Aprendizagem da dúvida: Tensões entre desolação e fé no romance “Hóspede por uma noite”, de Shmuel Agnon
Por André Cupone Gatti
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Shmuel Agnon. Arquivo: Casa Agnon |
Se o século XIX, com a sua
variedade de novas ideias, e com o seu irrefreável ânimo progressista e
moderno, fragmentou a tradição judaica em facções das mais diversas possíveis
e, desse modo, a tornou mais vulnerável ao descarrilado avanço da História, o século
XX fez dessa mesma tradição um arruinado e obsoleto poço de desalento frente à
barbárie de violentos eventos históricos, dos quais sobressaem as duas mais
desumanas guerras de que se tem notícia. O esfacelamento do humano, tal como a
gratuidade da destruição, faz do século XX um século órfão de certezas e
transbordante de dúvidas que dificilmente, ou nunca, serão resolvidas. Imersa
nesse cenário de incertezas, a herança material e espiritual dos judeus da
Europa, no período entre-guerras, assistia à própria ruína.
Os shtetl, redutos habitacionais
dos judeus na Europa do leste, após a Primeira Guerra Mundial, encontravam-se
fisicamente destruídos, habitados por indivíduos igualmente arruinados, sem
sustento, sem pão e sem fé. Os judeus da Galícia de então, vivos num mundo
agonizante, não voltaram seus olhos uma outra vez para a tradição judaica e o
mundo, senão repletos de desolação, desorientação e sentimento de abandono. Não
obstante a agonia da diáspora, em Israel uma renovada vida judaica mirava o futuro
e fazia ebulir a chamada questão judaica. Um choque entre essas direções, a da
diáspora e a da Terra de Israel, criaria uma ideia suspensa, imbuída de
nostalgia, sobre o que já foi, o que é, e como será o povo judeu.
Movido, dentre outras coisas, por esse
choque, o escritor israelense Shmuel Iossef Agnon (1887-1970), compõe o
romance que viria a ser considerado a sua obra-prima. Hóspede por uma noite,
publicado pela primeira vez em 1938, é um relato ficcional de um judeu que,
após residir por muitos anos em Israel, retorna à sua cidade natal, Szibusz,
para uma breve visita que se transforma numa longa estadia. Inspirado em uma
visita que Agnon fez à sua cidade natal, Buczacz, em 1930, Hóspede por uma
noite, entrelaçando autobiografia e ficção, reflete sobre o mundo suspenso no
qual se encontram aqueles judeus de Szibusz, optando para isso pelo difícil e
cambiante caminho entre a incerteza dos fatos e a certeza das tradições. Esse
caminho, mais que um mero acaso discursivo, é uma construção consciente de
Agnon para pensar mais profundamente tudo aquilo que seus olhos veem. A
importância central da dúvida no romance em questão, bem como os significativos
desdobramentos da tensão entre desolação e fé, são os temas sobre os quais este
texto pretende refletir.
II.
O narrador de Hóspede por uma
noite, reencontra, em meio ao que sobrou de Szibusz, a velha casa de estudos
tão bem aproveitada por ele em sua juventude. Visto que este recinto está quase
completamente abandonado tanto física quanto espiritualmente, ele, ao receber
casualmente a chave do lugar, incumbe-se de cuidá-lo, dar-lhe utilidade e vida.
Esse narrador, oscilante entre o hotel que se hospeda e a velha casa de
estudos, observando, no meio desse caminho, o cotidiano desesperançoso das
pessoas da cidade, sente em seu espírito a perda de unidade entre os judeus da
Europa e, em certa ocasião, ao comentar os remendos que a dona do hotel faz em
sua roupa, poderia estar falando do próprio destino judaico: “E talvez os
remendos perdurem mais do que a camisa.” (AGNON, 2014, p. 265)
E nesse seu
constante observar, tece comentários que, se se iniciam cheios de certeza,
terminam cheios de interrogação, como quando, em passeio pelo cemitério,
primeiro diz que seus olhos estão ao dispor do coração e este, ao dispor de
Deus, e logo em seguida expressa desconsolo face à indiferenciação dos mortos,
os quais “agora que morreram, perdeu-se a esperança de uns e esvaneceu-se o
desgosto de outros.” (p. 133) E tal como observa, continua a oscilar do
hotel à casa de estudos e vice-versa, ou seja, continua a fundar seus
pensamentos entre aquilo que representa a transitoriedade, a passagem e a
diáspora (o hotel), e aquilo que representa a tradição, a perenidade e a
lembrança da Terra de Israel (a casa de estudos).
Esses dois mundos, o da fé e
o da dúvida, na consciência e na voz do narrador, aos poucos se tocam, se
explicam, se contradizem e se misturam. Sintomático exemplo alegórico desse
movimento é a passagem em que o personagem-narrador, distraído, tenta abrir a casa
de estudos com a chave do hotel e relata “Entre uma coisa e outra, confundi a
chave do hotel com a chave da casa de estudos.” (p. 308) Seria essa
passagem também uma outra alegoria a nos dizer que nem sempre é possível
interpretar os assuntos mundanos à luz dos assuntos divinos, bem como o seu
inverso, pois essa chave não cabe naquela fechadura?
