Trair Franz Kafka, o escritor que se adiantou ao seu tempo

Por Sofía Viramontes

Franz Kafka e o amigo Max Brod.


 
Franz Kafka queria que suas obras fossem queimadas quando ele morresse. Mas ele foi traído por seu melhor amigo, Max Brod, que lhe deu uma fama póstuma não solicitada com a publicação de suas 3.850 páginas manuscritas que estavam guardadas em seu escritório.
 
O escritor tcheco, nascido em Praga em 3 de julho de 1883, era um obsessivo absoluto, um perfeccionista irremediável, neurótico, compulsivo, torturado por seu passado, inseguro e grandioso. Seus achaques e tormentos lhe permitiram construir um movimento literário e algumas das leituras mais importantes da história.
 
Kafka tinha um grupo de amigos íntimos — entre eles Brod, o traidor —, e discutia com eles os seus textos, mas não tinha confiança para publicá-los. Podia terminar uma narrativa numa noite, como fez com O veredito (1913), escrito das dez da noite às sete da manhã, mas sofria de uma total indeterminação para dar um texto por concluído. Precisava encontrar as palavras exatas para descrever o mundo, sem usar símiles, hipérboles, jogos, enfeites ou tropos; nada que desse indícios de que a linguagem pura não é suficiente para narrar, que as histórias também devam ser completas, profundas, realistas dentro de sua própria ficção.
 
De tudo o que escreveu, a única coisa que parecia publicável a Kafka, e que viu a luz do dia enquanto esteve em vida, foram O veredito, O foguista, A metamorfose, Na colônia penal, Um médico rural e Um artista da fome. Isso é algo como 9% da obra literária produzida ao longo de seus 41 anos, apesar de sua família não achar adequado que ele fosse um escritor profissional.
 
Kafka cresceu numa Praga que fazia parte do Império Austro-Húngaro, numa família de judeus asquenazes. Era o mais velho de seis irmãos, três meninos e três meninas, embora os dois meninos tenham morrido antes de ele completar sete anos. Era um leitor ávido, com um gosto particular por Flaubert, Dickens, Cervantes, Goethe, Nietzsche, Darwin e Haeckel. Foi muito bem na escola, muito melhor do que seus colegas.
 
Estudou Direito na Universidade de Praga por decisão do pai, que era um homem autoritário, com expectativas carregadas em relação aos filhos, principalmente Franz por ser primogênito e homem. Em Carta ao pai (1952), Kafka admite o medo que tinha dele e a pequenez que lhe causava. Admite também que se identificava muito mais com a mãe, que pertencia a uma baixa aristocracia e convivia com boêmios, professores e artistas. Hermann Kafka, o pai, vinha de uma família rural de açougueiros e em Praga tinha uma tecelagem.
 
“Seja como for”, escreveu Kafka a seu pai, “éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro que se alguém por acaso quisesse calcular antecipadamente como, a criança que se desenvolvia devagar, e você, o homem-feito, se comportariam um com o outro, poderia supor que você simplesmente me esmagaria sob os pés e que não sobraria nada de mim.”¹
 
A relação tempestuosa com o pai — que continuamente o menosprezava, chamava-o de fraco, ingrato e esquisito — teve muito a ver com suas obras. Isso gerou para ele muitas obsessões e traumas, e o inspirou a estudar vários temas da psicologia humana como a subordinação e a culpa. Em A metamorfose (1915), explora essas relações e emoções humanas, tendo um personagem que, mesmo transformado num inseto, se preocupa em perder o trem e não chegar a tempo ao trabalho.
 
Depois de obter sua formação em direito, Franz Kafka começou a trabalhar para uma agência de seguros. Um emprego para pagar as contas, ele dizia, mas seu verdadeiro interesse era a literatura; e um interesse particular por livros de viagem (como os de Darwin) e sonhava em, talvez, um dia, ganhar a vida escrevendo guias para viajantes com orçamentos apertados.
 
No entanto, Kafka não era um grande viajante. O que ele mais visitou foram os sanatórios. Desde antes de contrair a tuberculose que o matou, o escritor era enfermiço e hipocondríaco. Abatia-se facilmente e era arrastado pelas emoções. Quando seus rascunhos literários não tomavam forma, mergulhava em pequenas depressões que o deixavam cansado, exausto, quase morto.
 
Após a primeira hemoptise em 1917, que confirmou que seu corpo era habitado pela bactéria da tuberculose, suas idas aos sanatórios tornaram-se cada vez mais frequentes. Na verdade, foi num deles onde conheceu muitas de suas namoradas. Teve muitos relacionamentos, quase sempre complicados, mas seu grande amor foi Dora Diamant, uma jovem jornalista e atriz polonesa descendente de uma família judia ortodoxa que fugiu de sua cidade natal e que influenciou muito o interesse de Kafka pela religião e pelo misticismo. Chegaram a morar juntos em Berlim e a planejarem ir para a Palestina, onde teriam um restaurante sendo ela a cozinheira e ele o garçom.
 
Em dezembro de 1923 Kafka contraiu uma pneumonia brutal. Voltou a Praga, para a casa de seu pai, mas a doença logo piorou e foi internado num sanatório perto de Viena. Sua laringe estava completamente destruída e ele não conseguia mais engolir nada que não fosse líquido. Seu corpo, sempre mais esquelético, mal se movia. Foi transferido para outro hospital no centro da capital e em 3 de junho de 1924 faleceu, pedindo que seus textos nunca fossem publicados.
 
Se não fosse pela traição de Max Brod, a humanidade teria conhecido apenas uma pequena parte do que ele escreveu. Talvez Jorge Luis Borges nunca tivesse escrito um prólogo para A metamorfose e não tivesse se inspirado nos mundos kafkianos. Ou Albert Camus nunca teria inventado personagens cuja vida lhes escapa em mundos paralelos; provavelmente nem Sartre nem García Márquez teriam crescido com o nome de Kafka como referência.
 
Há quem considere que conseguiu decifrar, quase como uma premonição, o absurdo do século XXI. “Prefigurou os pesadelos do século passado, mas também os deste”, escreveu Marta Rebón pouco depois de ter sido resolvido o paradeiro dos últimos manuscritos em disputa judicial entre a Biblioteca Nacional de Israel (que os considerava um bem cultural do povo judeu) e o Arquivo Literário de Marbach (que queria manter os manuscritos por se tratar de um escritor de língua alemã).
 
Kafka discernia em seus textos sobre a psicologia humana, a filosofia do absurdo e o existencialismo, a culpa, a submissão ao trabalho, a ansiedade e a violência. Morreu aos 41 anos a 3 de junho, o mesmo dia da morte de Gregor Samsa, personagem de seu livro mais famoso. 

Notas da tradução:
1 A passagem citada de Carta ao pai é da tradução de Modesto Carone (São Paulo: Companhia das Letras).


* Este texto é a tradução livre de “Traicionar a Franz Kafka. El escritor que se adelantó a su tempo”, publicado aqui, em Gatopardo.

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