O Espírito Faustiano na Contemporaneidade

Por Herasmo Braga


Fausto e Mefistófeles. Xilogravura para a edição do Fausto, de Christopher Marlowe.


 
A égide da metodologia cartesiana de elaborações de categorias consideradas equilibradas e delimitadas acaba por proporcionar formulações no mínimo dualistas. A nossa abordagem converge com os estudos recentes no campo da filosofia da ideia da díade. Além de nos atentarmos que ela vem outorgando o tom das análises, também incutirmos no pensamento das coisas, dos seres exercerem relações sem possibilidades de distinção, mesmo que aparentes.
 
Concebemos, nessa seara, que os entes não apenas se unem, mas se encontram indissociáveis. No tocante ao campo das ideias, ao voltarmos para os primórdios da filosofia, iríamos perceber o quão lado a lado ela se encontra, influenciando e sendo influenciada pela literatura nos mais diferentes contextos históricos. Destarte, em uma perspectiva mais detalhada, diríamos que alguns elementos entre a filosofia e a literatura, nas suas composições, além de serem semelhantes, próximos, também nos revelam determinadas questões que passaram a ficar alheias ao longo da nossa história, sobretudo, a partir da modernidade. Entre essas unidades compositivas, temos a necessária presença da coletividade para suas caracterizações como o fato do atestado da existência de algo só ser possível pela presença do outro. Partindo, portanto, dessa junção indissociável entre os seres, da profunda relação entre Literatura e Filosofia, chegaremos à conclusão dessa díade acontecer em todas as dimensionalidades, sejam elas nas intencionalidades, nas articulações e até mesmo para a concretização e caracterização de algum produto como uma obra.
 
Reconhecemos quão óbvio é que nada surge do nada, sendo assim, toda produção, pensamento, seja filosófico ou literário, só é plausível sua elaboração pela experimentação da vivência, dos entendimentos, das interpretações, do pensamento com os outros. Na mesma acepção, só será possível atribuir como o meu texto, a minha reflexão, o meu olhar, a minha interpretação se os outros tomarem para si a assimilação deles, seja para criticar, conhecer, retificar, ratificar, julgar. Portanto, necessito do outro para formular-me e deles também para constatar a existência minha, das ideias, dos meus textos. Dessa forma, a tríade autor, obra e leitor nunca será provável com a dissolução de qualquer uma das partes, pois só desta guisa não terei apenas o todo, como também, a única possibilidade de existência das partes diante da circunstância de todas elas se fazerem presentes. Então, para a elaboração da ficcionalidade, das minhas indagações reflexivas na busca da compreensão das pessoas e do mundo, só com a efetiva presença do outro em todas as etapas do processo da mimese: pré-configuração, configuração e reconfiguração, no sentido de Paul Ricœur.
 
Ricœur em Tempo e Narrativa (tomo I) refere-se a esse processo como mimeses I, II e III. Destarte, a ideia que circunscreve estas dimensões da presença do outro é que tornará estas constituições miméticas possíveis, pois, sem ele, nenhum desses momentos de ação das mimeses será viável, pois o outro é fundante para realizar essas marchas e nos assegurar quaisquer atuações enquanto sujeitos no mundo. Apesar de ser notória essa tese e, consequentemente, ser fácil reconhecer a impossibilidade de se levar adiante o percurso de transformações proporcionado pelas mudanças miméticas sem o outro, a modernidade procurou e se constitui na tentativa de ausentá-lo. Assim, o ser moderno se formou como sujeito único, autônomo, buscando sempre a autossuficiência, cultivando e legitimando a individualidade e a crença do “apenas a mim basta”.
 
A Modernidade, então, formou-se, tendo como principal característica a centralidade no EU. Junto a esse Eu-Centro, ao longo dos séculos, foram inseridos modos de ser e de se ver pari passu no acentuamento do Eu e, consequentemente, no apagamento do outro. Desta forma, o imaginário social do sujeito moderno era integrado apenas por maneiras individuais, soberbas, vaidades, e o mundo, portanto, era elaborado de acordo com os vínculos relacionados apenas com os desejos, vontades e pensamentos deste Eu-Centro tão autêntico e independente. Assim, nada diferente a esse Eu seria digno de menção ou reconhecimento.
 
