Seis poemas dos Diários do Exílio, de Yannis Ritsos

Por Pedro Belo Clara

 


 
I.
(27 de Outubro de 1948)
 
Aqui os espinhos são tantos —
espinhos castanhos, espinhos amarelos,
ao longo de todo o dia, espinhos até no sono.
 
Ao saltarem o arame farpado, as noites
deixam para trás pequenas tiras da saia.
 
As palavras que outrora nos pareceram belas
perderam a cor, como o colete de um velho num baú,
como um pôr-do-sol embotado nas vidraças.
 
Aqui as pessoas caminham com as mãos nos bolsos
ou gesticulam por vezes como se afugentassem uma mosca
que poisa uma e outra vez no mesmo ponto
no rebordo do copo vazio ou dentro dele
um ponto tão indefinido e persistente
quanto a sua recusa em reconhecê-lo.
 
 
II.
(29 de Outubro)
 
O que dormimos é pouco: não chega.
Toda a noite ressonam os exilados —
rapazes cansados, tão cansados.
 
Lá fora estão as estrelas — estrelas enormes
estrelas rapadas cujo cabelo cresce selvagem
como da cabeça de São João Baptista
ou do nosso Panayótis.
Há também pequenas rãs entre o poejo.
De manhã um sol rosado bate-nos em cheio no rosto
reflectido pelo mar da forma mais modesta
como naquelas pinturas baratas à venda nos degraus do Arsákion
e é estranho afinal gostarmos de um sol assim.
 
Um a um, dois a dois, por vezes até mais
detemo-nos no pátio ou na encosta e olhamo-lo.
E este sol bate-nos os rostos com força
como o camponês descalço que vareja as amendoeiras
para fazer cair os derradeiros frutos.
 
Depois baixamos os olhos, olhamos para os nossos sapatos,
olhamos para o chão. Não caiu nada.
 
 
III.
(6 de Novembro)
 
Entardecer. Toca a sineta para o refeitório.
Vozes da rapaziada a jogar futebol.
Foi ontem? Não me lembro — um pôr-do-sol deslumbrante
muito violeta, muito dourado, muito rosa.
Ficámos ali. Olhámos. Conversámos
sozinhos, sozinhos, atirando as nossas vozes ao vento
para atar as coisas umas às outras, para soltar os nossos corações.
 
Chegou uma carta ao pátio:
Mataram o filho do Panússis.
As conversas aninharam-se junto às paredes.
Nada de pôr-do-sol.
 
A noite perdeu as horas. Desfez-se o nó.
O prato de alumínio do Panússis arrefeceu sobre a mesa.
Deitámo-nos. Cobrimo-nos. Amámo-nos
em torno daquele intocado prato que já não fumegava.
 
Por volta da meia-noite o gato preto entrou pela janela
e comeu alguma da comida do Panússis.
Depois entrou a lua
e susteve-se imóvel acima do prato.
A mão do Panússis sobre o cobertor
era um plátano cortado.
 
Então é isso — é preciso estarmos tão tristes
para surgir o amor entre nós?
 
 
IV.
(17 de Novembro)
 
Acendemos um lume com ramos secos,
aquecemos água, tomámos banhos nus
ao ar livre. Fazia vento. Tivemos frio. Rimo-nos.
Talvez não fosse do frio. Mais tarde
ficou uma amargura. De certeza que os meus gatos,
do lado de fora da casa trancada, vão subir às janelas,
arranhar as portadas. E não seres capaz
de lhes escrever uma ou duas palavras para lhes explicar,
para que não julguem que os esqueceste. Não seres capaz.
 
 
V.
(21 de Novembro)
 
O Domingo é um grande guarda-fatos com roupa de Inverno
o Domingo cheira a bolas de naftalina e a salva,
tem a forma de um guarda-chuva fechado num corredor com azulejos.
 
As pessoas falam mais alto Domingo ao meio-dia
os seus passos soam mais alto Domingo à tarde
é mais alto o seu riso Domingo ao fim do dia
talvez para que não reparem que não têm nada a dizer
para que não ouçam que não caminham
e que não há nada de que rir.
 
Ainda assim o Ti Psomás tem muito para dizer
consegue fazer baloiços e barcos a partir de árvores caídas
consegue ler a sina em favas secas
consegue falar sobre as barbas do milho, sobre os pássaros e sobre os anos
até sobre a sombra da vaca ao pôr-do-sol
ou sobre os sapatos que traz ao ombro como se tivesse muita estrada pela frente.
 
É então que me dou conta de que não sei nada,
e que não é apropriado enfileirar versos ao acaso como faço
já que nunca aprendi como se faz uma estrada a direito
por onde o Ti Psomás pudesse caminhar
sem medo de estragar os sapatos.
 
 
VI.
(22 de Novembro)
 
Sol gelado. Não olhei as cores.
Não voltei os meus olhos nessa direcção.
Não conheço nada a não ser a cinza do meu cigarro
e o peso dessa cinza.
Medito nas coisas mais irrelevantes.
 
De noite, assim que estamos prontos para dormir
os ratos acordam
correm de um lado para o outro da mesa
roem-nos os papéis e as pontas dos sapatos
sentam-se nos bancos em que nos sentamos
bebem os restos de óleo numa lata de conserva
e no dia seguinte encontramos um buraco no nosso pão
e as suas pegadas sobre a mesa.
 
De uma ponta a outra, Segunda-feira
está cheia de buracos e de pequenas cruzes de pó. 
 
 
 
***
 
 
Yannis Ritsos, prolífico autor grego, nasceu no primeiro dia do mês de maio de 1909, na localidade de Monemvasía.
               
