A madeleine de Proust era originalmente uma fatia de torrada

Por Mitchell Abidor

Ilustração: David Richardson.


 
Em 1949, a sobrinha de Marcel Proust, Suzy Mante-Proust, entregou ao editor Bernard de Fallois alguns papéis que seu tio havia deixado para seu pai, o irmão mais novo do autor, Robert. Ela pediu que ele desse algum tipo de ordem aos papéis. Fallois conseguiu organizar dois livros póstumos, Jean Santeuil (1952), a primeira tentativa muito grosseira de um romance semiautobiográfico, e, Contre Sainte-Beuve (1954), uma coleção de textos ensaísticos e narrativos, que Fallois chamou de “o sonho de um livro, ideia de livro”.
 
Em seu prefácio ao Contre Sainte-Beuve, Fallois também escreveu sobre a existência de “soixante-quinze feuillets” — 75 folhas — do texto manuscrito da versão mais antiga de Proust para À la recherche du temps perdu. Mas quando um grande número de manuscritos que Marcel deixou para Robert foi doado por Mante-Proust à Biblioteca Nacional da França, essas páginas não estavam entre eles.
 
Essas páginas perdidas, que os especialistas chamam de santo graal do proustianismo, foram consideradas perdidas para sempre. Em 2018, após a morte de Fallois, as 75 folhas — que acabaram sendo 76 laudas — foram encontradas em pastas entre os feitos de Fallois. Os papéis foram organizados por tema e colocados em cinco pastas de arquivo numa caixa com os nomes designados por Fallois: “Soirees de Combray”, “Le Coté de Villebon”, “Les Jeunes Filles”, “Noms nobles” e “Venise.”
 
Essas páginas, com suas correções, repetições e mudanças abruptas de nomes, são a fonte de onde fluem as milhares de páginas do trabalho final do escritor francês. São rascunhos, mas são rascunhos de gênio e, em abril, foram publicados pela Gallimard, a mais prestigiosa das editoras francesas, a mesma que rejeitou No caminho de Swann quando Proust o apresentou em 1912.
 
Proust havia abandonado a ficção em 1899, quando deixou de lado Jean Santeuil. A morte de sua mãe em 1906 parecia ter despertado nele o desejo de escrever ficção novamente, e no final de 1907 ou no início de 1908 foi tomado outra vez por esse desejo — ou seria a habilidade? — para escrever ficção. Ele voltaria a essas páginas de rascunhos recém-publicadas, revisando e acrescentando coisas. Lendo-as agora, estamos presentes na realização da mais profunda e inesgotável obra literária do século XX. Se a humanidade desaparecesse, todas as suas emoções, fraquezas, impulsos e desejos poderiam ser recriados a partir dessas páginas.
 
Nas pastas de Fallois podem ser encontradas em uma forma preliminar muitos dos elementos e incidentes que seriam centrais para a obra-prima concluída de Proust. Aqui temos o desejo quase ensandecido do narrador pelo beijo de boa-noite de sua mãe que ocupa a parte de abertura do No caminho de Swann; o encontro com as moças, as jeunes filles en fleurs em um balneário do segundo volume da obra, entre as quais estará o grande amor do narrador, Albertine. A obsessão de Proust com o romance dos grandes nomes da aristocracia francesa também está aqui, assim como o cerne de todo esse empreendimento — a ideia da memória involuntária, a única forma verdadeira e válida de lembrança, segundo o autor.
 
A maioria dessas questões, como é natural nos primeiros rascunhos, difere das versões finais: a icônica madeleine nessas páginas é uma torrada comum. O som, não apenas o paladar ou os passos do narrador sobre os paralelepípedos irregulares, é adicionado à bateria de coisas que podem reviver o passado. Proust escreve aqui, depois de tentar em vão ressuscitar um dia perdido de sua juventude, que “deixei minha colher cair no meu prato. Foi então produzido exatamente o mesmo som do martelo dos freios que naquele dia bateram nas rodas do trem na sua parada. Naquele mesmo momento, a hora ardente e cega em que esse barulho soou foi revivida para mim...” Talvez o mais surpreendente, o narrador, aqui dado seu nome verdadeiro, tem um irmão mais novo, um irritante para bater, que “embora apenas cinco anos e meio de idade, era de natureza bastante violenta.”
 
