A palavra despida: O caderno rosa de Lori Lamby

Por Leonardo Prudêncio


Hilda Hilst. Foto: Pio Figueiroa

 
Este trabalho pretende analisar a simbiose que a autora Hilda Hilst provoca em seus leitores ao mesclar textos de diversas formatações e tipos mais o artifício das ilustrações, no romance O caderno rosa de Lori Lamby (1990). Embora as ilustrações tenham ficado a cargo de Millôr Fernandes, e eles não tenham trocado informações entre si sobre como deveria ser feito o trabalho, percebe-se que na edição original, onde a totalidade desse trabalho gráfico foi apresentada, há não apenas um diálogo entre imagem e texto, mas uma simbiose de signos linguísticos que começam no texto e perduram nas ilustrações.
 
O livro em questão foi elaborado dentro de um projeto de literatura obscena denominado, por alguns, como “Tetralogia obscena”. A reunião desses quatro trabalhos (O caderno rosa de Lori Lamby; Contos de escárnio — textos grotescos; Cartas de um sedutor e Bufólicas) se deu em um volume chamado Pornô chic (2014). Nessa obra foram reutilizadas algumas das ilustrações que Millôr Fernandes fez para a primeira edição d’O Caderno, em 1990. Sobre esses quatro livros, em questão, Alcir Pécora nos diz:
 
“Na sua forma geral, portanto, os textos obscenos de Hilda, dramatizam o instante de confronto entre a arte mais radical da palavra, no limite de sua apreensibilidade, e a sua normalização habitual, a qual pode ocorrer pelas expectativas simplistas dos leitores, pelas contas dos editores desinteressados de tudo o que não seja conta dos editores, ou ainda pelos ridículos próprios do autor, macaco vaidoso de si mesmo.” (2010, p. 26)
 
Na elaboração deste artigo, pensamos em observar o texto literário de Hilda Hilst interligado ao trabalho do ilustrador Millôr Fernandes, fazendo a narrativa obscena transpor da palavra para a imagem. Esperamos fornecer um novo olhar não apenas para o texto ficcional hilstiano, como também, outra perspectiva de leitura para o romance em questão.
 
O caderno rosa de Lori Lamby: uma aventura obscena de Hilda Hilst
 
Hilda Hilst já era um grande nome da literatura de língua portuguesa quando decidiu romper com a literatura “séria” e se enveredar na escrita pornografia de três livros de prosa e um de poemas. A ideia inicial da autora era chamar atenção para outro tipo de público, ou para mais público em torno de sua obra, além de ser uma forma de protesto contra os editores de seus livros anteriores, visto que a narrativa é permeada por uma fina crítica ao mercado editorial. Em uma entrevista a autora comenta:
 
“Os editores, normalmente, são pessoas ligadas ao dinheiro. Por isso não andam atrás de mim. Só os estrangeiros... quando eu quis lançar o meu primeiro livro erótico, O caderno rosa de Lori Lamb — onde uma criança de oito anos relata aventuras amorosas  imaginadas ou ouvidas por ela, dentro de uma concepção pueril do sexo –, eu encontrei uma grande resistência (...) eu adoro quando acham que o texto é obsceno. Geralmente dizem que eu fiz um ‘pornô-chic’.” (HILST, 2013, p. 167)
               
Foi no período de publicação desses livros que ela conseguiu um alcance maior de público, embora uma parte da crítica especializada tenha criticado ferozmente essa fase obscenamente mais escancarada que as outras. Porém, embora seja tido, por alguns, que o gênero pornográfico seja um texto menor, devido a aparente simplicidade de linguagem, notamos que Hilst manteve a qualidade de sua obra nessa tetralogia, tanto estéticas quanto temáticas. Ainda sobre o aspecto erótico de seus textos Vera Queiroz comenta que:
 
“Não há criação nem literatura em Hilda Hilst fora do exercício da radicalidade, e o erotismo que compõe boa parte de sua obra está ancorado nesse pressuposto. Trata-se, assim, de erotismo levado às últimas consequências, entendendo-se aqui motivos, linguagens e cenas que atingem paroxismos coprológicos e escatológicos, focalizando relações homossexuais e incestuosas. (...) não há como fugir à expressão: Hilda Hilst pega pesado.” (QUEIROZ, 2000, p. 23)
 
