Vida indiscernível: ensaio sobre uma novela de Anton Tchekhov

Por Wesley Sousa

O que é feito com arte é sempre novo
— Tchekhov




A literatura de Anton Tchekhov (1860-1904) é uma experiência literária única. Seus inúmeros contos, novelas e peças constituem um universo que apenas ele pode proporcionar com tamanha magnitude e o zelo pela simplicidade sem cair na superficialidade. Dispensável dizer, porém, que ele compõe o rol da vasta e intensa produção literária russa, com nomes de escritores, poetas e dramaturgos da estatura de Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Aleksandr Púchkin, Ivan Turguêniev, Nikolai Gógol, Nikolai Leskov, Maksim Górki, Vladímir Maiakóvski, dentre tantos outros.
 
Sua diplomação universitária adveio da formação em Medicina. Com o passar do tempo, a atividade de escritor acabou sendo cada vez mais importante na vida do jovem médico, e daí veio a se transformar na sua principal ocupação. De fato, não nasceu de uma família rica ou aristocrática, como foi o caso de Tolstói ou Turguêniev, mas também pôde, mesmo com dificuldades, estudar em bons colégios e se formar como médico. Entretempo a isso, já escrevia contos curtos e textos de caráter satírico para jornais locais.
 
Adiantando que aqui não é meu objetivo descrever “vida e obra” do autor em sua amplitude. Entretanto, convém destacar que, na dramaturgia Tchekhov, temos peças muito conhecidas: entre elas, escreveu Tio Vânia (1897), As três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1903), sucessos desde os tempos de Teatro de Arte de Moscou. Essa “tríade” pode ser considerada o lócus do chamado “teatro tchekhoviano”, como mais tarde ficaria carimbada.
 
Nesse pequeno texto, todavia, faço alguns comentários sobre uma novela de Tchekhov. Em específico, trata-se da narrativa Minha vida, de 1896. Nesse tempo, o autor obtinha um reconhecimento notável de suas obras. As narrativas como “Angústia” (1885) e “Inimigos” (1887), por exemplo, renderam ao autor o Prêmio Púchkin  —  o maior galardão da literatura russa, concedido pela Academia de Ciências.
 
A função profissional na medicina acabou por proporcionar uma proximidade com a realidade material de seu país. Como trabalhava em hospitais públicos, podia ter contato com pessoas de vários estratos sociais, sobretudo os mais pobres. O olhar observador da vida cotidiana que aparece em sua literatura captura inúmeros detalhes dos que compõem seus escritos. Principalmente em seus contos, pelos quais figuram a pequena nobreza rural, os camponeses pobres, os mujiques e suas mulheres, estudantes, o clero, os comerciantes, oficiais de Estado, bem como os pequenos proprietários.
 
Um elemento próprio da literatura de Tchekhov, que é visível em grande parte das suas obras, é a capacidade de conduzir o leitor para um final reticente, sem um desfecho ou “lição moral” impactante. Antes disso, o aspecto aproxima-se ao estilo dramático, no caso a serenidade das narrativas, deslocando o enredo para subtemas, geralmente não destacados voluntariamente para o leitor. Nesse caso, deixa subentendido que o escritor não é um autor “simplório”, mas faz da eliminação de “superficialidades” grotescas (como o excesso de descrição espacial, ou demasiados detalhes externos dos personagens) uma elevação poética que “amarra” quem o lê numa escrita agradável e bem longe de casuísmos (casuísmos, por exemplo, que são a marca central dos romances comerciais).
 
O que acontece em Minha vida não é um retrato autobiográfico, nem um “romance de costumes”. Na novela, interpõe-se uma narrativa sobre diversas cenas, movimentos e observações da vida cotidiana de grupos, famílias e acontecimentos típicos de uma época. Não há muitos personagens, mas contextos marcados por figuras e detalhes da vida provinciana, em que vão se desenrolam a história sem muitas rupturas, atos heroicos, reviravoltas ou ações mirabolantes. Não por acaso, o subtítulo é “Conto de um provinciano”. Na percepção de Ricardo Piglia (1994), a narrativa literária de Tchekhov consiste nos acontecimentos que cercam seus personagens, cujos sofrimentos são representados pelo autor de forma lacônica, e evidenciados muito mais por imagens do que por considerações psicológicas.




Como faz notar Elena Vássina em um texto sobre o autor publicado na revista Cult: “O tema dominante desta primeira fase da obra literária de Tchekhov poderia ser definido como a ridicularização do que se considera ‘normal’, ou seja, daquele ‘bom senso’ vulgar e mercantil que rege e reina na vida corriqueira”. Os finais inconclusos de suas narrativas em contos e nas novelas são partes de seu proceder literário revolucionário e criativo. O recurso moderno que dá abertura poética em relação à vida cotidiana é uma constante fonte de acontecimentos, dificuldades e experiências pessoais e coletivas; e por isso, a inconclusão não se reduz à imparcialidade. Nesse sentido, na ordenação temática própria o que interessa é o movimento dos personagens, não a chegada.
 