O que podemos afirmar é
que o símbolo da chave comenta, do primeiro ao último capítulo, algumas das
principais questões de Hóspede por uma noite, tais como as heranças da Tradição
e da História, o acesso à esperança e o livre trânsito entre dois mundos
distintos. Até mesmo quando o ânimo para se ocupar das reflexões sagradas
esmorece, a chave da casa de estudos faz as vezes do pensamento flutuante do
narrador, que, por um lado não se deixa enferrujar nos preceitos, e por outro
não se detém em soluções definitivas: “Por vezes entro na casa de estudos, mas
não permaneço lá, apenas abro e torno a trancar, para que a chave não enferruje
[...]”. (p. 429)
O meio do caminho é, portanto, a
estrada eleita para os passos desse narrador que é uma espécie de flâneur. Em
outras palavras, nos deparamos com uma voz que dá mais atenção às perguntas que
às respostas. Se o estilo de Agnon remete ao estilo dos escritos didáticos,
professorais, dos ensinamentos sagrados, as indecisões que apresenta, os
contrastes e contradições, conferem finíssima ironia a essa malha textual. Os
desvios e a desorientação do narrador e, nesse caso, também do judeu da
diáspora, traduzem-se nos desvios do texto, pois aquele que, muitas vezes, ao
se dirigir à casa de estudos, é interrompido por alguém, ou que, ao refletir
sobre a grandeza dos preceitos, desvia aos fatos trágicos da realidade
imensurável, esse homem não se abstém de construir um relato em que esteja
presente, no tema e na forma, a natureza cambiante dos seus pensamentos e das
suas experiências.
“Mil vezes dissemos: Voltemos ao
nosso assunto, e não voltamos. Nesse ínterim desviamos a nossa atenção de nós
mesmos e não sabemos o que nos diz respeito e o que não nos diz respeito.
Iniciamos com um hóspede e uma chave da casa de estudos e abandonamos o hóspede
e a casa de estudos e tratamos de outros.” (AGNON, 2014, p. 399-400)
Texto imerso em textos, o romance
de Agnon é, ao mesmo tempo, sóbrio e multívoco: a segurança da pena não é
abalada pela multiplicidade de influências e vozes, pela reinterpretação e
reinserção no mundo arruinado que é Szibusz, de passagens das escrituras e de
lendas hassídicas. Entre a duração do dia e a da eternidade, o narrador de Hóspede
por uma noite, exilado da Terra de Israel, transforma um assunto em vários
assuntos, assim como multiplica a noite única do título, em muitas noites. Por
fim, depois de muito observar e de muito refletir sobre o que observou, percebe
que sua estadia tem de acabar.
Um dos pensamentos mais fortes que lhe ocorre
quando programa a sua partida, é o destino da chave da casa de estudos - aquela
que ele mandou fazer após perder a primeira. A quem entregar a chave do reduto
espiritual da cidade? Entrega-a ao filho de Ierukham Liberto e Raquel. Essa
chave, esse símbolo da tradição sagrada dos judeus da diáspora, então, será
destinada às titubeantes mãos de um recém-nascido, esse menino a quem foi dado
o mesmo nome do narrador, esse menino cujas ações não podem ser previstas tais
como não podem ser previstos os eventos da História.
Ao lado da ironia, a nostalgia
está presente em todo o romance. A visão de um mundo que foi vencido pela
fragmentação do homem moderno, seja ele judeu ou não, e pela bárbara
relativização do que é ser humano, só poderia mesmo instigar pensamentos tão
contrastantes, profundos e inconclusivos como aqueles que o narrador de Hóspede
por uma noite tece. Já de volta a Israel, essa terra onde, apesar da intensa
movimentação sociopolítica, as inquietações espirituais parecem arrefecer, o
narrador reencontra a primeira chave da casa de estudos, aquela que ele pensara
ter perdido. Guarda-a então como a parcela de nostalgia que lhe cabe por ser um
judeu entre dois mundos, e como a esperança de que um dia os judeus voltem a
ser um só povo.
III.
Apresentando-nos um narrador que,
no descuido de suas certezas, observa e duvida, Hóspede por uma noite desdobra
a tensão entre desolação e fé para falar de coisas tão grandes e abstratas como
a as tentativas de resistência da tradição e o curso da História, ou de coisas
tão íntimas quanto inquietar-se frente à miséria, não se decidir em dar uma
moeda a um mendigo, obstinar-se com uma chave, escrever um testamento para logo
em seguida rasgá-lo. Tudo isso revela como o romance se constrói sobre vários
estratos de significação, passando do simbólico ao alegórico, e do reflexivo ao
testemunhal. Assim como também passa da certeza à dúvida, sem que o estilo
perca o seu tom de lição e, portanto, o seu caráter irônico.
Livro sobre um homem que caminha
por terras devastadas de uma velha Europa, que deflagra a agonia de uma velha
tradição que lhe incita os mais incertos pensamentos, Hóspede por uma noite
pode ser encarado como um livro de lições. Lições essas de judaísmo ao leitor
leigo, mas não só, lições de como a tradição judaica viveu seus últimos dias na
Europa do leste, e, principalmente, lições sobre o observar, o duvidar e o
refletir, sobre aquilo que motiva uma pergunta e sobre aquilo que leva uma
resposta ao seu impossível, ou provisório, fecho.
BIBLIOGRAFIA
AGNON, Sch. I. Hóspede por uma
noite. São Paulo: Perspectiva, 2014.
KRAUSZ, Luis S. A cidade em
ruínas de Sch.I. Agnon. In: AGNON, Sch. I.. Hóspede por uma noite. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
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