No final da Idade Média, surgiu no imaginário social a figura do Doutor Fausto, que parece cristalizar bem todos esses sentimentos primeiros e vindouros da modernidade. Marshall Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade apresenta-nos a figura do Fausto da seguinte maneira: “O que esse Fausto deseja para si mesmo é um processo dinâmico que incluiria toda sorte de experiências humanas, alegria e desgraça juntas, assimilando-as todas ao seu interminável crescimento interior; até mesmo a destruição do próprio eu seria parte integrante do seu desenvolvimento.”
 
Fausto, seria, portanto, esse ser a querer centralizar todas as fortunas humanas em si para que o seu mundo interior fosse tão rico quanto todas as experiências que o mundo possibilitaria para todos, todavia, a autossuficiência e a glória seriam únicas e dele. A excelência do mundo das vivências e das cognições habitaria no seu ser individual. Esses aspectos podemos contar em História do Doutor Johann Fausto, escrita de um anônimo do século XVI, na seguinte passagem em que ele mesmo, um tanto atormentado e inquieto com a possibilidade de ir para o Inferno, chamado de Geena, a vaidade de tudo querer e tudo poder arrefecia a sua alma como podemos ver no capítulo 16: “Doutor Fausto tinha continuadamente um remorso no coração e um pensamento, o de haver cometido uma falta ao renunciar à felicidade de sua alma, prometendo-se então ao Diabo pela obtenção de bens terrenos. Mas o seu remorso era o mesmo da penitência de Caim e de Judas”. Considerava-se, portanto, indigno de perdão, por essa razão, não tinha nada mais a fazer a não ser intensificar mais ainda os seus desejos e trazer para si mais realizações.
 
Notamos, assim, como a centralidade no Eu e na mesma direção do esquecimento do outro faz com que o sentir-se independente fique mais agudo e a vaidade mais robusta a ponto de formular ideias tidas como potentes que, mesmo mancas, superficiais como do Eu ser o único responsável pelo seu destino, pela sua formação, são consideradas válidas, reconhecidas e legitimadas por todos os outros sujeitos. Chega-se ao ponto de onipotência como em Fausto ao rivalizar com Deus e mesmo com as falas um tanto realistas do Espírito, enviado para dar tudo o que desejava, não causar qualquer arrefecimento em sua veleidade: “abusaste por demais do dom precioso de tua inteligência e te declaraste inimigo de Deus e dos homens, a isso não deves culpar a ninguém a não ser a tua altivez orgulhosa e atrevida, por isso perdeste tua mais bela joia e adorno: a proteção de Deus”. Destarte, as características do sujeito moderno e do seu imaginário compõem a maneira de ver, as ambições, as jactâncias convergem no personagem Fausto. Nesta linha, asserte Berman “a manter viva certa consciência fáustica e a contestar a proclamação mefistofélica de que o homem só poderia realizar grandes empreendimentos obliterando qualquer sentimento de culpa e preocupação”.
 
Não é à toa que a história do Fausto continua não só a ser contada ao longo dos séculos como inspiradora para muitos sujeitos modernos e, mesmo quando reconfigurada em novas versões como a de Goethe, segue a convergir com o imaginário moderno no qual estamos submersos, como evidencia Berman: “Homens e mulheres modernos, em busca de autoconhecimento, podem perfeitamente encontrar um ponto de partida em Goethe, que nos deu com Fausto nossa primeira tragédia do desenvolvimento. É uma tragédia que ninguém deseja enfrentar — sejam países avançados ou atrasados, de ideologia capitalista ou socialista —, mas que todos continuam a protagonizar. As perspectivas e visões de Goethe nos ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se Fausto é uma crítica, é também um desafio — ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe — no sentido de imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá em função do desenvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas.”
 