Durante a novela, o amor do personagem central Missail Póloznev pela jovem Maria Víktorovna (Macha é o diminutivo como é chamada por Missail) é uma breve passagem que esconde a opacidade de uma vida monótona, mas já inserida no contexto do trabalho braçal de pintor e as dificuldades que ali enfrentara. A leveza do amor não impede um final do breve casamento, quando Macha parte para a metrópole para viver seu sonho de atriz. A jovem é uma leitora que vê nos livros uma fonte de sabedoria e um mundo à parte da vida que leva no ambiente familiar. O seu pai não se mostra um sujeito opressivo, inclusive é quem dá as boas-vindas para Missail.
 
Um outro elemento que chama a atenção é a irmã de Missail, a moça Kleopatra, a irmã protegida pelo pai. Ela é subserviente ao pai em relação aos costumes, ao rigorismo violento do pai. Na conversa com o irmão Missail sobre ele abandonar o seu ofício, em sinal de desespero, acaba lhe implorando:
 
— Tenha piedade de nós! — disse minha irmã, levantando-se. — Papai está muito desgostoso, eu estou doente, vou enlouquecer. O que acontecerá com você? — perguntava-me ela, chorando convulsivamente e estendendo-me as mãos. — Peço-lhe, suplico-lhe, peço em nome de nossa falecida mãe: volte para o serviço (Tchekhov, 2013, p. 15).
 
No decorrer da trama, há uma virada de postura que liga a irmã de Missail à Macha. A esposa de seu irmão é uma leitora sobre ciências e sociedade. Macha tem em sua curiosidade intelectual um ponto de ajuda que Kleopatra também vê no irmão de modo diferente ao entender suas razões, como também agora a vida como um todo. Isso faz alargar os horizontes daquele meio que a prende e a adoece mentalmente. A prisão maior que a irmã de Missail precisava se libertar é a dos costumes decadentes e provincianos.
 
Na novela Minha vida, temos então um conto narrado em primeira pessoa, embora há muito menos uma discursividade poética que faça de um suposto singularismo presente uma espécie de corolário discursivo de “si mesmo”. Antes de ser uma “vida pessoal” do escritor, ainda que alguns momentos possam aparecer — por exemplo — no temperamento aristocrático e violento do pai, estão em cena situações típicas de uma família cujos privilégios apenas se mantém sobre princípios aparentes.1 É nesse sentido que, numa vida indiscernível, a particularidade de um jovem insatisfeito com a vida que levava se volta rumo a uma mudança, mesmo que fosse incerta. Em outros termos, é a virada de situação que se dá por meio do abandono, a contragosto do pai, seu trabalho no escritório local. Incerto do futuro, ele segue a vida para desbravar seus ideais.
 
A técnica da narrativa e a visão artística de Tchekhov, por um lado, não fez dele um escritor primeiramente “engajado” — no plano político — à época, mas, por outro lado, seus escritos se tratava de formas inovadoras no contexto da literatura russa. Na novela de Tchekhov há espaços para reflexões que o leitor possa perceber, mesmo indiretamente, acerca das condições insalubres dos camponeses pobres (os mujiques), bem como o declínio político da pequena nobreza (aristocracia rural). Claro, Tchekhov não faz balanços políticos ou análises sociológicas. Para ele, são as entrelinhas que nos permitem “preencher” o enredo e dar sua riqueza literária (inclusive da dimensão social do conteúdo). O autor não gasta tinta com detalhes formais ou descrições superficiais: o que interessa são as imagens, não os julgamentos morais; interessa a inesgotável vida cotidiana, e não sua determinação situacional de época.
 
Entretanto, sem heroísmos ou ilusões, Missail passa a ser um trabalhador braçal. Vai trabalhar numa ferrovia, onde se insere nos hábitos e modos de vida daqueles trabalhadores, explorados, sem instrução, mas valentes em suas condições de sobrevivência. Aos poucos, no desenrolar da vida, ele conhece um doutor que vê nele um bom rapaz. As instruções filosóficas, as ideias “cosmopolitas” e o futuro da humanidade eram discutidos em alto nível.
 
