele texto já germinava a ideia de uma não-linearidade, existe agora um Tiago romancista que conseguiu angariar um movimento de prestígio dentro do mercado editorial. É que do ensaio para o romance, o autor soube diferenciar o movimento que a linguagem requeria para cada um desses gêneros, e neste último, trouxe o melhor sentido.

O leitor poderá perceber então que o livro não cai na armadilha fácil de se vender apenas como uma autoficção. Isso porque ainda que haja o hibridismo dessa concepção artística, é pouco provável que vá se observar no texto a mistura de um ser histórico real com um ser fictício por pura intenção de colocar o autor no centro. Pelo contrário, é do episódio vivido que se gera um outro possível, o episódio ficcional.
 
Tiago parece dominar os limites que há entre biografismo e ficção, se afastando de colocar suas memórias pessoais como produto para ser lido e vendido de forma vulgar. Ou seja, poderemos ler o romance não para encontrar como foi/ é a dor dele, mas para apreciar a dinâmica de uma condição que com ele expande para a ficção contemporânea. É a direção clara, não de um autor que é narrador, mas de um autor que ficciona criativamente um.
 
E isso explica a diferença que existe na visão de como o livro pode chegar até nós: mais como um original do que como um produto estéril. Pelas palavras de quem narra, afirmamos o mérito de que ao escrever esse caleidoscópio do luto, ele encontrou a essência para a obra — fez a sua própria criação.
 
Por fim, essas ideias que se pode extrair da apreciação da obra fazem-nos recomendar O pai da menina morta como importante livro em nosso sistema literário contemporâneo. Como já adiantamos, Tiago Ferro proporciona uma história norteada pela clara correspondência do luto com a fragmentação. Sua estreia na ficção é estimulante e foge de caminhos mais triviais que o leitor possa estar acostumado em qualquer narrativa. Seu romance passa então a ser, pelo nível de apreciação e prêmios que conseguiu, uma curva positiva: se para ele foi um exercício criativo de escrita, para nós é um exercício singular de leitura.
 
 
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O pai da menina morta, Tiago Ferro
Editora Todavia, 2018
176 p.
Você pode comprar o livro aqui.
 

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