O estilo dessas páginas recém-descobertas é distintamente proustiano, e uma frase que atravessa uma página inteira não é uma raridade. Há também páginas extremamente humorísticas, como quando Marcel se propõe a traduzir uma carta elíptica e enigmática escrita por sua amada mas excêntrica avó, que achava que “por prudência nunca se deve escrever nomes próprios em cartas, [e então] ela falou de tudo por meio de alusões, figuras de linguagem e enigmas, ninguém entendia de quem ela estava falando”. Seu estranho gosto — para uma pessoa francesa — por ar fresco e janelas abertas inspira passagens de leveza cativante, que são especialmente picantes quando lembramos que Proust se mantinha em uma sala forrada de cortiça para evitar ataques de asma.
 
Na versão final de Em busca do tempo perdido, alguns dos personagens têm como fonte principal algo na realidade, mas quase todos são um amálgama de muitas pessoas na vida de Proust, com traços e características cruzando até mesmo de um gênero para outro. Albertine, o interesse amoroso do narrador, por exemplo, é baseado em parte no amor de Proust, seu motorista Alfred Agostinelli.
 
Nas setenta e cinco páginas, um pequeno número de personagens principais mantém seus nomes verdadeiros. O narrador é chamado de “Marcel”, sua avó materna se chama “Adèle” e sua mãe se chama “Jeanne”. A versão final encontrará o narrador sem nome, sua mãe simplesmente “Maman” ou “ma mere”, e sua avó, após várias tentativas fracassadas de encontrar o nome certo para ela, se tornará Bathilde. Os verdadeiros nomes dos personagens, que nos devolvem aos seus portadores, são uma lembrança da grande característica tácita da obra acabada: o judaísmo de um lado da família de Marcel.
 
O apagamento do judaísmo de Marcel no narrador final é uma das características mais marcantes da obra de Proust, em que o caso Dreyfus, o judaísmo e os personagens judeus aparecem com destaque. O nome de solteira da avó materna de Proust era Berncastel, e seu nome de casada era o nome judeu comum na Alsácia, Weil. Um tio-avô que apareceu aqui era na verdade Louis Weil — nascido Lazard Weil — cunhado da avó do autor. Weil também era o nome de solteira da mãe de Proust.
 
A desjudaização do narrador não foi produto do ressentimento familiar. Ao contrário, Proust adorava sua mãe acima de todas as pessoas no mundo, e sua afeição perplexa por sua avó judia é óbvia. Os parentes judeus de Proust eram bem-sucedidos financeiramente e, no início, nem todos são anônimos.
 
Em um dos “autres manuscrits” — outros manuscritos — incluídos no novo livro, quando surge a “avareza” da bisavó de Marcel, que se recusou a pagar suas viagens de ônibus, somos informados de que ela acreditava que o presidente da França isentou-a de pagar a passagem de ônibus graças à sua “relação com M. Cremieux” (ela era sua cunhada). O Cremieux em questão era Adolphe Cremieux, a figura política judia responsável pela concessão da cidadania francesa aos judeus da então colônia francesa da Argélia em 1870, que era, na verdade, casado com uma tia da avó de Proust.
 
Cremieux não aparece na obra acabada, mas sua sombra permanece: na versão final, o tio do narrador — em cujo apartamento ele vê pela primeira vez a mulher que mais tarde conhecerá como esposa de Charles Swann, a cocote Odette — chama-se Adolphe. Este tio, cunhado da avó de Marcel, com quem ela tem um relacionamento tenso e provocador nas páginas do manuscrito, era bem relacionado e abastado, bem-recebido nas melhores casas. E, no entanto, sempre que passava um tempo no campo, ele pedia à família de Marcel ou àqueles que o convidaram para ir a suas casas para providenciar um encontro com a filha de um juiz rural local ou a filha de um fazendeiro. Proust escreve: “havia uma certa ousadia da parte do meu tio ... em querer que todos no mundo servissem como seu casamenteiro”.
 
Essa afeição por mulheres de status social inferior foi posteriormente compartilhada entre o tio Adolphe do romance e Charles Swann. Uma explicação social para essa preferência por se aproximar das mulheres que ele está “acima” é dada em um caderno preliminar, que demonstra a simpatia de Proust pela sorte do judeu na sociedade francesa: “Talvez suas origens judaicas tenham sido, em certa medida, a causa disso ... que deu a ele, da memória das humilhações que é raro um judeu não sentir em sua infância, uma espécie de medo de ser desprezado, de ser malvisto”.
 
Mas Proust enfraquece essa visão simpática ao propor outra razão para o gosto de Swann (e de seu tio) por jovens francesas das classes populares: foram também suas raízes judaicas que, Proust sugere, “o conduziu (da maneira como certos romanos encontraram um maior encanto em penetrar certos cativos orientais) para encontrar uma atração particularmente grande em jovens cristãs devotas, onde sua alma incrédula bebeu com deleite o novo sabor da água benta e da terra da França”. Esse desejo de manchar e “penetrar” as mulheres cristãs é um tropo antissemita muito familiar.
 