Vista, de um modo geral, toda a sua produção é um embate de linguagens e temas. Nada foge do texto hilstiano, nem tampouco de um texto onde encontramos uma narradora de oito anos de idade falando sobre as suas aventuras sexuais, sem censura, pois pudor não é uma palavra que cabe em sua ficção. Mais adiante, ainda, Queiroz comenta:
 
“A construção de O caderno rosa também se faz por processos literários altamente sofisticados, de modo a impedir qualquer projeto mais conservador de expropriação seja do cânone literário, seja da alta arte. Isso se dá basicamente pela estrutura em abismo de diário, escrito e protagonizado por uma menina de oito anos, que na verdade copia escondido outro texto que está sendo escrito por seu pai, a quem o editor pedira que escrevesse estórias sacanas que vendessem mais do que o tipo de literatura que ele usualmente produzia.” (QUEIROZ, 2000 p. 26)
               
Existe uma chave de leitura que interpreta este livro como uma alegoria sobre o mercado editorial que Hilda tanto se sentia desprezada. O autor Antonio Edson Alves da Silva nos apresenta uma crítica que essa obra faz à sociedade de consumo:
 
“Além das duras críticas às imposições da mídia que orienta o consumo desenfreado e atribui felicidade a isso, percebe-se aqui uma discreta crítica ao universo escolar que também é um forte meio para robotizar as crianças a consumirem de acordo com padrões específicos das classes dominantes.
 
Outra menção é feita à figura televisiva bastante influente à infância dos anos de 1990, que é a apresentadora Xuxa, com a venda desenfreada de suas bonecas.” (SILVA, 2019, p. 187)
 
Durante a leitura da obra a personagem Lori comenta o quanto gosta do dinheiro que ela ganha com esses encontros sexuais e demonstra receio que outras meninas, mais lindas que ela, possam ganhar mais dinheiro, ou seja ela tinha consciência capitalista do poder aquisitivo, conforme no trecho:
 
“Ele perguntou me lambendo se eu gostava do dinheiro que ele ia me dar. Eu disse que gostava muito porque sem dinheiro a gente fica triste porque não pode comprar coisas lindas que a gente vê na televisão. Ele pediu pra eu ficar dizendo que gostava de dinheiro enquanto ele me lambia. Eu fiquei dizendo: eu gosto do dinheiro.” (HILST, 1990, p. 13)
 
Em outro diálogo a personagem ao perguntar sobre o significado de uma palavra acaba nos mostrando, novamente, o que ela pensava do dinheiro e da forma como ganhava-o:
 
“— O que é raro?
— Raro é quando pouca gente tem.
— O que, por exemplo?
— Dinheiro — ele disse — e os teus furinhos.
— Mas dinheiro é fácil.
— É fácil nada.
— Pra mim é fácil.
— É que você é predestinada.
Aí ficou muito complicado pra ele me explicar o que é predestinada. Eu pedi pra ele me escrever essa palavra pra eu pôr aqui no caderno, ele escreveu, mas a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra ser lambidos e outros pra lamberem e pagarem. Aí eu perguntei por que quem lambe é quem paga, se o mais gostoso é ser lambido. Então ele disse que com gente grande os dois se lambem e tem até gente que não paga nada nem pra ser lambido.” (HILST, 1990, p. 30 e 31)
 
Isso demonstra que não se tratava apenas de uma narrativa obscena, Hilst através de um enredo pesado nos passava um olhar crítico sobre a sociedade de consumo e como isso impactava as crianças e os pais, tendo em mente que a prostituição de Lori é consentida por eles.
 
Ao analisarmos o projeto gráfico, da obra em estudo, notamos subtextos que explicitam o teor temático do Caderno rosa que é: um livro com linguagem infantil, o que necessariamente não quer dizer que seja conteúdo para crianças. Por exemplo, na capa feita a partir de uma das ilustrações de Millôr Fernandes:

 Capa da 1.ª edição de O caderno rosa de Lori Lamby (Massao Ohno Editor, 1990) 


Pela ilustração selecionada para a capa notamos um ar de mistério pelo rosto de uma das personagens sendo escondido pelo nome da autora, em destaque, e do título do livro. As cores são alegres e nos passam um ar pueril típico, talvez, de uma história infantil. Porém, o contraste é fornecido ao leitor quando ele se depara com o parágrafo inicial que, em certo sentido, é um tanto quanto perturbador:
 
“Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e que mami me disse agora que não é tão moço, e então eu me deitei na minha caminha que é muito bonita, toda cor de rosa. E mami só pôde comprar essa caminha depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar. Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu para eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. Eu gosto gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. Daí o homem disse para eu ficar bem quietinha, que ele ia dar um beijo na minha coisinha. Ele começou a me lamber como o meu gato se lambe, bem devagarinho, e apertava gostoso o meu bumbum.” (HILST 2013, p. 11)
 
Esse parágrafo é antecedido por um perfil nu, quem sabe, de Lori Lamby. E é assim que a personagem se apresenta para o leitor — nua:

Millôr Fernandes. Ilustração de O caderno rosa de Lori Lamby. Reprodução.