Essas questões que nos aproximam das composições fáusticas expressas pelo autor do século XVI, por Goethe e por Thomas Mann, indicam-nos quão atual Fausto nos é, não apenas no sentido do personagem, mas das suas características, na vontade de potência de maneira individual, na retirada da ideia e de tudo que o cerca da centralidade de Deus, agora substituída pela do homem, um homem individual. Com a modernidade, as características faustianas não só se tornaram mais agudas, mas a principal busca de muitos em ser, mesmo de maneira inconsciente, tal qual. Mefistófeles se encontra transvestido no que, nas mensagens dos instrumentos e ações realizadas pela sociedade moderna ou pós-moderna, nos orienta como valor e fazem com que todos na condição acrítica de dormência automática nos iludamos que a felicidade, a realização, a autonomia, os sentidos da vida, encontram-se em consumo de produtos, em vaidades de papéis dos carreiristas acadêmicos, nas exposições ilusórias de representações do que não se vive, e sim, do automarketing que realiza sob a condição vazia de experiências nas redes sociais, nos cargos de chefia, na foto exposta do funcionário do mês, nos cargos e disputas políticas em todos os níveis partidários, administrativos. Uma grande rede fáustica em que o espaço para reflexão e/ ou arrependimento ou possibilidade de crítica é logo apagado pelas urgências que a vida contemporânea impõe.
 
Poderíamos, sem maiores dificuldades, ver e nos reconhecer no sujeito moderno e hoje contemporâneo, centrado em si, com seu olhar supremo, que nada o detém e que tudo a ele é possível e disponível nestes dois trechos do nosso autor anônimo do século XVI, ao se referir em um dos seus passeios no específico caso do Palácio Papal e na observação de todos que se encontram nele:
 
“Ele também visitou, invisível, o Palácio Papal, ali viu muitos criados e cortesãos, assim como muitas delícias, que eram servidas ao papa com tamanha abundância que Fausto disse a seu Espírito: ‘Caramba! Por que o Diabo não me transformou em um papa também?!’. Doutor Fausto reconheceu que eram pessoas como ele, cheias de presunção, orgulhoso, soberba e temeridade, entregues à gula, ao vício da bebida, à fornicação, ao adultério; era tal a impiedade do papa e daquela gentalha que ele logo disse: ‘Eu achava que era um porco ou uma porca do Diabo, mas ele ainda tem de me manter por muito tempo na engorda. Esses porcos em Roma já estão no ponto de abate e prontos para serem assados e cozidos.’”
 
Vejamos agora no quarto ato denominado “Alta região montanhosa”, na peça dramática de Goethe:
 
Mefistófeles
Qual será pois essa ânsia tua?
Decerto algo é de ousado e belo;
Já que tão próximo pairas da lua,
Para ela atrai-te o teu anelo?
 
Fausto
Em nada! Este âmbito terreno
Tem para a ação espaço assaz.
Realizo nele o intuito em pleno,
De esforço e arrojo sou capaz.
 
Mefistófeles
A auferir glórias te destinas?
Vê-se que andaste com heroínas!
 
Fausto
Poder aufiro, posse, alto conteúdo!
Nada é fama; a ação é tudo.
 
Mefistófeles
No entanto encontrar-se-ão poetas,
Que, a alçarem tuas gloriosas metas,
Inflamem com chavões patetas.
 
Fausto
Nada, a ti, disso se revela,
Que sabes do homem, do que anela?
Teu ser de aguda, hostil pesquisa,
Sabe do que o homem precisa?
 
Mefistófeles
Cumpra-se pois tua fantasia!
O alcance do teu sonho me confia.
 
Fausto
Percorreu meu olhar o vasto oceano;
Cresce, e em si mesmo se encapela, alto;
Logo após se desmancha e ao vasto plano
Da orla, se lança em tumultuoso assalto.
Amuou-me. O gênio livre, independente,
Preza o direito e o seu lugar à luz,
Mas a arrogância, a exaltação fremente,
Só mal-estar no espírito produz.
Julguei-o acaso, e firmei bem o olhar;
A onda estacou, para depois recuar;
Após vencê-la, a vaga ignara a meta;
Chega a hora, a brincadeira reenceta.
 
