Cascatas de uma torrente rememorada: reflexos de (in) lucidez em A Paixão Segundo Constança H.


Por Antonio Bezerra de Mesquita e
Verônica Martins da Silva

Maria Teresa Horta. Foto: António Pedro Ferreira


“Mas é como se, na imagem antes reflectida do meu corpo nesse espelho que perdi, eu recuperasse a minha imagem entretanto igualmente perdida”. 
Maria Teresa Horta. 


Manuel Bandeira certa vez disse que almejava o lirismo dos loucos¹, projetando este como uma das forças motrizes ao seu exercício poético, isso em circunstâncias de mais um dos seus arroubos metalinguísticos já consuetos em sua obra. É das palavras desse poeta que extraímos uma reflexão primeira para a feitura deste ensaio, que é a robustez semântica que o símbolo da loucura exerce à Literatura, sendo evocada, amiúde, em obras de diversos autores e em diferentes momentos da história. 

Esperamos que esteja recente à mente de todos o caso de um Machado de Assis, conjurando a imagem da insanidade personificada à figura do Dr. Simão Bacamarte no conto O alienista (1882), encarcerando quase a total população da Vila de Itaguaí em sua clínica, denominada de Casa Verde, prendendo a si próprio, ao fim, por se autoconsiderar também um louco. Ou ainda o Dom Quixote de la Mancha (1605), obra escrita por Miguel de Cervantes motivado a ironizar as novelas de cavalaria, representando, para tanto, a efígie de um cavaleiro ensandecido a lutar com moinhos de vento por acreditar piamente que estes são gigantes ameaçadores.

E como não citar a emblemática história de Hamlet (1603), de Shakespeare; o príncipe dinamarquês assombrado pelos fantasmas do passado e por um pungente desejo de vingança a seu tio Claudius, usurpador do trono de seu pai. E quiçá incontáveis sejam outros os casos em que há uma menção direta ao semblante dos loucos, a partir do qual o núcleo dramático de muitas obras literárias parece gravitar.

Em ocasião de um contexto de literatura portuguesa contemporânea, quem também continua adotando esse topus como fulcro temático à sua criação artística é Maria Teresa Horta, cuja obra A paixão segundo Constança H., publicada à primeira vez em 1994, torna-se permeada pelos ardores de uma insensatez, que são personificados no discurso narrativo à fisionomia de sua protagonista. Alguns dos elementos que estão presentes à narrativa convergem integralmente à evocação da simbologia da loucura, como se esta fosse um odor inebriante a exalar à medida que as delicadas pétalas de uma rosa estão a murchar.   

Entre estes elementos, torna-se proeminente a questão da temporalidade da história por impor um ritmo de descontinuidade à apresentação dos acontecimentos, estando, dessarte, intrinsecamente focalizado às memórias de Constança H., compondo-se de “momentos imprecisos, que se aproximam ou tendem a fundir-se, o passado indistinto do presente, abrangendo, ao sabor de sentimentos e lembranças, intervalos heterogêneos incomparáveis” (NUNES, 1995, p. 19).

As sinuosidades que são configuradas à composição do plano da história do referido romance são veladas por mantos de uma obscuridade quase mortal, seguindo um ritmo de encadeamento que rompe com o princípio da causalidade, tornando-se, por vezes, opacas à compreensão do leitor, como se a própria narrativa fosse um mosaico de imagens lestas e aparentemente desencontradas, conferindo a obra o seu caráter de instigante complexidade.

A percepção de que Constança H. está internada na ala psiquiátrica de um hospital está diluída ao longo da narrativa, isso de forma tão minuciosa e cindida que exige do leitor um exercício de reconstituição de tal imagem; passagens do texto literário, como a apresentada a seguir, funcionam como indícios canalizados a essa constatação:

Porque Constança raramente dorme, as enfermeiras dão-lhe todas as noites pequenos comprimidos que a fazem mergulhar no nada. Ao princípio tentara iludir os médicos guardando os comprimidos debaixo da língua, mas uma madrugada obrigaram-na a cuspi-los à força [...]. Tinha sempre os pulsos e os tornozelos cheios de nódoas negras das tiras com que a prendiam à prendiam à cama de ferro colocada longe da pequena janela com grades, fechada (HORTA, 2018, p.146).        

Outras referências ao período em que a protagonista teria passado os seus dias retida em um hospício para tratar o que se supõe ser seu estado de desequilíbrio mental, estão expressas em alguns dos textículos dispostos à parte do restante da obra, remetendo deliberadamente à ludibriadora impressão de que são epígrafes a exercer a função de introito aos seus capítulos.

