Nhambiquaras & glitches

Por Eduardo Galeno

Joseph Beuys. Hasengrab, 1964/1979. Art Gallery of Ontario.


 
Rumores
 
1. Digamos que não é no imediato, fundado à risca por uma visualidade pura, que o rumor é feito. Digamos que seja um deslocamento simples, mas preciso. Portanto, poderíamos dizer, ou supor, que a linha percorrida por ele, o rumor, dispõe de habilidades, técnicas e modos.
 
2. [para ser redundante aqui] É por isso que o dispositivo do rumor não pode ser uma singularidade, “una”; ele remete a vários índices de partes que podem ser desiguais.
 
3. Nesse sentido, o rumor treme, vacila, gagueja. Há rumores.
 
4. Os rumores são, em contrapartida à forma, aqueles suntuosos elementos de deflagração de senso, se revoltando contra esse Deus exigente e sua maneira de ser que modulam as aparências do mundo (da infralinguagem: o mundo da linguagem dentro de si). Eles — rasgões da língua — abjuram das certezas de sua origem, ratificam uma cautela desinteressada. Essa cautela, porém, não é uma renegação; o seu ‘sentido’ é esclarecido num outro (ambivalente).
 
5. A sensação principal dos rumores é, assim, a deferência da utopia com a hecceidade (extralinguisticamente, no mesmo momento em que se vê detida a uma ponta, e uma ponta invisível [u-topia], também se declara e compreende a si, verificando seu ipse).
 
6. Os rumores são mais que utópicos: heterotópicos.
 
7. O que cai entre a divisa entre o estilo e a língua pula a sintagmática e a paradigmática num esforço a mais. Dessa forma, diria que, como função, o rumor alarga e achata.
 
8. Por lógica, os rumores só podem acabar brincando com a ideia de sujeitos e objetos, pensamentos e realidades.
 
9. Nesse modo, o Absoluto se entrega, o A gente se modifica drasticamente e assola a substância tanto da nuance estilística quanto da mensagem linguageira. Há uma explosão, um êxtase no interior da máquina. Nada pode impedir isso.
 
10. A obtusidade pela qual a marcha da voz da máquina passa resulta na intromissão a um acesso magnânimo — excedido — às vias do ruído. Como um sinal de rádio que não sintoniza, mas que tem todas as estações à espera.
 
Fe(i)tiches
 
1. A cisma de um fe(i)tiche dispõe naquilo que a desconstrução latouriana plantava de fato + fetiche, quer dizer, o faitiche é objeto-feito adicionado ao objeto-fada (ou, mais certeiro e melhor dito, aos fatos rumo aos ditos, em conversa com).
 
2. O surgimento de uma terceira posição não apenas modifica o diapasão de a) pensamento e de b) realidade, mas condiciona para que novas pontes surjam e, quem sabe, superem tanto a res cogitans quanto a res extensa (o caso dos remendos e das restaurações após a prática da iconoclastia).
 
3. À baila, trazendo real e artificial, não há separação. Real ou artificial? Os dois.
 
4. Na combinação, um artefato é transportado a partir do seu próprio remodelamento (autoprodução: autopoiesis). Onde está a linguagem, então, que serve de aparato para o aparelho do material objetivo? A linguagem mesma se confunde com seu fim.
 
5. A passagem do ser ao pensante corresponde exatamente à implicância na esfera do feitiço como autônomo. O fetichismo, que não pode ser autônomo, sofre autonomia.
 
6. Exemplum:  assim que a multitude dos sonhos e do imaginário (campo amplo) assola nos estratos e estratificações.
 
7. O pavor e a transferência estão ali na fronteira da fabricação e da imagem. Faz-fazer: faz-falar.
 
8. A dificuldade por uma permissão nos nossos tempos à síntese entre signo e corporeidade é apenas aparente. Nas obras dos artistas, você pode ver difundido todo o maneirismo de “sou carregado por eles”.
 
9. Sou carregado, portanto, e me encarrego de afirmar a vitória do fato, mas igualmente do fetiche.
 
10. Isso não me faz ficar obscuro; a claridade de um feixe de elétrons no laboratório produz tanta lucidez quanto os raios de Iansã no terreiro.
 
***
 
Presumo que tanto o rumor da língua como o fe(i)tiche objetal se caracterizam na navegação entre os planos de imanência e transcendência. Um lado que desobstrui o caminho nos aspectos desse tema é a facilidade que podemos ter ao analisar alguns pontos de referência cultural e/ ou artístico. Se, por isso, a minha leitura se revela anacrônica, é justamente por ser a intenção. Os anacronismos são resultantes de um escândalo antropossemiótico que configura a ação dos ruídos e dos semas nos toques da linguagem (ou fora dela).
 
Não se trata de desenhar uma arqueologia, mas de emoldurar esses espaços limítrofes. A quimera que se desenvolve no recinto da arte (da crítica, mais precisamente) é da exclusão da temporalidade em contraste. O gesto de resgatar maneiras persiste através dos resíduos de matérias artístico-culturais, dos próprios avanços criativos. Embora eles quase nunca perguntem a si — porque, afinal, não têm sequer esse dever —, podemos nos perguntar: em que ponto as artes (na linha da criação), ou atos de arte, são assimétricos?
 
Eu tenho uma resposta: elas não são. E de maneira alguma.
 