Mefistófeles
(ad spectatores)
Que grande novidade aí se dá!
Sei disso há mais de cem mil anos já.
 
Com base nos trechos retirados que abordam em épocas distintas o mito fáustico, percebe-se o quanto nos assemelhamos mesmo com a própria obra anônima do século XVI, relembrando o trecho “eram pessoas como ele, cheias de presunção, orgulhoso, soberba e temeridade, entregues à gula, ao vício da bebida, à fornicação, ao adultério”, no dizer do grande filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk em Ira e tempo: ensaio político-psicológico, no tocante à questão de como nos é acentuada essa centralidade do Eu no mundo moderno atual e chegando a invadir até a nossa configuração enquanto ser. Em tom de consciência-crítica do momento, nos dirá, ao perceber o nosso caráter condicionado e midiaticamente de qualquer posição: “Existência e ser-no-centro significam hoje o mesmo. Heidegger certamente diria: existir é ser-retido na médio-cridade”. Destarte, tudo que o homem moderno toma para si que se confunde com si mesmo sempre é algo idealizado e potente para ele. Espelhado na sua eficiência em ser. Algo como reiterado por Mefistófeles, “Decerto algo é de ousado e belo”.
 
Além de ser algo esperado de extraordinário, de um efetivo vaidoso romântico, no dizer de René Girard, senhor pleno de si e desconhecedor de qualquer outro que não esteja perante o seu espelho. Assim, de toda vontade realizada como nos diz em Goethe: “Realizo nele o intuito em pleno,/ De esforço e arrojo sou capaz”. Portanto, não necessito de outros na minha trajetória, pois não sou influência, e sim, influente e grande realizador, e mesmo quando ocorre momentos de reflexão do tipo “Que sabes do homem, do que anela?/ Teu ser de aguda, hostil pesquisa,/ Sabe do que o homem precisa?”, Eu senhor de si e independente do outro asseguro: “O gênio livre, independente,/ Preza o direito e o seu lugar à luz,/ Mas a arrogância, a exaltação fremente,/ Só mal-estar no espírito produz”. Não é à toa que além do trocadilho da vaidade inverdade que tanto enaltecemos tem nos levado a perdas de sentidos e reverências. Como nos explicita Sloterdijk antes de nos apontar o motivo de tudo que advoga desta “Existência e ser-no-centro, contextualiza-nos, mesmo problematizando a questão da ira, irá elucidar o mundo corrente e suas transformações: “entramos em uma era sem pontos de coleta da ira com perspectivas mundiais. Não sabemos mais, nem no céu nem na terra”, assim, diante deste sentimento global, ele nos descreve a sociedade na qual estamos inseridos: “Ela não gera senão uma embriaguez insatisfeita e quase não leva mais a termo outra coisa além de ações expressivas isoladas”.
 
Com toda essa vigência de perdas de sentidos, aspectos históricos e tradições, são expandidas novas formas de comportamento que só vão acentuando os comprometimentos dos indivíduos e suas vidas sociais, por exemplo, as mediações internas, que podemos nos debruçar noutra ocasião, em que pesem ser mais constantes, mais acentuadas, pois se esquece cada vez mais o reconhecimento do outro. Mesmo que em um mundo de “espumas”, na leitura de hoje do mundo por Sloterdijk, ocorra uma provocação deste Eu para a insegurança como no seu Eu soberano, percebe que como não atingirá sua integridade moral, distinta, única, superior, mas apenas algum temor no afronto físico, então se dissipa em seu ser qualquer abalo forte. Pois, de todas as outras formas que para ele realmente importa, vê-se seguro, mesmo que em seu ser apresente “mal-estar no espírito”, não será algo insuportável a ponto de desistir de si e ter de reconhecer o outro.
 
 

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