Tempo de retorno: “Os tempos da fuga”, de Giovana Proença

Por Vinícius de Silva e Souza




 
Com reticências Giovana Proença inicia, de maneira simbólica, o seu romance de estreia: há algo anterior que não lemos. Há algo anterior que escapou. O que se relaciona perfeitamente à protagonista, Lígia (Ou Virginia?), que retorna ao Brasil com o início do período de anistia. Enfim é possível voltar para casa, depois de não poucas fugas. Mas a casa que deixou não é a mesma para a qual retorna.  Algo lhe escapou quando partiu; algo lhe foi tirado. E acompanhamos enquanto tenta retomar:
 
“não devemos retornar para onde fomos felizes, mas tampouco avisam sobre a impossibilidade de se deixar o marco do infortúnio. Estamos sempre presos à teia, contemplação do vácuo da dor. Abandona as ruas com a paixão do soldado que deixa o campo de batalha e a paixão do lavrador que ateia fogo à terra. Quantas partidas cabem no bolso?”
 
A autora constrói sua obra, por diversos momentos, com situações vivas e estáticas: a arma firma no rosto. A mão na garganta. As arquiteturas. Os tomates. Tudo transparece, imóvel, como fotografias antigas, enquanto Lígia se move, em busca — ou em fuga. A alternância entre a primeira e a terceira pessoa marca bem a dubiedade da narrativa, sua principal característica. É Lígia ou Virginia que acompanhamos? E quem ela é quando sua história é bruscamente interrompida e outra se inicia apenas para ser novamente interrompida?
 
“a fuga era iminente. Quanto tempo? Quantos eram os tempos da fuga? Assustava-a a concretude, a proximidade da partida. A primeira fuga sucede todas as outras. O peso das fugas que antecedem desaba, cai sobre os ombros. [...] em tempos de fuga, nem a saudade resta”.
 
Mais do que a narrativa, o grande brilho desse romance é a poeticidade de sua prosa. Os períodos, curtos, como que também em fuga, exibem palavras precisas, escolhidas a dedo; uma prosa poética límpida e imersiva. Interrogações surgem durante a leitura e acredito que a intenção era essa mesma: a névoa, a neblina que encobre as certezas, como lacunas nos momentos esquecidos entre as memórias que ficam.
 
Mas, isso que surge como maior acerto e qualidade, também se apresenta como fraqueza da obra. Algumas repetições excessivas causam exaustão depois de certo momento. Entretanto, nada prejudicial ao bom ritmo da narrativa, principalmente na segunda parte, quando o romance ganha um ainda maior aspecto cinematográfico.
 
Os diálogos, tão ricos em determinados momentos, banhados em estilo com sua dimensão, em outros (e são poucos), soam artificiais e pouco funcionais. A protagonista, por vezes, parece inerte e repetitiva, criança ingênua constantemente contendo lágrimas, o que também causa ruídos quando nos aproximamos do fim sem ainda entender bem quem é essa que acompanhamos. A impressão que fica é de que não a vimos verdadeiramente: apenas retalhos que sobraram de quem foi um dia. Algo que também parece se encaixar à proposta da narrativa.
 
Em determinado momento, o livro me fez recordar Deslembro, filme brasileiro sobre uma adolescente que mora em Paris e é obrigada a voltar ao Brasil quando a anistia é decretada. Lígia de Os tempos da fuga guarda muito em comum com Joana, a protagonista de Flávia Castro: o passado que ressurge, o passado que é reconstruído, o passado que não a deixa mas que também é inalcançável.
 
Não surpreende a posição desse romance entre os finalistas do prêmio São Paulo de Literatura. O domínio da narrativa, a correta construção de espaço e de tempo, a inusitada escolha de uma autora nascida em 2000 de tratar de um período não vivido e já tão abordado na cultura brasileira. Mas, a maneira existencial que em muitos momentos se aproxima da prosa de Lygia Fagundes Telles fazem Giovana Proença uma autora para ficarmos de olho.


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Os tempos da fuga
Giovana Proença
Urutau, 2024
156 p.

 

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