Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac


Por Pedro Fernandes



A liberdade, no sentido mais íntimo que este termo recupera, só existe no estágio mais primitivo de solidão e na nossa existência se manifesta naquelas situações quando somos arrastados para fora de qualquer lei sem qualquer motivo aparente. Pode parecer paradoxal (e é), mas a liberdade se apresenta em parte enquanto realização das forças instintivas, desde que tais forças não se revelem enquanto instinto. Num conto nascido de uma crônica, “As águas do mundo”, de Clarice Lispector, a voz narrativa se interroga: “Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga”. Está esclarecido o paradoxal do ser-livre.

Em Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, se constata o que se esconde no motivo dessa indagação clariceana. Ao perguntar-se por que um cão é tão livre, quem se pergunta compreende que a liberdade se apresenta em graus diferentes, mas o que é, por assim dizer, o mais verdadeiro, é o de um sentimento revelado no vácuo da consciência. Ainda que abolíssemos todas as linhas enformadoras de nossa condição cultural, porque estamos condenados ao outro e à nossa consciência (o outro de mim), jamais poderemos experimentar esse complexo grau de liberdade vivido por um cão.

No prefácio que escreveu para a primeira edição desse romance no Brasil, publicada em 1943 pela editora Irmãos Pongetti e com outro título, Uma gota de veneno, Carlos Drummond de Andrade, quem também foi seu tradutor escreve que toda obra de François Mauriac é a variação de um mesmo tom: “Mauriac não tem muitas portas, nem sua porta muitos segredos. É homem de um só livro, indefinidamente multiplicado”. A observação não tem o tom de desmerecimento e sim de constatação de uma arguta capacidade de “fugir à monotonia”. “É que esse livro único, repetido até o desespero, nunca se esgota; sua matéria, sempre a mesma, apresenta uma riqueza incalculável; a fome se sacia, mas o celeiro continua provido; Mauriac desfalca-o de alguns grãos, mas uma reserva abundante permite e como que sugere novos assaltos”.

A afirmativa do prefaciador é a de alguém que guarda um conhecimento maior sobre a obra do escritor francês do que quem leu, por exemplo, este e algum outro livro seu. Mas, o simples distanciamento observado por este leitor comum que só tenha lido, além de Thérèse, O deserto do amor, é suficiente para desmanchar a observação carregada de algum entusiasmo universalizante. Neste último romance, por exemplo, o tema dominante da obra aqui em questão, se mostra – é bem verdade. Mas não se constitui na determinante da narrativa. Isso implica dizer que um e outro não são um mesmo livro. Em O deserto do amor a expressão principal da narrativa preenche certo caráter de revelação da força individualista ou mesmo do preceito existencialista que estará em voga no espírito francês segundo o qual o inferno é o outro. Se o tema da liberdade aí se manifesta não alcança o limite da força principal como no romance de 1927; e se formos considerar outros aspectos estruturais ou formais também encontraríamos distinções.

A constatação de Carlos Drummond de Andrade, entretanto, fará sentido, e é o que parece dizer com o “indefinidamente multiplicado”, se considerarmos um pressuposto, que também começa a cair em desuso, de que todo escritor persegue a criação de uma só obra – a que o revele singular e portanto contribua na expansão do universo ao qual pertence. Nesse sentido desprezaríamos a predominância de um tema ou de outros aspectos da obra para considerarmos que, enquanto uma traz à superfície o assunto de seu interesse (Thérèse) na outra é o tema mantido disfarçadamente entre as preocupações que melhor se mostram na narrativa (O deserto). Isto é, as constatações se fundam pela maneira como quem as observa e não o contrário – uma determinante fundamental a esta obra única de Mauriac e captada pela sensibilidade do seu leitor.





O que sustenta Thérèse Desqueyrox é o mistério. Seu autor estabelece desde sempre um enigma e uma atmosfera de suspense que só se revela e amaina mais ou menos quando próximo o final da narrativa; isso porque, mesmo com alguma certeza na mão, não deixaremos de nos perguntar se o desfecho entrevisto se constitui mesmo como tal ou se, de momento a outro, a situação não mudaria de curso e nos revelaria outra saída. A engenhosidade de Mauriac com este romance é a de fundir um drama estritamente da consciência nas relações exteriores e mesmo da natureza.

Há duas linhas narrativas que em parte mesmo correndo livremente perfazem entrecruzamentos: a trajetória de Teresa à propriedade dos Desqueyrox depois de absolvida de uma tentativa de homicídio; e a vivência dessa personagem no ambiente onde se passou o crime não cometido. Uma dupla tortura: a de tentar construir uma explicação para o outro e mesmo para si que possa responder pelo ato impensado; e a violência psicológica com que é tratada pelos habitantes de Argelouse, esse lugar inóspito, no fim do mundo, envolvido pela trama espessa dos pinheiros, ora pelo calor abrasivo favorável aos incêndios ora pela chuva interminável. Nas duas linhas encontra-se um esforço para uma pergunta sem resposta mesmo para Teresa: quais motivações escondem-se na tentativa involuntária de homicídio? Aliás, terá sido isso mesmo como todos (exceto nós leitores) interpretam?

Não há leis ou princípios que esclareçam o gesto da liberdade, porque qualquer tentativa de reposta é mera tentativa e uma maneira de tolher o livre. Teresa pertence à estirpe dos impossíveis de garantir qualquer ajuste no mundo porque está condenada às amarras (de frentes diversas) que nunca deixam de existir. Neste romance de François Mauriac, tais forças assumem nome variados: é a tradição do nome (o casamento de Teresa com Bernardo responde pela justa medida da união de duas famílias importantes); a submissão de mulher ao jugo do homem (Bernardo sente-se no seu papel quando consegue forçar Teresa a um exílio e um silenciamento dentro de sua própria casa); a submissão da mulher à ordem natural (a perda total de identidade quando se vê substituída apenas pela imagem da que guarda a semente de continuidade do nome da família); a prisão às leis (naturais, religiosas, sociais e, por fim, jurídicas). Teresa sente-se no interior desse universo coercitivo como um pássaro que almeja a qualquer custo voar. E encontra em parte essa possibilidade quando descobre o envolvimento tresloucado da amiga e cunhada Ana pelo jovem parisiense e liberal João Azevedo; mas depois, se essa garantia lhe for dada, como todas as qualidades positivas possíveis, não saberá ao certo o que fazer. Estaríamos, então, condenados a perecer na ausência total de limitações? É uma pergunta das muitas suscitadas pelo romance.

O gesto motivador de todo imbróglio narrativo finda por atentar contra todas as imposições, embora não seja suficiente por libertá-la, ainda que entre carrasco e vítima (se é que é possível tratar a relação entre Teresa e Bernardo por um epíteto tão redutor), se estabeleça um acordo que prima pela possibilidade de Teresa reexaminar a existência pelo prisma de não precisar responder por tais imposições. Essa constatação leva-nos ao mesmo ponto de onde partimos: a liberdade é um horizonte em movimento, quando pensamos haver alcançado precisamos percorrer tudo de novo até descobrirmos que enquanto existirmos esse será o mesmo percurso. Talvez seja isso, inclusive, uma centelha do que chamamos viver.

Ligações a esta post:
>>> Leia sobre O deserto do amor

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