Nas primeiras versões incluídas aqui, como em sua vida, o judaísmo de Proust desempenhou um papel em suas atividades públicas e privadas, em suas amizades e em suas relações familiares. Mas não havia nada de simples nisso em ambos os casos. Através da magia da ficção e da transmogrificação de personagens, o próprio judaísmo de Proust desapareceu ao desaparecer o de seus parentes. Para Nathalie Mauriac Dyer, bisneta de Proust, que é a editora deste volume e autora do notável texto analítico que segue os manuscritos de Proust, a atribuição de características originalmente pertencentes a um membro da família de Proust a um estranho como Swann, foi uma maneira de “falar do judaísmo sem dizer que está ligado à sua própria família”. O fictício Marcel obliterou qualquer vestígio da metade judaica de sua formação, da mesma forma que tratou a homossexualidade como uma preferência sexual que outras pessoas praticavam. E, no entanto, o romance acabado é um livro marcadamente judeu.
 
As primeiras partes de Em busca do tempo perdido recuperam o auge do caso Dreyfus, e mesmo no mundo do esnobismo social em que o narrador passa seu tempo, a posição de seus companheiros sobre a culpa ou inocência do capitão serve para defini-los. Proust era um apoiador de Dreyfus, um d em um dos momentos mais estranhos do período, chegou a assinar uma petição em apoio a Dreyfus, a pedido de Anatole France. Em setembro de 1898, ele até participou de um comício de defesa em que falou o grande líder socialista Jean Jaurès.
 
Mas o Marcel Proust que defendeu Dreyfus também era leitor regular de apenas um jornal, o monarquista, anti-Dreyfusard e antissemita L’Action Française. Proust escreveu que, embora parte do que leu neste jornal de perseguição aos judeus o tenha deixado “enjoado”, elogiou os talentos literários de seus escritores mais famosos, o feroz odiador-de-judeus Léon Daudet e o fundador da Action Française, Charles Maurras. Ele comparou o primeiro a um de seus deuses literários, o conde de Saint-Simon, e elogiou a escrita do último como sendo melhor do que uma “viagem de avião, uma cura para grandes altitudes”.
 
Totalmente consciente dos sentimentos de Daudet por pessoas como sua mãe e sua avó, em 1895, no auge do caso Dreyfus, ele jantou como sempre fazia na casa dos Daudet. Em uma carta a seu amigo, o compositor Reynaldo Hahn (um judeu nascido na Venezuela) Proust descreveu o antissemitismo das observações que Daudet fez durante a refeição e escreveu a Hahn que a redução de Daudet de tudo ao fato de eles terem ou não sangue judeu era “ininteligente. O mais fechado dos conceitos intelectuais.” Mas ele continuou a frequentar seus jantares e admirar seu talento.
 
Isso pode ser atribuído a uma amizade cega, mas Em busca do tempo perdido tem uma alma dividida quando se trata de judeus e judaísmo. Sem dúvida, uma das figuras mais atraentes do livro é o rico judeu Charles Swann, um homem facilmente capaz de se mover em qualquer círculo que desejar. Mas o tratamento dispensado ao amigo do narrador, Albert Bloch, novamente revela a divisão em Proust.
 
O historiador Saul Friedlander, em seu livrinho perspicaz, Proustin Uncertainties, destaca a descrição de Bloch sobre o narrador como um sinal da aversão de Proust pelos judeus. A certa altura, Bloch é descrito como “entrando na sala como uma hiena”. Friedlander nos lembra que Proust havia usado o mesmo animal desagradável antes, ao descrever a entrada de seu amigo em uma reunião aristocrática, descrevendo seu passo de hiena como “agachado” e não “pulando”. Friedlander ressalta que “as hienas não são conhecidas por pular de nenhuma maneira especial. O uso dessa comparação incomum para descrever uma pessoa entrando em uma sala só pode significar empurrar a si mesma, entrar à força ou algo semelhante. ‘Pulando como uma hiena’ não faz sentido, exceto que indica o desejo do narrador de ser o mais ofensivo possível ... com um velho amigo.” O narrador, desprovido de suas raízes étnicas, é uma presença natural entre os abastados. Bloch, sendo Bloch, ou seja, um judeu, um intruso.
 
