Hlynur Palmason e a dissolução agônica

Por Jorge Ayala Blanco



 
Em Terra de Deus (Vanskabte Land/ Volaða land, Dinamarca-Islândia-Suécia-França, 2022), o desarmante terceiro filme do autor dinamarquês Hlynur Pálmason (Irmãos do inverno, 2012; Um dia muito claro, 2019), Lucas (Elliott Crosset Hove, exausto), um jovem padre dinamarquês do século XIX é enviado no meio de um verão sem noites para construir a primeira igreja no sul da implacável Islândia e opta por fazer a viagem por terra desde o norte para tirar fotos enquanto anda, com a ajuda de um tradutor (Hilmar Gudjonsson) e o difícil guia de patriarcal barba branca em parte inacessível Ragnar (Ingvar Eggert Sigurdsson).
 
Os três completam a façanha de uma jornada através de planícies, montanhas íngremes, rios caudalosos e horizontes que desaparecem, embora entrando em crise físico-moral ao longo da jornada e desabando em agonia, mas conseguindo ressuscitar no porão do bem-adaptado agricultor Carl (Jacob Lohmann), sendo bem cuidado pela filha mais nova ainda criança e a pianista Ida (Ída Mekkín Hlynsdóttir) e a triste filha mais velha Anna (Victoria Carmen Sonne) que ensinará o auto-reprimido Lucas a montar, cativando-o e inspirando-lhe uma espécie de amor proibido, que se torna avassalador à medida que a igreja missionária é construída sob a dura e ressentida sabedoria desejosa de perdão de Ragnar; o jovem, por sua vez, sucumbirá à sua própria severidade e ao ímpeto de seus paroquianos como forças da natureza, a tal ponto que, com o primeiro badalar do sino e o choro de um bebê no meio da inauguração da nova paróquia, o sacerdote foge a cavalo, mas o xenófobo Carl o alcança e o esfaqueia com sua absolvição, concluindo assim sua trágica dissolução agônica.
 
A dissolução agônica baseia-se explicitamente num conjunto de sete fotografias arcaicas tiradas por um padre que são preservadas da primeira viagem missionária dinamarquesa à rústica e inconquistável Islândia e noveliza-as para fazer um tributo arrebatador à fotografia primitiva e, portanto, ao pré-cinema, aos impossíveis volumes que são transportados no lombo de cavalos de pernas curtas ou que navegam em rios intransitáveis ​​como a cruz embrulhada conduzida pela correnteza envolvidos aos pertences também carregados nas costas e difíceis de carregar; um tributo às pitorescas figuras insubstituíveis que posam imóveis diante do caixote durante insuportáveis minutos, para um mundo que se nomeia e ao mesmo tempo se esfuma deixando apenas imagens hieráticas rígidas ou assombradas da sua extinção.
 
Eis uma epopeia quase mística/ antimística, revendo a história do aparelho fotocinematográfico e seus significados filosóficos “não para voltar às origens do historiador, mas para encontrar os vínculos do pré-cinema com a ciência, as primeiras descobertas do uso da imagem determinadas pelo desenvolvimento da pesquisa e tecnologia”, onde “o perigo da morte funciona como um gesto que pode preservar através do registro mecânico, mas também devastar, aniquilar” (nos dizeres de Adriana Bellamy em O cinema como ensaio), através de epifanias sagradas análogas aos delírios fotográficos da corajosa cinegrafista Maria von Hausswolff retomando o fôlego plástico dos insuperáveis ​​ e pioneiros cineastas escandinavos e ressoando na espacialidade estendida dos acordes da música de Alex Zhang Hungtai atmosfericamente sustentados e desesperadamente prolongados.
 
A dissolução agônica coloca em posição de comando a superexpressiva relação dialética visual vertigem/ êxtase, para transformá-la em seu programa estético de ação, com rajadas de câmera e paradas estáticas-extáticas, altamente valorizadas pela calibrada edição de Julius Krebs Damsbo durante 143 minutos de intensidade inflamada; desde a rápida entrada do herói num templo quase impossível de acompanhar, passando por um travelling lateral e o seu imóvel diálogo com um superior, passando pelas cadeias de visões da imensidão da planície ou da interminável planície congelada; a terrível história oral que o guia Ragnar conta sobre o ódio às enguias malignas enquanto na mobilidade de múltiplos planos o padre se despe para abraçar uma cachoeira e tem a barba raspada por seu tradutor para se tornar outra pessoa com os pés na realidade; os fabulosos pannings de eternos 360 graus no colapso moribundo do clérigo cristão ou no casamento rural ultramontano; as confissões rasgadas diante das câmeras do rude multipecador Ragnar como uma ladainha amaldiçoada (“Tenho medo de Deus, rogai por mim/ eu matei seu cavalo, rogai por mim”) antes de ser atacado por um Lucas furioso que de repente se torna um selvagem capaz de bater a cabeça do outro contra uma pedra do rio e vê-lo sangrar à morte; ou a sangrenta passagem do tempo e das estações lida sobre o cadáver de um cavalo caído na montanha, apodrecendo aos poucos, até se tornar uma profusão de ossos e pegadas vermelhas fossilizadas.
 
A dissolução agônica é dominada por um sopro fordiano onde o sofredor Lucas é homologado com Henry Fon de Paixão dos fortes (1946), mas em eriçada e oculta decomposição, como o protagonista corruptível do fundador interiorista espiritual Diário de um pároco de aldeia de Bernanos/Bresson (1951), decidindo que apenas o abismal pode dar conta dos insondáveis  abismos existenciais e cósmicos da alma cujas dimensões só podem ser vislumbradas como ecos ou pontas de um iceberg, enquanto o lamentável Lucas vai perdendo a confiança primária e afunda nos valores da natureza, da língua estrangeira, da esmagadora cultura rústica, da carne e do homem para si mesmo, a violência, o crime e a perda irreversível da fé.
 
E a dissolução agônica rejeita radicalmente qualquer fuga lírica ou elementar na repentina desaparição do jovem religioso descrente, simplesmente caindo, desaparecendo, apenas deixando na imensidão sua batina desfeita, mas enviado pela chorosa pequena Ida de regresso voluptuoso à Natureza. 


* Este texto é a tradução livre de “Hlynur Pálmason y la dilución agónica”, publicado aqui, em Confabulario.

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