 
Ao expor a personagem principal da história despida, logo no início da trama, os editores não apenas a apresentam, eles também demarcam, novamente, o tom da história dali por diante. Esse jogo texto-ilustração é uma constante ao longo de toda a edição preparada por Massao Ohno, o editor que lançou boa parte da obra da autora, enquanto ela estava viva. Nesse primeiro momento, notamos uma preocupação não apenas com o estético-textual, mas sim uma preocupação com o estético-editorial e a sua recepção com o público leitor. Esse jogo semiótico com a imagem/ilustração entra de acordo com o pensamento de Dominique Maingueneau sobre o discurso pornográfico:
 
“Analisar a literatura pornográfica é, inevitavelmente, distingui-la de outras práticas semióticas que também podem derivar do pornográfico (gravuras, desenhos, fotos, filmes, revistas, espetáculos...), apesar de essas diversas práticas serem regularmente associadas: as obras pornográficas são frequentemente ilustradas, e o próprio mercado alimentou constantemente os amantes dos textos e os amantes de imagens. Isso vai além da mera complementaridade: os ‘quadros’ de atividades sexuais representados nas narrativas pornográficas estão calcados nos códigos de representação da imagem em um momento dado. Até muito recentemente, o texto era da ordem do fluxo, enquanto a imagem era estática; mas com o desenvolvimento do cinema, depois dos videocassetes e dos dvds, por fim, da internet tornou-se, por sua vez, fluxo narrativo, baralhando a hierarquia entre texto e imagem.” (MAINGUENEAU, 2010, p. 16)
 
Por sua vez, a narrativa presente n’O caderno rosa acompanhou a transição híbrida desses códigos de linguagem: a imagem (cinema) e a palavra (literatura). Ao publicar um romance que trabalha tanto a imagem quanto o texto, Hilda Hilst atualiza a sua própria ficção e dá, quem sabe, o pontapé para que outros autores brasileiros percebam também essa passagem lúdica da palavra para a imagem. Esse encadeamento se deu de forma tão bem resolvida que, anos depois de publicada a primeira edição, aconteceram encenações para o teatro, transpondo a voz oral grafada no livro para a vivacidade do palco.
 
Esse texto ficcional de Hilst é costurado por silêncios que vão atravessando todo o texto, o que leva ao conceito de texto poético por A. J. Greimas:
 
“Um texto poético qualquer apresenta-se como um encadeamento sintagmático de signos, tendo um começo e um fim marcados por silêncios ou espaços brancos. Os signos, definidos de acordo com a tradição saussereana, pela reunião de um significante e de um significado, podem ter dimensões desiguais: uma palavra, uma frase, são signos, mas também um discurso, na medida em que este se manifesta como uma unidade discreta.” (GREIMAS, 1975, p. 16)
 
Esses silêncios construídos ao longo d’O caderno rosa não são meros indicadores de capítulos, ou pausas, são recursos de linguagem que se tecem juntamente com o som das palavras grafadas no papel. Susan Sontag, ao abordar a estética do silêncio, comenta:
 
“A obra de arte existe em um mundo preenchido com muitas outras coisas, o artista que cria o silêncio ou o vazio deve produzir algo dialético: um vácuo pleno, um vazio enriquecedor, um silêncio ressoante eloquente. O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos, de protesto ou acusação) e um elemento em um diálogo.” (SONTAG, 1987, p. 18)
 
É interessante notar que isso ocorre através de um contexto ficcional pornográfico, cuja base estética é produzir imagens ao espectador, sejam elas escritas ou desenhadas. Ao lermos o texto de Lori Lamby percebemos o trabalho da autora em detalhar e descrever certas situações sem passar pelo crivo do pudor, que é outra marca do texto pornográfico.
 
Outro aspecto que notamos, no decorrer da leitura do livro de Hilst, é que as ilustrações não servem como um mero guia para o leitor, elas estão ali como parte integrante do Caderno rosa, a leitura se faz rica ao observar esse diálogo entre o texto de Hilst e o de Fernandes.

