O Livro de Cesário Verde – Cesário Verde (Parte II)

Por Pedro Belo Clara


Se o caro leitor bem se recorda, na primeira parte deste artigo (leia aqui) foram abordadas as principais características da temática de Cesário Verde, o mais proeminente poeta parnasiano português. De entre elas, foi sublinhada a constante dicotomia entre o campo e a cidade, o principal aspecto antagónico da obra deste autor. Mas será ele caso único? De todo.

Curiosamente, o génio criativo do poeta aplica essa mesma dualidade aos alvos de suas paixões. Desenterrando os antigos conceitos de “Mulher-Anjo” e de “Mulher-Demónio”, tão presentes na poesia medieval europeia, adapta-os às diferentes realidades circundantes, fazendo nascer três distintos tipos de mulher: a campestre, a citadina e a do povo. Assim, facilmente se depreende que a mulher do campo é, por aquilo que os bucólicos cenários representavam para o poeta, a mulher tipicamente angelical, tímida, singela, dona de uma beleza bem peculiar e natural. É também frequente adaptar, à sua figura, motivos tipicamente campestres, concedendo adornos de clara intenção erótica, como este excerto do poema “De Tarde” tão bem ilustra: “Mas, todo púrpuro, a sair da renda / Dos teus dois seios como duas rolas, / Era o supremo encanto da merenda / O ramalhete rubro das papoulas!”.

De certa forma, Cesário quase que tocava os limites do paganismo ao envolver a figura feminina nos quadros campestres, como sendo parte integrante dos mesmos – um inocente motivo de louvor e até – quem sabe? – de divinização. Seguindo, por isso, a lógica instalada, a mulher da cidade está obviamente envolta em mistério e fatalmente ligada aos modos citadinos. É fria e altiva, mundana e sedutora; porém, cativa o poeta que irremediavelmente por ela se atrai, ainda que seja constantemente repelido. É claramente a imagem da femme fatale: calculista, dominadora e destrutiva. O poema “Deslumbramentos” foca tal imagem com digna precisão: “Milady, é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal, / Com seu tipo tão nobre e tão de sala, / Com seus gestos de neve e de metal”. Uma vez mais, apesar de lhe adivinhar as demoníacas intenções, o poeta permite-se atrair por este tipo de mulher – da mesma forma que a cidade, centro de doenças e de injustiças, o atrai. Uma espécie de intensa relação amor/ódio, portanto… Sem que o bom-senso ou uma eficaz racionalidade possa imperar.

Como acréscimo a esta ideia, Cesário introduz ainda um novo tipo de mulher: a mulher do povo. Quase que se diria ser uma espécie de subproduto, mas na verdade em nada se compara com as restantes. Entendo a sua possível pergunta, estimado leitor: porque não se relaciona a “mulher campestre” com a “mulher do povo”? De facto, a frieza calculista, a indiferença e a perfídia são exclusiva pertença da mulher citadina. Contudo, a mulher do campo inspira a vitalidade e é dona de uma casta inocência que cativa e seduz – e esses são os pontos de partida para esta nova categoria (designemos-lhe assim). Portanto, a mulher do povo é a típica trabalhadora infeliz que, apesar de tudo, persevera em seu ofício (atente-se aqui num naturalismo deveras mais marcante, onde a figura humana surge oprimida e moldada pelas circunstâncias sociais). Ainda que doente, presa a suas obrigações ou simplesmente necessitada de dinheiro, ela labora de forma estóica – sem jamais lamentar a sua pobre existência. Este ponto, caro leitor, será novamente abordado por Fernando Pessoa, também ele um compassivo defensor deste tipo de mulher (relembro o famoso poema “Ela canta, pobre ceifeira…”). Temos, por isso, a imagem da mulher corajosa, senhora de épica força, que não claudica perante as adversidades da vida – aceitando-as, simplesmente. Desse exemplo, o poeta retira forças e acalma as suas iras, ciente de que suas dificuldades em nada se comparam com aquelas que assombram tais vidas que, no fundo, muito respeita e admira. Embora, acrescento, tal postura advenha de uma certa inocência perante a vida em geral e suas incidências. Ou seja: se verdadeiramente soubesse e sentisse a desgraça que a assiste, por certo que contra ela não se ergueria. É, assim, de uma atitude néscia que nasce a sua coragem (mas, a bem da verdade, admita-se: que tipo de bravura não possui laivos de ignorância ou de insanidade?). O seguinte excerto, do poema “Num bairro moderno”, retrata fielmente essa figura e os sentimentos perante a mesma: “E pitoresca e audaz, na sua chita, / O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, / Duma desgraça alegre que me incita, / Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas, largas”. Repare bem na forma como ele a caracteriza: uma desgraçada alegre que cativa o coração do poeta, dignamente apregoando a sua venda – apesar de magra e raquítica, possíveis sinais de doença. Daqui emerge a tão difícil arte de sorrir perante todas as dificuldades e de simplesmente caminhar, de olhar erguido, rumo a um novo dia.

