Satisfazer, morrer: notas sobre Baudelaire e Pasolini

Por Eduardo Galeno

Jacques-André  Boiffard, Gros orteil, sujet masculine, 30 ans, 1929. Centre Pompidou.


Quando Baudelaire pregou, no século XIX, pela manutenção da ambiguidade que impera no seu enquadramento poético; quando, por outro lado, no século seguinte, Pasolini encarna em Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975) a substância característica e insistente nos afetos pós-industriais; ambos não fazem mais do que uma única e mesma coisa: o relato da dupla (in)consciência existente entre o frenesi da festa e o cálculo da morte.
 
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É o ano de 1857. As flores do mal é publicada pela primeira vez. Aos 36 anos, Baudelaire dá o primeiro grande passo para a constituição das poéticas modernas (ou modernistas). Destituído daquele complexo romântico da Alemanha – que, por lógica e definição, era uma espécie de querela ao constructo da nova Europa –, os tópicos baudelairianos insistiram em ver e em denotar, obsessivamente, a essência do Mal. Assim, essa poesia maldita inclinada a refazer o percurso histórico das práticas de representação do tempo, mas refazer criticamente, importou Baudelaire à contraposição do elemento mais primordial que a alienava: o Bem. O Bem é a maioria, o velho, o feio, o careta, o linear, a raça de Abel.
 
Nas tentativas de preservar o inútil em vez da acumulação, aproximando Satã dos prazeres do dispêndio (o assassino Caim), a marca da comunicação poética passa da economia restrita à economia geral. Ele – Baudelaire – ataca, assim, o sentido produzido pelo trabalho da linguagem, o discurso. O que importa, nesse recinto, não é mais a diluição completa do conceito – do conhecimento –, e sim o algo a mais, esse feedback positivo das palavras, o sim ao devir-vagabundo. O improdutivo total, não mais acumular. Por esse motivo a festa, por esse motivo a hipermetáfora: a Beleza do Símbolo.
 
Daí esses atos impensados – porque radicais – contra todo dispositivo transcendental e moralizante. Em outros termos, o estoque do Absoluto já estava sendo queimado muito antes das filosofias da contingência e das localidades emergirem nas discussões a partir de Martin Heidegger. Esse talvez seja o legado das letras de Baudelaire: o de conseguir atravessar, por intermédio das figuras do fugidio, os modos em que o Tudo vira pó, em que o fechamento se dispõe e se interpreta como deslocamento. A deslocação prefigura o presente: sendo o Outro o eterno e o imutável, “por modernidade eu entendo o transitório” (O pintor da vida moderna, de 1863).
 
O que significa? Que existe uma parte dentro do escopo do presente. Uma parte que concentra todo o esforço do indivíduo na luta temporal – e também espacial, dada a relevância que Paris tem para ele –, a fim de que surja em si mesmo uma imagem nova (mas já antiga): a imagem da festa. A festa desobstrui a passagem do que é Mal, uma passagem para o Mal. Por exemplo: Baudelaire é radical não porque, como os românticos eram, seja vulgarmente antiburguês, mas porque se identifica numa recusa profunda e enraizada no princípio de afirmação. A densidade do ethos do flâneur e do dândi não é justo essa: a de se comportar diretamente para o Mal?
 
Quer dizer, em Baudelaire, a reificação pessoal é assumida diante da despossessão social (que é sempre imposta). Essas mazelas se fundem em qualquer ato enunciativo dos seus poemas, dos versos aos de prosa. Para isso, o duplo da condição de alegria (festa) se coloca na tristeza, bem podendo formar um outro significante: morte. A força que o faz escrever incita a discrepância nas partes, mas ao mesmo tempo as identifica. Os temas tão próprios a ele mesclam o dispêndio do gozo vitalista à angústia. Vejam o ciclo La mort (de Les fleurs du mal), vejam que quem diz “viva a revolução!” também diz “viva a morte!”. E tirem suas conclusões.
 
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe? [Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu, que importa?]
 
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Pensemos, agora, na história dos vagalumes de Pasolini. Ali, o cerne do movimento da poesia de Baudelaire se evidencia claro como água. Pois, além de demonstrar o ponto nevrálgico da relação dentro/ fora, o claro/ escuro do Mal, as injunções são perpassadas por um estágio de Vazio, ou seja, a imagem do “alguma coisa” (indeterminação nomeada no seu artigo publicado no Corriere della Sera, a 1 de fevereiro de 1975) determina o misto que insere a morte dos vagalumes, seu desaparecimento, como a ponte ao descobrimento de algo.
 