Santaella e Nöth (1998) comentam que o uso semiótico de imagens não faz meramente com propósito mimético, como se algo fosse uma cópia da outra, nesse sentido o que Fernandes propõe não é reproduzir o texto através de uma leitura por imagem, mas uma nova possibilidade de enxergar a narrativa pelo viés do traço desenhístico.
 
Como se trata de uma narrativa feita pela voz/ linguagem infantil o trabalho de Fernandes lembra um livro ilustrado por/ para crianças, o que eleva até o sentido que a autora queria passar para o leitor, embora claramente não seja um livro destinado ao público infantojuvenil, por conta da temática abordada, esse universo de infantilidade e pureza é reforçado com suas ilustrações. Vejamos outra delas:

Millôr Fernandes. Ilustração de O caderno rosa de Lori Lamby. Reprodução.


O universo do grotesco é repassado pelo trabalho de Fernandes. As imagens que ele busca trabalhar não passam pelo crivo do belo, do sublime, mas pela ordem do asco e sujo, como a escrita de Hilst nesse romance. Ao levar para as imagens a mesma linguagem utilizada na escrita, Fernandes proporciona uma harmonia tonal entre linguagens: escrita e visual.
 
A colagem de tipos textuais que Hilda proporciona ao longo da narrativa é outra forma de se utilizar da semiótica. O romance em análise possui narração em primeira pessoa, ou seja, em tom confessional; contos e diálogos que lembram esquetes teatrais, esse almanaque de gêneros literários que faz da narrativa hilstiana um aparato de fragmentos não foge da tonalidade que a autora imprime no decorrer da história.
 
“A prosa de ficção de Hilda Hilst compõe-se de narrativas de forma livre, que dificilmente chegam a constituir-se como conto, pois esses são gêneros literários concebidos na chave da articulação de profundidade psicológica, tensão narrativa, desenvolvimento unitário e progressivo de ações complexas. Nada disso, como já se viu, define adequadamente a prosa anárquica da autora”. (PÉCORA, 2018 p. 412)
 
Portanto, a sua obra de ficção é feita por um entrelaçamento livre de gêneros e tipos semióticos. Todos os elementos apresentados, de ilustrações e colagens de textos, funcionam como signos linguísticos de uma vida ficcional apresentada por partes ao leitor. Como lembram Edna Gomes de Sousa Leão e Simone Carneiro de Mendonça (2019) o escritor ao selecionar diferentes elementos de semiologia acaba potencializando o texto em sua significância. Esse recurso, utilizado pela autora do livro em estudo, ajuda a potencializar o caráter de linguagem híbrida desse romance que se vale de um elo entre textos, e textos, e ilustrações.
 
Percebemos ao longo do estudo para este ensaio que a obra ficcional O caderno rosa de Lori Lamby é construída de forma hibrida e livre. Ao costurar a sua edição com costuras semióticas a autora proporciona uma aventura lúdica e, de certa forma, não convencional com o que era praticado no romance brasileiro da época. Esperamos voltar ao texto de Hilst em breve, pois a escrita da autora nos mostrou ser fascinante e aberta a múltiplos diálogos teóricos.
 
Referências
 
DA SILVA, Antonio Edson Alves. Hilda Hilst e o Caderno Rosa de Lori Lamby: uma análise de discurso pornográfico. Revista Interfaces, v. 10, n. 04, p. 175-193, 2019.
GREIMAS, A. J. Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultrix, 1975.
HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Massao Ohno editor, 1990.
HILST, Hilda. Fico besta quando me entendem. São Paulo: Globo, 2013.
HILST, Hilda. Pornô chic. São Paulo: Globo, 2014.
MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. São Paulo: Parábola, 2010.
NÖTH, Winfried; SANTAELLA, Lucia. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
PÉCORA, Alcir. Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.
PÉCORA, Alcir. Cinco pistas para a prosa de ficção de Hilda Hilst. In: HILST, Hilda. Da prosa. São Paulo: Companhia das letras, 2018, vol. 2.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SOUSA LEÃO, Edna Gomes de; MENDONÇA, Simone Carneiro de. Semiótica: principais conceitos e seus desdobramentos. In: OLIVEIRA, Custódia Annunziata de. Semiótica e tradução: vários olhares. Goiânia: Prime, 2019.
 
 

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