O apagamento das origens judaicas da família materna de Marcel resulta em uma mudança significativa numa cena que aparece tanto nos manuscritos preliminares quanto na obra final. Na obra concluída, o avô do narrador, despojado de sua condição de judeu, está convencido de que seu neto estava sempre trazendo para casa novos amigos que eram judeus. Para expressar sua dúvida sobre o francesismo dos convidados do narrador, ele cantava músicas da ópera La Juive, sinalizando que o “Dupont” sentado à mesa não era um Dupont. Os convidados eram submetidos a um “interrogatório dissimulado” e se suas origens fossem admitidas ao avô cantava baixinho “Este tímido israelita passa / Você guia aqui entre nós”. Mesmo que Proust insista que nenhum “sentimento malévolo” deve ser inferido da conduta do avô, ele é claramente um detentor de opiniões antissemitas.
 
Em um dos primeiros cadernos, esse sentimento é expresso de forma diferente: aqui o avô é judeu e “não gostava de judeus”, ou pelo menos judeus de um certo tipo: aqueles que escondiam seu judaísmo em um esforço para assimilar. “Nele, esta era uma daquelas pequenas fraquezas, um daqueles preconceitos absurdos que se encontram nas naturezas mais justas.” Nessa versão preliminar do avô materno, este também cantava trechos de La Juive ou Samson et Delilah, mas agora como um sinal de que ele não foi enganado, que sabia que, apesar de sua tentativa de dissimulação, o convidado era — como ele — um dos Escolhidos.
 
A ambiguidade do judaísmo de Proust pode ser encontrada em uma carta que escreveu em maio de 1896 a seu amigo conde Robert de Montesquiou, o modelo esnobe do esnobe Barão de Charlus. Embora as circunstâncias não sejam certas, podemos deduzir que Montesquiou desencadeou um discurso antissemita na noite anterior na presença de Proust. Proust explica em uma carta escrita no dia seguinte que não foi capaz de responder à contagem “por este motivo simples; se sou católico como meu pai e meu irmão; minha mãe, por outro lado, é judia. Você entende que esta é uma razão forte o suficiente para que eu me abstenha desse tipo de discussão. Achei que seria mais respeitoso escrever para você do que responder diretamente a um segundo interlocutor ... [Se] nossas ideias forem diferentes, ou melhor, se eu não tiver a independência para ter aquelas que talvez eu tivesse, você pode ter me ferido involuntariamente em uma discussão ... Claro, não estou falando sobre aquelas que poderiam acontecer entre nós dois, onde sempre estarei extremamente interessado em suas ideias sobre política social, caso você as exponha para mim, mesmo que um motivo da maior adequação me impeça de aderir a elas. ”
 
A delicadeza com que Proust expressa seu desacordo com o amigo é impressionante e diz muito sobre seu desejo de manter a amizade e evitar uma cena em público. Mas acompanhando a delicadeza está o distanciamento de seu próprio passado. Ele se descreve como “católico”, como seu pai e irmão, o que, dado o fato de ter sido batizado, é inegável. Mas não é ele que é judeu, mas sua mãe, embora, dada a religião de sua mãe, ele pudesse reivindicar esse status também.
 
Quando a mãe de Proust morreu em 1906, o “motivo da maior adequação” que o impedia de compartilhar o antissemitismo da aristocracia estava fora do caminho. Ele não se tornou um antissemita e, ao lado de sua zombaria de Bloch, sua obra final também tem simpáticos personagens judeus. Mas Bloch é uma presença incômoda, aparecendo em vários lugares de Em busca do tempo perdido, enquanto tenta mais tarde na vida disfarçar sua origem étnica assumindo um nome “francês”, com a particule “du” que eleva falsamente seu status social duas vezes, uma para o posto de francês não judeu e depois para a aristocracia. (Deve-se notar que o novo nome de Albert Bloch, Jacques du Rozier, de certa forma aponta para sua verdadeira etnia: Rue des Rosiers é uma rua no bairro judeu parisiense de Marais.)
 
A preciosidade de Bloch e sua vergonha evidente de ser judeu levam alguém a fazer uma pergunta: será que Bloch é um exemplo tão fino e convincente de um judeu francês que vive de má fé porque carrega uma parte não insignificante persona da vida real de Proust? Quem quer que tenha sido a base para Bloch, é difícil evitar pensar que Marcel Proust contribuiu para o personagem. Pode-se facilmente imaginar o avô de Proust, em seu desdém pelos judeus assimilados que escondem seu judaísmo, cantando árias de óperas com temática judaica para expor Marcel como um judeu assimilado envergonhado que conseguiu abrir caminho para a alta sociedade. 

* Este texto é a tradução de “Proust Madeleine Was Originally a Slice of Toast”, publicado aqui em Tablet

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