Pergunta: do quê? Da homologação cultural, do genocídio, passado aos italianos, segundo Pasolini, no espaço da revolução antropológica que o fascismo demonstrou no momento em que sucedeu, durante o fim da II Guerra, o surgimento dos novos núcleos de poder na Itália (a transferência do fascismo fascista para o fascismo “antifascista” da democracia cristã). Ora, é justamente o que Salò, seu filme apocalíptico (e o último da carreira), tenta pegar. Salò, interpretando o romance (experiência-limite) de Marquês de Sade, interpreta também a ficção da república-fantoche.
 
Contudo, a sua interpretação não vem ao caso de ser puramente descrição do “real”, existência de um “real”. As fantasias do erotismo sadiano, pelo contrário, revelam que o mundo é feito de corpos, mas corpos fantasmáticos. A fantasmagoria de um filme como Salò incide na diferença: não há um sadismo puro, porém uma linha curva no qual o sadismo opera como masoquismo. A violência cometida ao Outro tem sua razão de ser: isso é efetivo, essa coisa se efetiva. Para usarmos outras palavras, o crime é cometido, mas consensualmente. La meglio gioventù che va sotto terra.
 
Desse modo, não há nada mais anárquico que o Poder. Certamente, o testamento de Pasolini contra as hierarquias da Terra teve a coragem de expor que o ánomos, ao contrário do que se acredita, acopla as Leis (que tanto senhores quanto servos seguem num pacto). Essa tendência que Sacher-Masoch expôs tão bem em A Vênus das peles (1870) ressoa a tensão constante que o consumo teve para Pasolini no fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970: basta vermos, como exemplo, a sua injúria aos cabeludos de 68 (a banda The velvet underground, com o toque de Andy Warhol, em 1967, materializa a mudança cultural e a novíssima recepção do prazer em consumir e morrer em Venus in furs). Necessariamente, a partir disso, Pasolini grafava Poder (em p maiúsculo, inominável, sem figura, sem forma, mas que age).
 
Todo pessimismo esconde sob seu véu uma fuga. Afinal, Pasolini sabia bem que os vagalumes só saem acendendo a noite por aí precisamente em razão de ser noite. A sua obra tardia, girando no entorno desse excesso (prestem atenção no quanto o significante “excesso” casa com o “excremento”, o “exterior”, o “extático” etc.), gruda na essência das trevas, revelando o sentimento de revolta diante da troca da felicidade (real) pelo Desenvolvimento (progresso técnico). Por mais que tenha deixado de lado o messianismo nos últimos anos de vida, a sua língua – criada, é claro, por si – não deixava de sonhar, de ainda unir o compasso do sonho à vida…
 
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Quero pontuar, por fim, algumas demarcações:
 
1) obviamente, o instituto da Poesia, tanto em Baudelaire quanto em Pasolini, está marcado pelas mudanças culturais assinaladas pelo Real. Por isso, a ficção (como narrativa) tem um efeito crucial em estabelecer contatos verdadeiros e duradouros. São mais de 100 anos separando um e outro; portanto, se existe uma clivagem entre os dois, é a partir da própria desenvoltura da arte (aqui, tanto faz se é por poema ou por filme, se a matéria vem do negativo e vai ao positivo e vice-versa);
 
2) a jouissance sinestésica de Baudelaire e a autoconservação contra o discurso da joie de vivre de Pasolini só poderiam advir, então, desse caso: morrer pela festa ou festejar pela morte. As frases hereges que estão entre o anjo e a besta no texto do poeta francês acusam diretamente o fim de Salò o le 120 giornate di Sodoma, quando os dois rapazes dançam numa sala cheia de pinturas futuristas: a dança da comunidade e a voz do excesso são, hoje, a mesma coisa. É mais ou menos assim que o relacionamento entre essas duas figuras “opostas” pode se dar;
 
3) os valores pelos quais a sina alegria/ tristeza está retida não recompensam Baudelaire e Pasolini em unidades. Pelo contrário. Eles apenas se afastam mais ainda, cindindo. Há um quê inútil no prazer em Baudelaire, assim como na renúncia em Pasolini. E isso é simples: pensamos na proposta de Blanchot quando se fala do fracasso no primeiro e, no segundo, do desespero que o assolava (Didi-Huberman);
 
4) a literatura do excesso não é moderna (que falar de Satíricon, de Pantagruel e Gargântua, dos Contos de Cantuária?). O que é moderno é nossa experiência: a experiência do terror em Sade, a experiência marginal em Baudelaire, a experiência corsária em Pasolini. O aqui e agora que corrói a vida fundada na escritura, o desejo e suas faltas, a maneira pela qual eles todos manejam uma narratividade, um modo de dizer – isso tudo alimenta nossa demanda de leitura, nossas leituras (por ironia, às vezes um tanto consumistas).
 

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