O verdadeiro combate de Albert Camus

Por Rafael Narbona

Albert Camus, 1948.


Albert Camus se tornou uma espécie de santo secular. O sacerdote e teólogo belga Charles Möller lhe dedicou algumas páginas extraordinárias em Literatura do século XX e Cristianismo (tradução livre), destacando seu caráter exemplar como homem e seu compromisso como escritor. Sem chegar a ser “um mártir laico”, Camus compreendeu que sua vocação literária não era algo meramente estético, mas sim uma forma de solidariedade com seus semelhantes. Com apenas trinta anos, colocou sua escrita a serviço do Combat, o jornal clandestino da Resistência contra a ocupação nazista. Era o ano de 1943 e ainda não gozava do reconhecimento que mais tarde o tornaria um dos grandes escritores de sua época, com obras-primas como O estrangeiro, A peste ou O homem revoltado. Seu relacionamento com o Combat durou de março de 1944 a junho de 1947. Nesse período, ele escreveu 138 editoriais e 27 artigos. Mais tarde, acrescentaria algumas peças soltas.
 
Em seus primeiros dias, o Combat mal possuía uma tiragem de mil cópias. Em 1943, atingiu 250.000. Em seu primeiro artigo, Camus pedia aos franceses que se envolvessem na luta contra os alemães, mobilizando-se pela “solidariedade do martírio”. Fiel a Charles de Gaulle, símbolo da França que não se resignava ao espetáculo da submissão vergonhosa, o Combat não era um jornal de partido, mas um espaço de debate, onde convergiam as diferentes perspectivas da Resistência. Próximo ao socialismo, se mostrava crítico do marxismo e do cristianismo, mas sempre aberto para o diálogo. Por suas páginas passaram marxistas como Sartre, liberais como Raymond Aron, pragmáticos como Malraux e cristãos como Mounier.
 
Embora já tenha se passado tanto tempo, os artigos de Camus não são simples arqueologia de uma época conturbada, mas um exercício atemporal de reflexão sobre as diferentes máscaras do totalitarismo. O nazismo e o comunismo não são meras referências históricas, mas tentações que ainda estão vivas, colocando em risco a liberdade e a democracia. Camus nunca é taxativo e não lhe custa retificar, reconhecendo seus erros de avaliação. Ele lamenta que os Estados Unidos tenham lançado bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, mas admite que talvez tenha sido um mal necessário. Bisneto de espanhóis que emigraram para a Argélia, afirma que a luta contra o fascismo começou na Espanha e não terminará até a derrubada da ditadura de Franco. Camus condena o tratamento recebido por meio milhão de refugiados espanhóis submetidos aos campos de concentração, citando o triste fim de Antonio Machado. Cioran zombava do tom professoral do autor de A queda e O mito de Sísifo. Sua reprovação não é infundada, mas não diminui seu trabalho. Camus carecia de uma sólida formação filosófica e não era historiador, mas esse fato deu mais frescor e sinceridade aos seus textos. Ele não era um ideólogo. Não fingiu sê-lo. Simplesmente se atreveu a pensar.
 
Visto que no Combat Camus ele assina muitas vezes com um pseudônimo, sua visão pessoal é interrompida pela urgência de despertar a sociedade francesa para enfrentar o Reich alemão. Apela à dignidade e à coragem da “França de sempre”, incapaz de aceitar a vergonhosa rendição de Vichy. Ele não o faz a partir da subjetividade, mas a partir de um “nós” que se questiona retoricamente, tentando mexer com o leitor. Embora Camus saiba que termos como “liberdade”, “justiça” ou “democracia” não admitem um sentido unidimensional, ele opta por uma didática necessária em tempos de guerra. Um cenário de violência não permite sutilezas ou discursos teóricos. É preciso escrever para o momento, procurando o maior eco possível, porque o futuro está em jogo. Claro, ele não quer incitar ao ódio. Santos não são necessários, mas “homens justos” sim. A partir dessa convicção, afirma com uma inflexibilidade pouco condizente com seu temperamento que quem não está com a Resistência está contra ela.
 
Oliver Todd, biógrafo de Camus, apontava em Albert Camus. Uma vida que o escritor acabou a guerra com a perspectiva utópica de seus companheiros lutadores. Depois de tanto sofrimento, era hora de justiça social. O realismo político não poderia ser invocado para atrasar as mudanças necessárias. Lúcido e firme, Camus advertiu que meios injustos, como a violência revolucionária, nunca levariam à utopia, mas sim a uma opressão semelhante à do fascismo. Embora seja cauteloso em sua avaliação da União Soviética, ele afirma que o marxismo é uma falácia, pois atribui a suas teses à condição de dogmas indiscutíveis.
 
Camus é a favor de “uma democracia popular e operária” que garanta a liberdade e a justiça, mas se opõe a rupturas traumáticas. Ele não acredita na revolução, mas em reformas graduais. Antecipa Churchill ao afirmar que a democracia é o regime político “menos ruim”. Rejeita os messianismos e absolutismos. Para fazer política, é preciso ser humilde. A prudência não é épica, mas nunca leva ao arame farpado dos sistemas totalitários. Pied noir, a situação na Argélia, uma colônia da França, cria sérios problemas de consciência. Solicita que a cidadania francesa seja concedida aos argelinos. Não tem clareza se assimilação ou descolonização é melhor e nem mesmo depois de receber o Nobel em 1957 assume uma posição clara.
 
Camus polemizou com o escritor católico e ganhador do Prêmio Nobel François Mauriac, que pedia clemência aos colaboracionistas, alegando que o acerto de contas deixaria feridas que impediriam a superação do trauma causado pela ocupação. Camus respondeu que, nesta ocasião, a demanda por justiça estava acima da caridade, justificando a pena de morte. Apesar disso, defendeu Lucient Rebatet e Robert Brasillach. Em vez disso, Sartre e Simone de Beauvoir exigiram que eles fossem fuzilados, algo que só foi feito com Brasillach. Em 1945, Camus mudou de posição, indignado com o fato de o expurgo ter sido violento com os peões e ter deixado os gerifaltes impunes. Sua última colaboração no Combat é um pedido de clemência para dois soldados argelinos acusados ​​de ter passado para o lado do inimigo.
 
Camus se recusou a se juntar aos que gritavam e insultavam. Referindo-se aos religiosos que foram deportados para campos de extermínio, afirmou que sempre estaria do lado daqueles que, “sejam eles quem forem, dão testemunho”. Os editoriais e artigos que escreveu para o Combat são um exemplo desse compromisso ético, onde o essencial não é a fidelidade a uma ideologia política, mas a busca incessante da verdade. Para Camus, a verdade não é um absoluto inegociável, mas uma tensão permanente que não se compromete com a mediocridade e o conformismo. Por isso ele sempre escolheu o caminho mais difícil, mesmo quando dilacerava sua alma.
 
Ele se sentiu tentado pela figura de Cristo, mas compreendeu que o tormento de Sísifo refletia melhor o destino do homem. Conheceu a sedução do marxismo, mas a repudiou com firmeza. Preferiu reivindicar o direito de viver com o paradoxo e a contradição, lembrando-nos que pensar é mover-se, e que esse gesto implica sempre a possibilidade de dar um passo errado. Camus foi uma das consciências mais lúcidas do século XX e poderia ser um farol para o século XXI, ajudando as lições capitais da história a não cair no esquecimento.
 
* Este texto é a tradução de “El verdadeiro combate de Albert Camus”, publicado aqui, em El Cultural.

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