Inferno, de Dante Alighieri

Por André Cupone Gatti




 
Saiu pela Companhia das Letras, no segundo semestre do ano passado, uma nova e muito aguardada tradução para o Inferno, primeira parte da Comédia, de Dante Alighieri. Muito aguardada porque, além de apresentar ao público brasileiro mais uma dentre algumas traduções para o português de um dos textos mais notáveis da literatura ocidental, foi empreendida por três tradutores, a seis mãos (fato, até onde sei, inédito por aqui no que diz respeito às traduções dantescas), e não quaisquer três tradutores: Emanuel França de Brito, Pedro Falleiros Heise (ambos pesquisadores da obra de Dante no mestrado e doutorado) e Maurício Santana Dias, um dos mais prolíficos e talentosos tradutores do italiano ao português, premiado no Brasil e na Itália por sua atividade como tradutor.
 
Qualquer nova tradução de um texto tão geometricamente conjecturado e tão rico de inventividade verbal como é a Comédia já causaria alguma curiosidade nos amantes da boa literatura; essa em questão, no entanto, por ser construída sob o juízo de três tradutores que conhecem bem tanto as armadilhas e teorias da tradução quanto parte relevante da fortuna crítica dantesca, nos chama especial atenção como um trabalho que, filtrando e refiltrando propostas tradutológicas anteriores, nos chega tal qual uma foz de rio, ponto super delicado onde equilibram-se uma sorte de riscos, soluções e perguntas. Mesmo sabendo que nenhuma tradução é definitiva, essa última, na qual se percebe uma aguda consciência dos recursos formais de Dante, dos problemas de traduções anteriores e dos inevitáveis débitos que nesta se encontram, é certamente uma pedra angular na história da tradução do Inferno em língua portuguesa no Brasil.
 
Completam a bem cuidada edição uma apresentação dos três tradutores contextualizando o texto de Dante na cosmovisão de sua época e nos percalços da sua jornada filológica; textos complementares de Dante Milano, Eugenio Montale e Pier Paolo Pasolini; e um ensaio visual de Evandro Carlos Jardim, no qual a costumeira e objetiva figuratividade que emana dos tercetos de Dante, celebrizada pelos desenhos de Gustave Doré, dão lugar a interpretações abstratas das visões infernais, o que gera um contraponto interessante à concretude das imagens criadas pelo poeta.
 
Conjectura, história e invenção
 
A grande obra de arte não se reduz a um modo unívoco de ver o mundo ou a uma única maneira de traçar o seu jogo. Mesmo quando imbuída de intenções políticas, dogmáticas ou simplesmente morais, a grande arte sustenta-se naquilo que traz de provocador, de inconclusivo, de polissêmico. A dúvida é o núcleo do gênio artístico.
 
A Commedia, de Dante Alighieri, embora nos apresente uma visão de mundo fixa derivada da doutrina tomista, abre tantas frestas na esfera das formas individuais, da existência material e mundana, e dos fatos em si, que ao leitor atento é revelado um complexo e multívoco mundo escrito, um mundo que, intentando partir de situações concretas para atingir a clareza de um pensamento universal, prova constantemente os limites da linguagem e da representação.
 
Esse projeto literário, que tão inventivamente uniu a antiguidade clássica (aristotelismo) à era cristã (doutrina tomista), é tão vasto quanto preciso: cada imagem é construída metodicamente e a composição de cada verso segue as leis de um “sentido sonoro”; a concretude e clareza dantescas estão em harmonia com a alta voltagem da invenção verbal. Como algumas vezes apontou Erich Auerbach, toda a camada sensorial em Dante pode apontar para um significado além, e geralmente aponta, mas possui uma importância em si. “As imagens não significam ‘outra coisa’ mas são a linguagem na qual a alma se expressa, e seu sentido lhe é absolutamente fiel.” (AUERBACH, 1997, p. 97)
 
As reverberações históricas da Comédia nascem do mais fundo inferno, o inferno contemporâneo. A Florença do século XIII é o ponderável modelo social no qual será forjada a matéria do mundo dos condenados, o exemplo negativo de sociedade que, sob a aguda consciência de Dante, mas também sob suas feridas pessoais, será recriada no que tem de mais passional, concreto e humano. A voz dos danados é uma janela aberta, não a tipos, não somente a exemplos, mas a uma galeria de identidades que saltam ao texto, como se feitos de carne e osso, e é quase isso, pois no projeto holístico de Dante, a palavra é criadora onipotente. Nessa tentativa de recriar, com palavras, a integridade de uma cosmogonia, o poeta desenvolve um afiadíssimo poder conjectural, tal qual o de Homero e Virgílio, o qual costura a filosofia à História, arrematando um texto onde convivem a forma rígida e a invenção.
 