Ainda adolescente muda-se para Atenas, após a ruína financeira da sua família e duas tragédias assinaláveis: a morte precoce da mãe e de um irmão. A mesma doença que os vitimou, a tuberculose, irá também afligir o jovem poeta, internando-se num sanatório em 1927.
 
A estadia nesse local seria marcante: enquanto convalescia, Yannis entra em contacto com os ideais marxistas, deixando-se influenciar profundamente — o que marcaria, por consequência, grande parte da sua obra futura, pautada por um denominado “realismo social”.
 
Em 1934 inscreve-se, então, no partido comunista grego e edita a sua primeira colectânea de poesia, a que chama Tractor. Dois anos depois, conhece ambos os lados do sucesso ao publicar o célebre Epitáfio: uma obra criada a partir de uma certa fotografia que mostrava uma mãe chorando o filho, um operário, morto em seus braços. Destacou-se de pronto pela clara defesa da vida e dignidade dos trabalhadores, também pelo apelo à resistência e luta por melhores condições de trabalho. Em suma, um exemplo claro da sua primeira forma de poesia, plena de compromisso social e político — porém, desprovida de teor propagandista.  
 
Considerando a época, o aparecimento de uma ditadura de crivo fascista e a invasão da Grécia pelas tropas do Eixo, inicia-se para Ritsos um longo caminho de perseguição política. Sendo um tão declarado, e cada vez mais célebre, membro do KKE, o partido antes referido, a sua obra é proibida e os livros são queimados em praça pública.  
 
No fim da Segunda Guerra Mundial, com o deflagrar de uma guerra civil que se estenderia por quatro anos (embora as consequências perdurassem por décadas), Yannis Ritsos, que nunca escondeu o seu comunismo convicto, é preso. Entre 1948 e 1952 vive a experiência amarga dos campos de reeducação, destinados aos presos políticos. Os seus célebres Diários do Exílio, obra profundamente humana, nascem dessa vivência áspera, e são um exemplo puro do culminar de dois pólos nunca antagónicos: a política e a poesia. Ademais, revelam ainda outro dos aspectos centrais da temática de Ritsos, a dita “poesia do quotidiano”, das pequenas coisas, da atenção ao objecto e ao pormenor — umbral para campos imensos como o silêncio, a solidão e a própria interioridade do “eu-poético”. Num estilo contido e meditativo, chega a ser capaz de uma ternura notável.
 
Muito embora tratando-se de um período cuja recordação não seria feita de ânimo leve, durante o encarceramento a fama de Yannis aumenta: intelectuais estrangeiros solicitam a sua libertação, com Pablo Picasso à proa, e a obra divulga-se por círculos maiores, chegando a ser traduzida em outros idiomas.
 
Nunca vergando o seu carácter nem abdicando das convicções que tantos dissabores lhe haviam dado, após a sua libertação Ritsos investe a fundo na carreira literária, tornando-se com naturalidade um dos autores gregos mais relevantes de todo o século XX. Em 1956, abrandando um pouco o ímpeto político, até pelo clima vivido ao longo da Guerra Fria, pouco propício, em muitos países ocidentais, a alimentar simpatias com os ideais soviéticos, edita uma das mais importantes obras da sua maturidade: Sonata ao Luar. Um trabalho lírico e existencial, ao estilo de monólogo dramático, lega-nos reflexões sobre temas universais como a passagem do tempo, o desejo e a solidão. Seria o começo de uma fase mais introspectiva e filosófica.
 
Já na década de sessenta empreende imensas viagens que o colocam em contacto directo com os seus vários leitores no estrangeiro, embora preferindo países com influência comunista, como a antiga RDA, Cuba e, claro, a União Soviética. É um período bastante fértil em termos criativos, marcando uma mudança na temática do autor: o abraçar dos antigos mitos gregos, passando-os para o tempo presente, com suas gentes e desafios. De certa forma, trata-se de uma humanização dos mitos, donde emergirá o culto dos anti-heróis, pessoas banais plenas de conflitos e tragédias interiores.
 
Em 1967, com a instauração de um golpe de estado, Yannis é novamente encarcerado. Pouco depois, com imensa pressão vinda do exterior, e o agravamento da sua saúde, é-lhe ordenada prisão domiciliária. Já em 1970, regressa a Atenas e, três anos depois, é voz activa nas célebres revoltas estudantis, que acabam violentamente reprimidas. Porém, em 1974, restaura-se a democracia na terra que a viu nascer e Yannis termina todo um espinhoso percurso de reputação reforçada: um herói nacional, símbolo vivo de resistência, quase um guia intelectual capaz de levar o seu país ao nascer de dias mais luminosos e justos.
 
Com fama conquistada, a produção artística continua a um ritmo quase frenético. Vários poemas seus começam por ser musicados e os prémios literários continuam a bater-lhe à porta — sem que nunca aparecesse talvez o mais desejado de todos: o Nobel, claro está.
 
Entrando na nova década, em 1981 surpreende os seus leitores com uma belíssima colectânea de poemas eróticos, comprovando a versatilidade do autor, que também se aventurou pelos campos do teatro e do ensaio.
 
Em novembro de 1990 morre na capital do seu país, por complicações surgidas após um aneurisma da aorta. Foi a despedida de um dos maiores escritores que a Grécia produziu, por tradição um tão fértil berço de poetas inspirados.
 
 
* Seleção a partir das traduções de José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro em Diários do Exílio (Edições do Saguão, Setembro de 2022).

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #633

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Boletim Letras 360º #648

Boletim Letras 360º #634