A simetria prolonga a ideia de que não há disparidade nem hierarquia. Hoje, somos simétricos menos pela formação do algoritmo totalizante do que pela fortuna natural do “desenvolvimento” — vai essa palavra na falta de outra melhor — das artes. Diria até que a responsabilidade da combinação está na superfície de toda a história cultural: indo da poesia de Horácio e a festança ctônica romana a Warhol e a generalização midiática nos Estados Unidos após a II Guerra.
 
Em qual lugar quero pousar, então?
 
Nesse: nenhum gênero existe sem que tenha sido de outro [gênero]. Quero notar aqui que o paralelismo não é uma analogia, como se fosse uma metáfora, mas um processo real em que se instalam processos emergentes nos signos culturais e artísticos. Constituindo uma compreensão formal da cultura/ arte, essa explicação — no ato de formalizar — destitui a separação e torna possível e visível a reconciliação nos trâmites de objetos que nunca foram relacionados anteriormente.
 
Mas avancemos: onde isso se revela com a minha leitura sobre os rumores e os fe(i)tiches?
 
Fazendo parte do meu cotidiano de leitura, que não está nem na corrente letrada da literatura (gráfica) nem no pressuposto intelectual de pesquisa (saber), acredito e sustento que existe um estímulo que reage igual em relação a algumas poéticas diferentes entre si, como no caso do canto dos nhambiquara, de um lado, e o álbum de 2018 de Jan Jelinek, do outro. É um assunto que não deve ser explicado só racionalmente. Apenas sentido por um estímulo, estímulo conceituado.
 
Esse auxílio da intuição e da reflexão apresenta para mim um dos motivos contidos na força que impera em poéticas que não estão voltadas à ditadura da palavra. Me faz questionar se, caso a palavra seja uma insígnia incontornável da verdade, ela só pode, no caso da distorção no canto do povo nhambiquara¹, ser sustentável em nível de abstração (num marco em que a palavra se torna voz). É para isso que, aliás, a incorporação do glitch de Jelinek em Zwischen², nessas aberturas retóricas, influi no outro ponto.
 
Quando Lévi-Strauss, em 1955, apresentou ao mundo, através da sociologia de campo, que a eidética do homem “natural” — o homem primitivo — não é anterior nem exterior à sociedade, que os nhambiquara, as flautas dos nhambiquara vistas por ele uma vez eram um cromatismo provindo de madeiras mal esculpidas, Lévi-Strauss nos sugeriu um apontamento peculiar e que cabe no texto: os povos extramodernos, numa voz extramoderna, fazem fábulas — assim como nós, modernos! Como esse empenho aparece longe temporalmente, o que restou foi seu rastro: um diálogo com vozes distorcidas, falhadas, é uma ponte cultural. Assim que percebo ao ouvir seu som.
 
Em Zwischen, também há história, há conto. Principalmente: há poesia. A sonoridade com que Jelinek induz ao criar um trabalho de esquecimento semântico, por meio do qual a tentativa de exagerar na informação é retida, produz uma exigência construtiva de narração. Lady Gaga, Marcel Duchamp, Yoko Ono, Slavoj Žižek: eles tanto combinam os lugares como disjuntam. As manhas comunicativas ressoam no cosmos de uma linguagem em declínio, pobre, mínima. O quadro do álbum é fantástico e, parece, se inclina àquela máxima beckettiana: quanto pior, melhor.
 
Nos glitches, a voz onomatopaica é desnaturalizada. Quem faz dessa virtualidade uma progressão é a voz que, exalando um não-sentido, exala uma fábrica de imagens. Idolatria. Penso: os rumores dessas falas cortadas de uma peça radiofônica são os mesmos rumores que estão no jogo do diálogo dos nhambiquara: sem a posse plena da palavra, eles têm a posse total da linguagem (mesmo como escape). Isso é confuso, mas acontece.
 
Como fetichistas, são fáticos. Como fáticos, são fetichistas. A arte, no Brasil não-moderno ou na Alemanha moderna, é um fe(i)tiche. Ela se apaixona nessa fabricação de discurso (dizer), nessa fabricação de verdade (fazer). Quando digo, estou fazendo; quando faço, estou dizendo. É por essas e outras que, saindo pela tangente ao relativismo, apoiar a simetria é apoiar o que há de encarnado em cada comunidade, dos índios aos pós-serialistas. Um deus encarnado — a voz que pertence a mim, a você, a ele — é o deus que nos faz. Toda condição de cultura consiste numa condição de criação.
 
Suponho que a questão entre Cultura e Natureza, que se encontra no cerne do binário rumor-fe(i)tiche, é elementar na seguinte demanda: na detecção das origens (locais) que levaram desvantagens por um motivo historial. Homens modernos e não-modernos recebem a mesma chance para dizer e fazer, cujo plano comum, apesar das diferenças, persiste em todas as circunstâncias.
 
Essa leitura se baseou nos textos de Barthes e Latour. Essa leitura tem a intenção de dar condições às poéticas da não-palavra e necessitou da ajuda da agrafia dos nativos e do universalismo eletrônico.
 
Notas
 
Dialogue of voice distorters pode ser ouvida aqui.

2 Minha música preferida do álbum é Lady Gaga, you once said in an interview that you write music for the fashion industry. Is fashion as important to you as music?, que pode ser ouvida aqui.
 

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