Mário Cesariny: o último dos surrealistas

Por Miguel Ángel Flores

Mário Cesariny, 1963. Foto: Eduardo Gageiro


 
À pergunta de qual foi a figura mais excêntrica, a mais controversa, a mais incômoda da poesia portuguesa do século XX, sem dúvida a resposta será: Mário Cesariny. O poeta, na última fase de sua vida, suprimiu o sobrenome paterno. A ele se deve a fundação do primeiro grupo surrealista em seu país. Era um homem que gostava de causar escândalos, de reações inesperadas, pouco afeito às cortesias com o próximo e que rejeitava elogios com um gesto azedo. Construiu sua lenda e de agora o seu mito. Numa atmosfera de sacristia e pudor cristãos, mostrava sem hesitações as suas preferências sexuais, o que lhe valeu a hostilidade do mundo oficial e o assédio da polícia política, a PIDE, que não perdeu oportunidade de o assediar, chegando mesmo a enviar-lhe um ofício em que foi avisado que estava proibido de sair à rua por ser considerado sujeito de maus costumes. O poeta classificou esse documento como um ato surrealista. Quando a Revolução dos Cravos, em 1974, liquidou a ditadura instaurada por Salazar em 1933, ele, especialmente, recebeu a notícia como uma libertação. Cesariny, figura central da vanguarda, e presença incontornável da poesia portuguesa, deixou de existir a 28 de dezembro de 2006.
 
Numa das muitas temporadas que passei em Portugal, pedi a uma das funcionárias da Casa Pessoa que me ajudasse a entrar em contato com a Cesariny, mas ela aconselhou-me que eu evitasse me expor a um violeto desaire que certamente se traduziria numa má recordação de Portugal. E disse-me que duas semanas antes o poeta inglês Michael Hamburger, de visita a Lisboa, quisera falar com ele. Como sabiam de seu caráter, adiantaram-se a informá-lo do interesse do autor de A verdade da poesia. Ele não estava em casa, estava com amigos em um bar próximo. Ao saber do pedido de Hamburger, apenas disse em tom aborrecido que não tinha tempo para falar com um homem de letras, que não tinha interesse em conhecer poetas, principalmente se viesse de outro país. Eu, claro, a quem interessava conhecer aquela lenda viva, o cônsul de André Breton em terras lusitanas, o homem de arrogância e soberba, o único autor que havia lançado na poesia portuguesa uma nota cheia de humor, aos rebeldes e intransigentes. O poeta que havia seguido à risca as lições de seu professor de francês estabelecendo tribunais para expulsar os réprobos ou heterodoxos do reino do surrealismo, como seu parceiro nas primeiras lutas, Alexandre O’Neill. Interessava-me em tratar de Cesariny, o poeta que nunca percebeu que sua obra plástica supera em importância o que fazia com a palavra escrita. Escutei o conselho da minha amiga da Casa Pessoa e abandonei o interesse.
 
O acaso, como tudo na vida, me possibilitou um encontro. Numa noite de primavera, Hermínio Monteiro, então à frente da Editora Assírio & Alvim, responsável pelo resgate de sua obra, até então dispersa e publicada em livros descuidados, crivados de erros de impressão, por editoras extintas, convidou-me a acompanhá-lo à Feira do Livro de Lisboa. Ele não mencionou que Mario Cesariny estaria presente. Sem aviso prévio, estava marcada uma conferência do poeta surrealista, que culminaria num coquetel. A conferência tornou-se um acontecimento. O poeta surrealista, com gestos afeminados que o tornavam uma caricatura, desdentado, extremamente magro, com uma cabeça que lembrava as caveiras de Posada lançou o seu discurso sobre a validade do surrealismo. Durante o coquetel, Monteiro me apresentou a ele, que me olhou com indiferença, mas quando seu editor mencionou que eu era mexicano, sua atitude mudou, ele deixou cair a máscara e começou a falar comigo com uma cordialidade que me desconcertou. Falou sobretudo da sua viagem ao México, da sua amizade com Octavio Paz e sua visita frustrada a Leonora Carrington, por quem tinha grande devoção. Confusão da língua. Cesariny nunca se interessou pelo espanhol, embora a entendesse em termos gerais. Quando perguntou a Paz sobre o endereço da pintora, este o respondeu que morava em Chihuahua. Paz não foi preciso: à mente do poeta português veio-lhe o remoto estado do norte associado às andanças de Artaud. Só no regresso a Portugal se inteirou do seu erro. E não deixava de lamentar o equívoco.
 
Com a morte de Cesariny também morreu uma época. A vida permitiu-lhe viver a mesquinhez e a pobreza espiritual de um país governado pela mão invisível, mas onipresente, do ditador Oliveira de Salazar, e assimuir o papel de écrivain méchant, fazendo de todos os atos de sua vida um desafio constante. A vida também o permitiu, no último trecho de sua existência, testemunhar o renascimento do país que possibilitou a Revolução dos Cravos naquele dia de abril de 1974.
 
