Um artista do mundo flutuante, de Kazuo Ishiguro


Por Pedro Fernandes 


Há uma passagem de Um artista do mundo flutuante importante de ser recuperada aqui porque, em parte, justifica a existência do próprio romance. Não é o caso, ressalte-se, que estejamos numa obra de cariz metaficcional – ao menos não diretamente. Preocupado com a reputação da família para o bom casamento da filha caçula, Noriko, Masuji Ono revisita algumas das figuras de Kawabe, aquelas mais próximas no seu passado. Numa das ocasiões, encontra-se diante de uma pintura que julga ser do amigo Kuroda; o jovem rapaz que o recebe responde, meio acanhado, que se trata de um trabalho de sua autoria. Admirado, o protagonista afirma que, antes de desenvolver um estilo que o defina, todo artista começa por imitar bem aos seus mestres. 

Esta passagem serve para dizer o mesmo de Kazuo Ishiguro. Um artista do mundo flutuante é o segundo romance do escritor nascido em Nagasaki, no Japão, e que ainda criança foi viver na Inglaterra. Este livro, juntamente com o primeiro, Uma pálida visão dos montes, copia, por assim dizer, alguns dos principais escritores de seu país natal, sobretudo aqueles que tomaram o impasse cultural entre Ocidente e Oriente depois da abertura deste continente – principiada pelo Japão do pós-Segunda Guerra – como elemento temático para suas obras. Quer dizer, se Ishiguro não copia diretamente um mestre especificamente, bebe na fonte que alimentou uma extensa parte dentre os mais importantes de uma extensa geração na literatura oriental. Claro que, no seu caso específico, o dado biográfico justifica com melhor propriedade essa consciência, tendo em vista que sua formação, como a de muitos outros escritores japoneses, dá-se noutra cultura, alheia à de sua origem. Embora tenha ido viver no Ocidente ainda muito criança não é possível deixar de sublinhar essa relação se considerarmos que os laços com a terra natal podem ter sido cultivados durante largo tempo de sua formação cultural. 

Como sublinha Ono em relação ao discípulo de Kuroda, a aproximação de Kazuo Ishiguro a um tema recorrente no interior da cultura artística a que se filia numa primeira ocasião não é coisa de se censurar ou reprovar – é um gesto que se encontra na origem de toda criação; não será mau recuperar o que Aristóteles apresentava na sua Poética, obra indispensável a qualquer leitor interessado em compreender determinados conceitos e fundamentos recorrentes até hoje nos debates sobre o texto literário. Falamos, evidentemente, da mimesis. Segundo este conceito, a criação do poeta é produto da imitação. E, como a personagem do seu romance, Ishiguro imita bem: escolhe uma recorrência entre a moderna literatura oriental e sobre a qual guarda uma experiência não apenas imaginária decorrente de seu universo criativo mas, de alguma maneira, autenticamente sua, se considerarmos os influxos entre a tradição dos de seu país natal e a modernidade dos de seu país de adoção. Ainda que este não seja o tema recorrente no romance em questão.

Um artista do mundo flutuante é sobre os impasses de um artista que depois da abertura do seu país à cultura ocidental – abertura traumática, diga-se, porque se dá ainda entre os escombros produzidos pela guerra trazida por essa nova cultura que se impõe – num mundo, portanto, de contradições. Não é que Masuji Ono seja um artista no auge de seu projeto criativo; na idade que alcança a narrativa, a personagem contribuiu de alguma maneira para a tradição de seu país e agora se dedica apenas à organização de seu núcleo familiar, condição, aliás, que o torna alheado se considerarmos que na modernidade o fim de uma obra só é dado coincidindo o fim de sua própria vida e muitas vezes nem isso. O papel de Ono nesse mundo outro é um cada vez mais renegado, o da experiência – em todos os sentidos, não apenas no artístico. É singular a distância entre ele e seu neto Ischiro, constantemente apresentado tomado pelas referências do cinema ou da televisão estadunidense, e ainda impossibilitado, pela mãe do garotinho, Setsuto, a colocar em prática com ele, o que era comum às crianças no tempo antigo. Inesquecível a ocasião quando Ono promete a Ischiro que ele beberá saquê e vê sua promessa negada depois de aventar a possibilidade com Stesuto. A justificativa de que o gesto fomentaria a formação da memória da criança no que diz respeito a um orgulho próprio fundamental ao seu ego pessoal é derrubada em favor de uma política que impõe negar o total contato infantil com bebidas alcoólicas.  



Num mundo que descarta a experiência, o que resta então ao artista cuja obra de alguma maneira se apresenta constituída por ela? Resistir. Em todos os sentidos, Um artista do mundo flutuante, é um romance de resistência. E esta vem pela memória. Narrado em primeira pessoa, i. e., pelo próprio Masuji Ono, ao passo que anota seu presente anódino, marcado pelo encontro com a filha mais velha, a convivência em tempos com o neto, e o trabalho do casamento da filha mais nova (há um filho sobre o qual tudo é silêncio), revive seu passado. E o passado de Ono justifica a posição mais ou menos cômoda que alcançou ao fazer parte indiretamente da memória de Akira Sugimura – quem “durante trinta e tantos anos, esteve inquestionavelmente entre os homens mais respeitados e influentes da cidade”. 