A temática de Cesário Verde abrange ainda um derradeiro aspecto: a tripla humilhação. Decidi abordá-lo na parte final deste artigo por ser, de certa forma, uma súmula ou consequência directa de outros temas anteriormente explanados. Assim, esta humilhação, que o poeta retrata em alguns de seu poemas, provém de três vias distintas: sentimental, estética e social. A primeira, como o próprio nome permite adivinhar, surge como resultado da rejeição amorosa a que o poeta se submete quando enfeitiçado pelos encantos da “mulher da cidade”. Repare no excerto do poema “Frígida”, aquele que denuncia a atracção por uma senhora inglesa que encontra nos passeios da cidade: “Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite, / Mas nunca a fitarei duma maneira franca; / (…) / Pudesse eu prostrar, num meditado impulso, / Ó gélida mulher bizarramente estranha, / E trémulo depor os lábios no seu pulso (…)”. Assim se compreende como este tipo de mulher despertava os desejos mais recônditos de Cesário, ao ponto de se prostrar, submisso, perante o objecto de sua lasciva paixão.

A humilhação estética planta-se no poeta quando este se fatiga de lidar com a constante incompreensão de seu trabalho, fenómeno que chega mesmo a atingir proporções meramente escarninhas. Apesar de até ter conseguido publicar no “Diário de Notícias”, uma das mais famosas publicações portuguesas que ainda hoje existe, Cesário Verde sempre foi visto como um marginal das artes, alguém que produzia poemas sem um digno valor. O poeta, inclusive, em acessos de raiva, como descreve no poema “Contrariedades”, chega a remeter ao implacável fogo de uma lareira várias epopeias de sua autoria (!). Mas permanecerá sempre fiel aos seus desígnios e propósitos, como bem ilustra esta passagem do poema supra-citado: “Eu nunca dediquei poemas às fortunas, / (…) Só por isso os jornalistas / Me negam as colunas”. Um autêntico revolucionário e idealista, portanto.

Por fim, sobressai a humilhação social, aquela que traduz o impacto que as questões sociais do Portugal de então tiveram na consciência do talentoso poeta. No poema “Humilhações”, onde de forma mais notável todas as três se condensam, retira-se a seguinte imagem: “Saí; mas ao sair senti-me atropelar. / Era um municipal sobre um cavalo. A guarda / Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda / Cresci com raiva contra o militar”. Notoriamente, identificamos a forma brutal como a polícia tratava o povo mais obstinado e reivindicador – e como tal injustiça humilhava o poeta, algo impotente para travar a realidade que diante de si, crua e nua, se desenrolava a cada instante.

Falar de Cesário Verde, agora que os principais pontos da sua obra foram focados, tão limpidamente definidos na obra que aqui se apresenta, é referir um poeta que pintava poesias, que esculpia rimas com a digna nota de um inspirado criador. Da forma como captava a realidade extrapolam-se as inúmeras questões e sentires que mais influenciaram o poeta e que, de forma idêntica, até nós chegam como um testemunho da época. Ainda que envolto sobre a injusta cortina da incompreensão, algo que inevitavelmente leva ao esquecimento de todo um trabalho, Cesário é um pioneiro da poesia portuguesa, mesmo daquela que ainda hoje se produz. E não se considere fácil a arte de escrever segundo os parâmetros deste autor, onde nada era criado por mero acaso. Basta recordarmos a sua influência parnasiana para que isso se comprove: o uso de vocabulário conciso, de decassílabos, a arrumação gráfica de cada verso, entre muitos outros aspectos. Por isso mesmo, escrever um poema não era um simples acto de escrita – antes o elaborar de uma escultura literária. E isso, meu caro leitor, é digno de todo o nosso louvor e admiração.

Em 1886, com 31 anos de idade, Cesário Verde sucumbe finalmente aos nefastos efeitos da doença que, anos antes, havia ceifado a vida do seu irmão e irmã. A estes, dedicou os seguintes versos – sem impedir o aflorar de uma pungente tristeza perante a evidência de que neste mundo, rude e injusto, as doenças afligem “os bons” e deixam incólumes “os maus”:

E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

_____

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Não sei dum infortúnio imenso como o seu!
Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atónito, morreu!


Da mesma forma breve foi a vida do poeta ignorado. Mas, se tal ainda servir de conforto, o seu trabalho viria a ser uma notória inspiração para um outro poeta, por certo um dos nomes maiores da literatura lusófona, nascido dois anos após a morte de Cesário: o grande Fernando Pessoa. Surpreso, leitor? Afinal, o génio esquecido de Cesário Verde venceu a morte e conseguiu tocar o génio de um outro, cujo nome é referência eterna no mundo a que pertence. A respeito desse entendimento, quase compaixão, Pessoa escreveu: Vivo numa época anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele (in O Livro do Desassossego). Embora não atinja a mesma profundidade de Pessoa, a sua peculiar forma de sentir e os laivos etéreos que pairam pelo mais místico dos poemas pessoanianos, Cesário Verde é e sempre deverá ser um nome incontornável da literatura portuguesa, uma referência de ontem e de hoje. Isto, claro está, se desejarmos que no amanhã irrompam novos talentos, os herdeiros de tão precioso legado, os frutos da nobre bravura que caracterizou as árduas existências desses intrépidos pioneiros de outrora.


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