Esse outro personagem significativo é o doutor Blogovó. Um homem com ideais humanistas, mas com resquícios ainda aristocráticos. É esse mesmo doutor que, ao se tornar amigo de Missail, também se aproxima de Kleopatra. A boa relação entre o doutor e a irmã do jovem possibilita começarem um ligeiro romance. É no diálogo que o doutor “ensina” o jovem Missail sobre a exploração humana que marca a tessitura da sociedade; o domínio do mais forte sobre o mais fraco; e, também, sobre o “progresso” que a humanidade precisaria passar — gradualmente — para sair de seu estado “anterior” (algo que nos lembra a filosofia de um “socialismo cristão” que se manifestou na Rússia czarista no século XIX).
 
Diante do que pensava e estimulado pelas provocações e elucubrações cientificistas da época por parte de Blogovó, o jovem Missail argumenta:
 
Ficamos conversando e, quando surgiu o assunto do trabalho braçal, expressei esta ideia: era preciso que os fortes não explorassem os fracos, que a minoria não fosse para a maioria um parasita nem sanguessuga, que chupa dela cronicamente os melhores sucos, ou seja, era preciso que todos — fortes e fracos, ricos e pobres —, sem exceção, participassem igualmente na luta pela sobrevivência (Tchekhov, 2013, p. 48).
 
No texto que está anexado à novela, escrito pela tradutora Denise Sales (2013), podemos ler que Tchekhov dá voz ao protagonista Missail Póloznev, filho de um arquiteto muito conhecido na pequena província que nutria sentimentos conservadores da vida que levava. Tchekhov propõe uma narrativa diferente de um certo naturalismo científico de época. Na história, o que acontece na vida do jovem Missail, está vinculado ao caráter de insatisfação dos costumes tradicionais, mesmo que na solidão da existência irrefletida e a “fracassada carreira profissional, possibilitando-o um fluxo de pensamentos “de quem recorda, conduzido pela melancolia e desilusão de uma existência sombreada pelos pálidos edifícios criados pelo pai arquiteto” (Sales, 2013, p. 143). 
 
Certamente Missail sofre com as escolhas que realiza. Aliás, escolhas que, na história, não significam nenhuma tragédia ou fatalismo. Entre a exploração do trabalho, ele passa a ser “mais um” no meio dos trabalhadores. A vida vale ser vivida por suas imprevisibilidades, contudo na medida que nos tornamos conscientes dela, também se torna um fardo contínuo. A futilidade de tudo que o cerca, ainda inadaptado em alguns modos de vida, é algo que faz testar suas insatisfações e a seguir por um caminho que é contínuo e estreito. Por exemplo, quando vai morar com sua amada e inteligente Macha numa espécie de chácara, ele reclama: “Eu não entendia nem gostava de agricultura; talvez isso acontecesse porque os meus antepassados não tinham sido agricultores e em minhas veias corria um puro sangue urbano” (Tchekhov, 2013, p. 85).
 
O autor russo longe de dar “lição” de vida, apenas mostra que na vida não há formas pré-fabricadas que não possam ser refletidas. As “pessoas pequenas e desinteressantes”, afinal, são as que mais interessam. Será pela narrativa de Tchekhov a intransigência requer em nós a inquietude de nossa pequenez, para não sermos engolidos pela grosseria da exploração do trabalho (figuradas pelas imediaticidades opressivas deste mundo): “Se eu tivesse vontade de encomendar um anel para mim, escolheria a seguinte descrição: ‘Nada passa’. Acredito que nada passa sem deixar marcas e que cada pequeno passo nosso tem um significado para a vida presente e futura” (Tchekhov, 2013, p. 139).
 
Notas
1 “Na minha infância, quando o meu pai me batia eu devia ficar de pé, ereto, com os braços ao lado do corpo, olhando diretamente para ele. E ainda agora, quando ele me batia, eu me perdia completamente, como se a minha infância ainda se prolongasse, retesava-me e esforçava-me por olhar bem nos olhos dele” (Tchekhov, 2013, p. 10).

______
Minha vida: conto de um provinciano
A. P. Tchekhov
Denise Sales (Trad.)
Editora 34
160p.
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Referências:
PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.
SALES, Denise. “A vida em memória”. In: TCHEKHOV, Anton. Minha vida: Conto de um provinciano. Trad. Denise Sales. São Paulo: editora 34, 2013, p. 143-156.
TCHEKHOV, Anton. Minha vida: Conto de um provinciano. Trad. Denise Sales. São Paulo: editora 34, 2013.
VÁSSINA, Elena. Anton Pavlovitch Tchekhov. Disponível aqui. Último acesso em: 10 de abril de 2023.
 
* Wesley Sousa é mestrando em Filosofia pela UFSC (PPG-Fil), na área de Ontologia. Graduado em Filosofia pela UFSJ. Pesquisa sobre estética, filosofia contemporânea e marxismo.
 

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