O trabalho de rememoração de Masuji Ono atesta sua transição entre um pintor movido pela reprodutibilidade técnica no ateliê-fábrica do sr. Takeda, sua saída para o ateliê do sr. Moriyama e o despertar definitivo para a condição do artista no mundo e qual seu papel para sua coletividade para além do mero intuito de aproximar-se, pela perfeição, do sublime e-ou conduzir o outro a este patamar espiritual. Mais que reanimar as linhas de sua existência, compreender-se no mundo da técnica, seu trabalho de revisitar o passado é de estabelecer-se contra o aniquilamento da tradição pela presença contínua de um espírito frívolo e decadente. Quer dizer, não é meramente um embate entre tradição e modernidade, no sentido que ficou recorrente noutras culturas depois da Segunda Guerra, é a observância sobre seu lugar no interior das várias transformações que vivencia: nos costumes familiares, na criação artística e nos modos de ver, ser e estar no mundo.

É evidente que o mundo flutuante a que se refere o título do romance é o mundo moderno, mas nem Kazuo Ishiguro, nem seu protagonista estão interessados em fazer prevalecer, pela derrisão, a atmosfera de novidade construída pela abertura do Japão aos modelos ocidentais. Entre a percepção e a negação há uma extensa fronteira e neste caso é no território do primeiro onde se instaura o romance. Alguém poderá querer justificar que esta certeza é impossível porque este narrador não é de se fiar. É verdade que a incerteza é marca principal da narrativa de Masuji Ono – entretanto ela começa e finda no processo comum da rememoração. Ou seja, é possível que os episódios recordados não tenham acontecidos da maneira como são contados, ou sequer tenham acontecido, mas a posição do narrador, pendular, oscilante entre o passado e o presente, não deixa margens para uma negação do mundo como agora se lhe apresenta. Se há algo que acena para essa possibilidade é a maneira como o passado se mostra mais interessante que o presente, mas se sobre o passado não se pode obter certezas então este não é nenhuma ameaça – é apenas o lembrete de que não há presente sem passado e o apagamento da memória representa a ausência de consciência, que, por conseguinte, é o apagamento dos sentidos que sustêm a própria existência.

Do final do romance, vale recordar uma situação que justifica o que dissemos acima – e encerra estas notas. Numa conversa que mantém com o genro sobre as reformas de pessoal realizadas na empresa, Masuji Ono, assim se posiciona: “me diga uma coisa, Taro, você não se preocupa com o fato de nós sermos, às vezes, um tanto apressados demais em seguir os americanos? Eu seria o primeiro a concordar que muitos dos velhos hábitos devem ser agora apagados para sempre, mas não acha que às vezes jogamos algumas coisas boas junto com as ruins?” A conclusão dessa fala, aliás, coloca em destaque outras linhas do romance de Kazuo Ishiguro – citada aqui uma, mas sem que nos aprofundemos nela: as personagens e as situações, de alguma maneira, constituem-se em metonímias do Japão pós-Segunda Guerra, ora demasiadamente seduzido com o modus vivendi do estadunidense, ora impossibilitado de reconhecer-se outro por se encontrar de alguma maneira ainda ligado às suas próprias forças. 

A relação entre Masuji Ono e o neto é o exemplo mais claro. Embora tomado de encantamentos com os objetos culturais estrangeiros, a criança não consegue a autonomia conceituada pelo avô quando o pensa livre o suficiente para tanto: é singular, na mesma ocasião desse diálogo a observação do narrador sobre o olhar atento de Ichiro sobre a garrafa de saquê que circula livremente na mesa de jantar enquanto sua expectativa de provar da bebida é cada vez mais colocada para longe. “Na verdade, às vezes o Japão fica parecendo uma criança pequena que aprende com um adulto estranho” – conclui Ono, nessa ocasião, para um genro, símbolo de uma nova geração que substituiu em definitivo o olhar sobre o passado pelas aberturas possíveis do futuro – um perigo que apesar de rondar tão claramente o entorno dos novos seduzidos só alcança ser visto pelos olhos da experiência. 

Ao negar sobreposições, Masuji Ono redime-se do passado – fantasma e segredo que percorrem toda a narrativa. Afinal, as contribuições de Ono para a arte no seu país ou a conclusão de sua carreira não são acontecimentos assim tão certos; estão no rol das flutuações da memória. Mas, sobre isto basta que se diga duas coisas: a arte nem sempre esteve à serviço do bem, se considerarmos a mais antiga das dicotomias; a melhor maneira de reparar um passado é reconhecê-lo, seja qual for a dimensão, e uma vez constatada sua condição negativa, não repeti-lo no presente. No mais, parece que não existe nenhuma dimensão heroica para a arte e o artista. É uma impressão.  


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