O homem que ri, de Jean-Pierre Améris

Por Pedro Fernandes



Recentemente o cinema recebeu mais uma adaptação de Os miseráveis, de Victor Hugo. Este talvez seja o seu romance mais adaptado para as telas juntamente com O corcunda de Notre Dame. E ambos, os mais conhecidos do grande público. Mas, além desses dois textos, outro se iguala na quantidade de versões cinematográficas. É O homem que ri. Publicado em 1869, o romance teve sua primeira adaptação para o cinema ainda em 1928, cujo papel do protagonista executado pelo ator alemão Conrad Veidt deu-lhe destaque para outras produções mais conhecidas, como Casablanca, O gabinete do Dr. Caligari ou Das Land ohne Frauen, o primeiro filme sonoro feito na Alemanha no ano seguinte. É bem verdade que antes, Veidt já havia feito um papel pioneiro na sétima arte: foi ele quem primeiro interpretou uma personagem gay no cinema em Anders als die Andem, de Magnus Hirschfeld, em 1919. O papel em O homem que ri foi tão significativo que a personagem Coringa, criado por Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson como rival do Batman, foi desenhada a partir de sua caracterização no filme.

Considerado um drama, O homem que ri é carregado até a última linha, da tragédia clássica e tem forte apelo teatral; a quem já teve oportunidade de saber mais sobre a biografia de Victor Hugo, compreenderá melhor ainda, como essa narrativa é significativa na sua carreira de escritor. Estamos diante de um processo de transição do Hugo romântico, sua grande verve criativa, para o Hugo mais realista e interessado na arte enquanto lugar de denúncia social. Estamos diante de um escritor profundamente entendedor de que deve buscar nos lugares da natureza humana uma resposta para determinadas situações históricas, tal como a miséria que solapava a França de seu tempo. O retrato dessa natureza é profundamente sombrio e é desse lugar que Victor Hugo desenha o sua personagem protagonista do romance.

Todas essas nuances são captadas pela lente do cineasta Jean-Pierre Améris e com uma vantagem além do filme de 1928: o som, que reforça a grande força expressiva que tem o romance. Gwynplaine é herdeiro direto de um dos ducados no império francês. Raptado a mando do rei, o menino é entregue para uma ordem secreta conhecida por submeter crianças a sessões cirúrgicas que as desfiguravam transformado-as em atrações grotescas para obter dinheiro a partir delas. Gwynplaine é uma dessas crianças, tem o rosto desfigurado, condenam-no a um riso perpétuo e extravagante. Fugindo da corte, o responsável pelo ato abandona o garoto que, milagrosamente é acolhido por Ursus, um itinerante que ganha a vida de vilarejo em vilarejo à base de pequenos golpes.

É quando o pequeno Gwymplaine encontra-se com Déa – uma menina órfã como ele e também adotada por Ursus e que tem visão queimada pelo frio intenso a que foi submetida. Os dois iniciarão uma amizade, a princípio de irmãos, mas logo transformada num amor que deverá passar por muitas provações até que se confirme uma possibilidade de estarem de fato juntos. Protegido por uma máscara e sem nunca ter se olhado num espelho, Gwymplaine tem a ideia de mostrar o rosto, quando num dia em que todos com fome e a lábia de Ursus já se tornava cada vez mais rasa . Diante a figura inusitada todos devotam risos, atenção e dinheiro. O suficiente para o menino arrancar numa carreira circense que dia após dia ganha fama por toda França até chegar aos ouvidos da corte.

Levado ao palácio para tomar o lugar de direito deixado pelo pai, é nesse instante que se desenha o ápice do apelo trágico da história. Seduzido e usado pela prima, apresentado como motivo de riso numa corte cuja opulência e o luxo contrasta de imediato com a vida de saltimbanco e separado do grande amor de sua vida, Gwymplaine incorpora a voz do que vem da margem e entre o riso e a desaprovação é enxotado do parlamento.

O homem que ri  se beneficia ainda de outras vantagens que não estavam à disposição de Paul Leni na versão de 1928: o colorido da imagem. Num filme em preto e branco o diretor teve de se apropriar muito das técnicas expressionistas para causar no telespectador o impacto dramático da obra, o que terá feito o filme de Leni está em grande parte das vezes muito próximo dos títulos de terror, como Nosferatu, ou Frankenstein. O resultado obtido por Améris não supera a produção de Leni, uma vez que os dois filmes obtém o destaque devido nos dois contextos em que são apresentados. No caso do francês, o efeito estético e o diálogo costurado integralmente entre o cinema e o teatro são únicos. É um filme indispensável à cinematografia dos que têm seus afetos pela sétima arte.


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