O surrealismo chegou tarde a Portugal. Não teve seguidores em sua primeira hora, quando um punhado de poetas e pintores franceses buscavam aliar a realidade e o desejo, o mundo dos sonhos procurando se inscrever em um mundo de liberdade moral e estética, subvertendo a ordem da razão burguesa. Nascido em 1924, Cesariny era jovem na década dos anos 1940 quando com alguns amigos deu vida ao primeiro grupo surrealista organizado. Já podemos imaginar o escândalo que rebentou com a sua irrupção disso no Portugal daqueles anos. António Maria Lisboa, que morreria muito jovem, e Alexandre O'Neill, também morto relativamente cedo, seriam os outros dois nomes que formariam a tríade surrealista mais proeminente.
 
Cesariny não apenas procurou adaptar os métodos da poética desenvolvidos por seu mestre Breton no campo das letras, mas também colocou em prática seus procedimentos inquisitoriais. Ergueu-se como sacerdote da pureza e da ortodoxia surrealista e expulsou O’Neill de seu grupo. Para o surrealista que foi Cesariny, o núcleo de sua poesia partia da matéria real que depois o inconsciente modificaria substancialmente. Como apontou a crítica portuguesa, seu mestre foi Cesário Verde, quem o guiou pelas deambulações urbanas de Corpo Visível.
 
Atento a um dos traços mais marcantes da poética surrealista, aquele que se refere ao visionário, não deixou de notar a força que havia em Teixeira de Pascoas, como aponta Fernando J. B. Martinho, ao destacar do esforço do poeta para enfatizar a importância de Pascoaes numa época dominada pela presença da obra pessoana. Quase poder-se-ia dizer que escreveu contracorrente, ou em contradição, à figura de Pessoa, estabelecendo uma querela que o levou a elogiar e a simplificar Álvaro de Campos. Não deixava de ser uma surpresa que o poeta das negações considerasse que ainda havia vida no saudosismo apregoado por Pascoaes, e que o autor de “Ode marítima” considerou na etapa de maturidade de sua vida como um peso morto na tradição poética do seu país.
 
Numa entrevista de 1985, referida pelo próprio Martinho, Mário Cesariny destacava com cáustica ironia: “O que me irrita é que se tenha colocado Pascoaes à margem, como um provinciano, e que tenhamos essa loucura de Pessoa. Um está no café, em Lisboa, e outro na montanha (Pascoaes nunca viveu em Lisboa, passou toda sua vida em seu povoado natal nas montanhas do norte de Portugal). Pascoaes tem uma grandeza, uma respiração... Mas Pessoa tinha um talento para a expressão literária que o outro não alcançou. Pascoaes carrega nas costas toda a montanha, com os excrementos e o céu, e não se separam. Pessoa é um destilador — e escreve tão bem que a gente que aceitá-lo...”
 
Cesariny em que pese seus atos de provocação e de subversão tinha um grande domínio do ritmo e da rima, e grande gosto pela poesia tradicional, que ele recriou incorporando o substrato do humor negro, tão caro ao seu mestre do surrealismo francês.
 
Para Cesariny o poeta era apenas o autor de um poema, mas também um ator, um mágico, o mágico de uma comédia lírica e épica. Em sua poesia e em sua vida houve muito do menestrel que exibindo suas habilidades na ágora não só de um teatro mas também na rua — um dos seus livros, chama-se justamente Manual de Prestidigitação, aludindo sem rodeios ao universo teatral.
 
E Shakespeare forneceu-lhe algumas citações e ideias. “You are welcome to Elsinore”, Hamlet na costa lusitana foi o álibi para aludir eufemisticamente ao reino cadavérico que era o Portugal dos anos 1950. O próprio Martinho aponta que não é por acaso que um dos seus poemas de homenagem esteja dedicada a Antonin Artaud, que fez do teatro e da revolução que quis levar adiante nesta expressão, o centro de sua vida. Nesse texto, que é um dos mais marcantes da sua obra, expressa qual será a questão nodal de toda literatura dramática, aquela que se refere às tensões entre identidade própria e alheia, sem deixar de aludir à estética, que faz sua, de transe ritual e transformação radical do espectador/ leitor proposto pelo poeta homenageado
 
O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem — nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
 
Dentro do caos de sua vida poucos escritores se expressaram com tal rigor e exigência.


* Este texto é a tradução de “Mario Cesariny: el último de los surrealistas”, publicado na revista Casa del Tiempo, n.1, outubro-novembro de 2007, p. 15-17.

Comentários

Cedric disse…
Ótimo texto!

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