A língua na qual a Comédia foi escrita, por ser pré-normativa, tornou-se, nas mãos do poeta, um recurso incrivelmente plástico, passível de quase ilimitadas possibilidades sintáticas e lexicais, e suficientemente eloquente e precisa para dar conta da natureza enciclopédica da obra. Essa língua, se por um lado obedece à rigidez da métrica e das ideias, por outro torce, refaz, leva a níveis extremos a representação da realidade dantesca. O pensamento objetivo e o seu correlato apelo sensível são as duas forças que, tensionadas, geram a inventividade verbal e a justeza poética.
 
Texto de veredas circulares, enclausurado na vastidão das próprias formas, a Comédia, e mais especificamente o Inferno, comunica o pensamento tomista valendo-se de tudo o que for tangível, áspero, sensível aos ouvidos e aos olhos. Para nós, leitores de hoje, o que pode parecer uma vívida, multiforme aventura, é, em realidade, além disso, o testemunho final, argutamente construído, de um mundo nuclear, central, no qual a experiência resolve-se na repetição e no limite; um mundo em notável declínio a partir daquele final de século XIII.
 
A terceira margem
 
Ler Dante traduzido, especificamente a Comédia, consultando o original na página vizinha, além de suscitar a velha pergunta “é possível traduzir poesia?”, é uma das raras oportunidades de observar de muito perto as complexidades supracitadas. A tradução pressupõe critérios e estes dependem de uma interpretação. Traduzir, portanto, a integridade, um dos cantos, ou apenas alguns tercetos da Comédia, é interpretar o texto eleito, é submetê-lo a uma racionalização a partir da qual poderemos compreender melhor as regras do seu jogo. Nessa investigação dos mecanismos internos de um texto, o que fica ou deveria ficar patente é o contraditório fato de que forma e conteúdo são separáveis e inseparáveis ao mesmo tempo. Essa contradição é o que impõe ao tradutor um olhar constantemente crítico. A Comédia, com sua objetividade imagética e sua precisão verbal, não oferece nada menos que um desafio bastante espinhoso àquele que resolve traduzir o seu texto a um outro idioma. Somente “negociando” os ganhos e perdas da tradução, como inúmeras vezes reforça Umberto Eco no seu Dire quasi la stessa cosa, e tendo em mente o contexto sociocultural em que se inscreve o texto dantesco, somente assim é possível dar os primeiros passos na tradução de uma obra tão inesgotável quanto a Comédia.
 
A nova tradução recria a dupla via do texto de Dante: se por um lado é fidelíssima à métrica e às rimas, por outro é inventiva e ousada no que diz respeito à expressão verbal. Acima de tudo, porém, traduz-se o “marcado pelo marcado e o não marcado pelo não marcado”. Há nessa tradução, portanto, uma característica nem sempre presente nas traduções do Inferno: a recusa à suavização e ao mascaramento.
 
A aspereza do som e do sentido chega à margem portuguesa em sua inteireza. Percebe-se que foi levado a sério a ideia de “reescrever as idiossincrasias e os jogos alusivos que o poeta estabelece com a tradição, nos valendo do repertório poético-musical também do nosso tempo.” como é dito na apresentação. A fluidez musical e sintática do texto de Dante, muitas vezes abolida em outras traduções em função da recriação métrica, faz-se aqui presente, construindo um texto de chegada que não é sombra ou memória ilegível do texto de partida, mas sim uma sua recriação, transcriação, em língua vívida, pulsante. Afinal, tudo em Dante é vívido e pulsante, e erra a tradução que o torna peça de museu. É claro que isso não significa desprezar as condições socioculturais em que o texto original foi criado, mas é essencial, não tirando os pés desse outro e distante mundo, expandir o repertório do português brasileiro, encontrar nele um dialeto inquieto e inventivo, uma língua sísmica como a de Guimarães Rosa (usa-se nessa tradução, aliás, mais de uma vez, um vocábulo bastante rosiano para diabo: diá), que possa dar vazão à torrente de imagens dantescas. O trio de tradutores sabe disso, e traduz, ao que me parece, com muito método e não menos invenção, as nuances da voz poética.
 
Cabe dizer, afinal, que nessa tradução pode-se entrever com alguma clareza os alicerces intelectuais, criteriosos, engenhosos, erguidos pelos tradutores para que fosse possível alguma travessia do texto original ao texto traduzido. A essa coleção de respostas, perguntas, critérios, que ao leitor é dado ver somente em parte, podemos chamar de terceiro texto, ou terceira margem, suspensa, invisível, prova discreta da relevância dessa nova tradução.
 
Bibliografia
 
ALIGHIERI, Dante. Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Tradução, apresentação e organização dos textos de: Emanuel França de Brito; Maurício Santana Dias; Pedro Falleiros Heise. Ensaio visual: Evandro Carlos Jardim. Você pode adquirir o livro aqui.

AUERBACH, Erich. Dante, poeta do mundo secular. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Tradução de: Raul de Sá Barbosa.
 

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