À medida que adquire familiaridade com as particularidades desse romance, o leitor minimamente atento perceberá que esses fragmentos que entrecortam a narrativa são, de fato, partes desta, remetendo a acontecimentos da história de Constança H. e incutindo ao texto literário uma dinâmica diferenciada à sua disposição formal. O próprio significante parece corporificar-se do seu significado, isto é, uniformizando-se dos lapsos de alucinação que têm por intuito a caracterização das camadas psicológicas dessa personagem por meio da mimetização do encadeamento a esmo de seus pensamentos.

A despeito dessas passagens em que há a dramatização do internamento compulsório de Constança H., a maior parte da narrativa está centrada no seu passado, buscando alçar os véus de opacidade que ainda encobrem a visão do leitor em relação aos aspectos mais arraigados dessa história, como os meandros do seu casamento com Henrique H., que tornam-se nomeadamente a razão mormente ao agravamento do seu estado de insanidade.

Por intermédio do esclarecimento dessa dinâmica ínsita à tessitura do romance, somos confrontados com a pertinente compreensão de que há um continuum espaço-temporal a partir do qual o nível da história passa a ser constituído, em um compasso de crescente alienação conforme Constança H. vem a ser submetida à terapia de choque, preenchendo a narrativa com as memórias apagadas de sua mente, mas que retornam para assombrá-la: “A corrente eléctrica é uma luz que lhe atravessa o corpo. Convulso. Que se arqueia. – Contra sua vontade. O gume de uma faca que a esfacela. – Enquanto se perde na escuridão profunda” (HORTA, 2018, p.117).    

Os acontecimentos que compõem o nível da história são, por conseguinte, encadeados consonante a permissão de estratégias de mimetização impressas ao discurso narrativo, passando este a reproduzir, a nível da ordenação, imagens que nos remetem a diferentes estágios do percurso de Constança H.; a saber, reminiscências de sua conturbada infância e de sua convivência com a avó, do seu casamento de constantes efervescências com Henrique H. e de sua estadia na casa de praia onde assassinou sua amante, Adele, utilizando como instrumento um cão aparecido misteriosamente na localidade.      

Essa ininterrupta sobreposição de eventos que possuem diferentes ou mesmo indefinidas referências vivenciais, de forma aparentemente desordenada em intervalos de um parágrafo a outro na materialidade textual, além de ser um aspecto inerente à constituição do teor psicológico atribuído à narrativa, torna-se também um fator condicionante à constituição da simbologia dos estados de alucinação mental pelos quais Constança H. vem a ser acometida. Mediante esse estratagema narrativo, o leitor configura o panorama da protagonista atada em uma cama de hospital, ecoando de si muitas de suas reminiscências, como uma torrente psíquica que jorra do seu mais obscuro e profundo íntimo.

Outro aspecto presente na constituição desse romance, tornando-se um dos fatores responsáveis à concatenação da metáfora da loucura, algo que parece emanar dos muitos meandros dessa narrativa, é a presença da descrição de imagens surreais, que são atreladas à percepção de Constança H. em relação a tudo o que a rodeava, como suas visões de supostos anjos que vinham resguardá-la do grande mal que lhe cercava: “Um anjo visitou Constança no dia anterior ao homicídio de Adele. Desceu sobre o mar, os pés nus a rasar as ondas mandar, quase lisas. E ficou ali suspenso no seu manto translúcido e azulado. Tinha-o visto uma vez, quando era criança” (HORTA, 2018, p.91).

Para além de menções a uma hipotética visitação de seres celestiais, a narrativa também é preenchida por traços oníricos, sendo alguns dos seus capítulos dedicados à transcrição dos sonhos de Constança H., o que acaba por reforçar a focalização do fluxo narrativo em seu subjetivo e em todas as questões que conferem a este uma complexidade insana: “Sonhei com um enorme e belíssimo pássaro feminino – cor-de-rosa vivo nas asas e ferro, doce, no peito. Vem pousar na janela aberta à minha frente. Na fresta que dá para o meu inconsciente? Debruçada em que patamar?” (HORTA, 2018, p.97).

Essa apresentação de imagens que denotam uma apreensão fugitiva com relação às possibilidades de construção do real nos faz retornar à questão das memórias de Constança H., que são uma estratégia de cristalização dos supostos fatos vivenciados por ela em seu percurso e, por conseguinte, do prisma particular através do qual tais peripécias foram apreendidas e alicerçadas em seu inconsciente, cravando tais aspectos na tessitura narrativa, como sementes a germinar em um terreno fatalmente desnivelado.

Torna-se necessário pontuar que, neste romance, as reminiscências ganham um caráter que poderíamos denominar de sinestésico, por estarem profundamente atreladas aos sentidos físicos da personagem, como traços protuberantes em uma pintura surrealista:  
   
Ao pé do lume fazia leite-creme. Era a memória mais afastada a que Constança gostava de voltar: a avó à mistura com o cheiro do açúcar em ponto que os ovos engrossam pouco a pouco em banho-maria. Tentando afastar outras ideias, outras recordações bem mais antigas, da mãe, da loucura. Da paixão (HORTA, 2018, p.193).          

Conforme está explícito no trecho supracitado, as lembranças de Constança H. são gatilhos acionados a partir de percepções sensoriais que a remetem a diferentes momentos de sua história, que são justapostos seguindo uma lógica de rememoração desses sentidos, e não um encadeamento cronológico dos fatos, o que faz jus ao ritmo psicólogo ungido à sua narrativa. Neste romance, as sensações físicas parecem comandar o fluxo narrativo, aludindo aos episódios narrados, e não ao contrário, semelhante a um caleidoscópio sensorial por meio do qual a narrativa adquire seus nuances alucinantes.      
  
Essa ordenação sinestésica dos fatos é explicitada em outras passagens da narrativa, nas quais há sempre uma sensação atrelada ao aparecimento dos episódios: “Um dia, quando uma enfermeira lhe espalhava o creme nas têmporas e lhes colava em seguida as pequenas rodelas de metal, eles apareceram, os anjos, misturados com o relâmpago veloz e aguçado de luz que lhe dilacerou o cérebro” (HORTA, 2018, p.158). Percebe-se que essa associação entre os anjos e perturbações em sua visão confirma essa essência sensorial de cascata mental em que a personagem encontra-se.     
   
A reiteração desse acontecimento pode ser entendida como mais uma estratégia de reprodução do fluxo das memórias de Constança H. por parte do discurso narrativo, uma vez que, ao tentarmos rememorar algo, é comum que haja uma alusão repetitiva aquilo que desejamos lembrar, com o intuito de torná-lo mais límpido em nossos pensamentos. Reprisar, logo, a cena do suicídio nos remete a um esforço mental da protagonista de lembrar-se da morte de seu marido, já que devemos sempre nos atentar que a personagem encontrava-se em um estado passageiro de amnésia: “O que importava era que Constança estava viva e não se lembrava de nada. Assim, também ela não sabia explicar o que tinha acontecido. Não sabia. Nada” (HORTA, 2018, p.131).

Em A paixão segundo Constança H., o tempo da história, como esperamos que esteja claro, torna-se um condicionante à concepção de um espelhamento do estágio de loucura da personagem, mormente em relação à imprecisão das ações narradas. E um desses episódios cuja compleição torna-se deliberadamente obscura é o suicídio cometido por Henrique H. Primeiramente, torna-se estranho a questão da repetição dessa morte por três vezes no nível da narrativa, ocasionando, logo, em uma incongruência entre uma ocorrência inerente à história e sua representação repetitiva no discurso narrativo: “Henrique H. matou-se um ano depois da prisão de Constança. – Cortou os pulsos dentro do banho” (HORTA, 2018, p.27).   

Torna-se importante salientar que, por mais que haja um indício de demarcação temporal na descrição do suicídio, assim como em algumas outras passagens da narrativa, essas delimitações ainda não são o suficiente para que tenhamos um detalhamento mais preciso acerca das fronteiras de período em que a história vem a se desenrolar. Deve-se, portanto, reiterar que um dos traços do tempo psicológico é “sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas” (NUNES,1995, p.18).

Esse conceito de tempo, porventura, tende a guardar relações com o cronológico, podendo apresentar algumas medidas temporais, embora estas não apresentem uma exatidão a ponto de nos dar limitações válidas acerca de sua temporalidade transcorrida.



Em A paixão segundo Constança H., essa questão de imprecisão temporal ganha contornos ainda mais explícitos devido a uma contradição na data concernente ao suicídio de Henrique H., que poderia ter ocorrido, contraditoriamente à primeira citação desse episódio, depois do internamento de sua esposa: “– Lembra-se de ter morto o seu marido? –Eu não o matei. Estava já aqui quando ele cortou os pulsos no banho. –Não estava. Isso foi depois. Foi depois de a trazermos para cá. Lembra-se? Ela não se lembrava de nada” (HORTA, 2018, p.219).

Nesse fragmento supratranscrito, que é um diálogo entre Constança H. e sua psicanalista e constitui-se como uma das já referidas aparentes epígrafes, é revelado pela médica uma outra possível sequência temporal para a morte de Henrique H., que teria ocorrido antes do internamento da protagonista, dando a entender, inclusive, que ela estaria ativamente envolvida no ocorrido, contrariando a narrativa inicial desse episódio.

Essa incongruência manifestada no discurso narrativo, para além de atribuir uma imprecisão à temporalidade, põe em dubiedade todo o restante da narrativa, seja em circunstâncias em que há a presença do narrador autodiegético, narrando a partir do ponto de vista de Constança H., seja nos momentos em que esta torna-se sua própria narradora, a exemplo dos trechos de cartas enviadas a seu marido.

Dessarte, há a construção deliberada de uma atmosfera de inconsistências que permeia toda a narrativa, já que não há como precisar se os acontecimentos narrados são verídicos ou frutos da loucura de Constança H: “Uma tarde disse à analista: calcule que eu vinha para aqui e lhe contava todas estas histórias, em vez de as escrever. Todas estas histórias, como se elas tivessem passado comigo” (HORTA, 2018, p.12).

Nesta citação, torna-se evidente que personagem deixa-se contaminar pelas histórias que invente e por outras que encontrada nos livros, assumindo certas feições de Emma Bovary, do romance de Flaubert, algo que contribuiu para a torrente de devaneios que circunda sua narrativa.  
        
A paixão segundo Constança H. pode ser descrita como um romance de profundezas inquietantes, cuja protagonista está presa em uma espécie de sonho sonhado de um pesadelo acordado. Enclausurada em um hospício, semelhante aquele criado por Simão Bacamarte, embora também esteja paradoxalmente vagando errante nos meandros de seu próprio ser. Assombrada por fantasmas do passado, assim como Hamlet o fora, e lutando contra demônios revestidos sob o semblante de anjos, de forma análoga a Dom Quixote e seus moinhos de vento. Constança H. mergulha no abismo obscuro de sua mente, agonizando em gritos abafados por reflexos de (in)lucidez, outrora supostamente arrancados de si.

Toda a narrativa de Constança H. vem a ser colocada em questão por meio da (des)construção temporal dos seus acontecimentos, estando estes resguardados por véus de incerteza e opacidade, a começar pelo seu aparente estado de perturbação mental, também questionável ao decorrer das páginas do romance, assim como o suposto assassinato cometido por si, que também ganha um certo ar inverossímil à sua narração. Esses aspectos fabulares convergem em um mesmo diapasão, alçando um teor de inexatidão à sua apresentação e resvalando em uma narrativa labiríntica, de acentuada expressão metalinguística.   

Notas:

¹ Referência ao poema “Poética”, presente na coletânea Libertinagem (1930).  

Referências

HORTA, Maria Teresa. A paixão segundo Constança H. Lisboa: Dom Quixote, 2018.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1995.



Comentários

Lucas José disse…
A prosa de MTH é desconcertante, tanto no conto, como no romance. Em Ema (1984), há também uma pulverização do tempo cronológico, principalmente na iteração de certos eventos (sempre trazidos à tona com novos detalhes a cada ocorrência na estrutura narrativa), que termina por criar tensões quanto ao que de fato aconteceu naquele universo ficcional. Além disso, a presença de personagens com mesmo nome e a focalização cambiante entre elas cria amplas possibilidades de leitura. Eu gosto de como esse esgarçamento do texto nos convida a tomar outra postura enquanto leitores. O livro se torna um quebra-cabeça que exige um vai e vem pelas páginas. A tradicional ordem de leitura também é revertida pela autora.

Sobre A Paixão Segundo Constança H., acredito que ele esteja situado no mesmo universo de um conto da autora, Transfert, presente na coletânea Azul Cobalto, publicada no Brasil pela Oficina Raquel. Há um trecho idêntico em ambos os contos e a trajetória de Constança H se assemelha à da personagem do conto. Recomendo a leitura.

Enfim, muito bem ler textos que se voltem ao trabalho ficcional de MTH, que é um pouco esquecido em face da grandiosa obra em verso da autora. Espero que continue a aparecer outros por aqui.

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