La carretera del tiempo — uma leitura da obra de Juan Rulfo por Cristina Rivera Garza*

 
Por Felipe de Moraes
 
 
[...] Al fin me encuentro
con mi destino sudamericano.
 
— De Jorge Luis Borges, em “Poema conjetural”
 
 
“—¿Qué país es éste, Agripina?”
 
— De Juan Rulfo, em “Luvina”


Ilustração: Santiago Solís


 
Paul Valéry, em suas Lições de Poética ministradas no Collège de France no ano de 1937, observa que é impossível mensurar as forças envolvidas no ato da escrita (2018, p.11 e ss); isso porque a obra literária não é apenas um reflexo da interioridade do seu autor, vista como um produto exclusivo de suas faculdades subjetivas e racionais, ao contrário, o romance, o conto, o poema, o drama só ganham vida no contato com o mundo externo, ou seja, com os seus receptores e na sua circulação histórica e cultural. O texto literário, portanto, pode e deve ser compreendido como uma forma que abriga tensões constantes entre os elementos contraditórios que o constituem: tradição e modernidade, civilização e barbárie, utopia e conservadorismo, variação histórica e permanência clássica, localismo e universalismo, realismo e não-realismo etc.
 
É pensando nessas considerações, e tomando a literatura não como algo que se desenvolva positivamente numa linha hegeliana da História do Espírito, mas sim num feixe de contradições que dialogam no interior de uma estrutura literária específica, que proponho um breve comentário analítico do livro de Cristina Rivera Garza, Había mucha neblina o humo o no sé qué (2016), no qual a autora desenvolve uma leitura bastante particular da obra do escritor mexicano Juan Rulfo ao levantar questões como a posição de Rulfo dentro do cânone literário mexicano da primeira metade do século XX; a relação do autor com as políticas desenvolvimentistas e o modo como sua ficção responde a elas, ainda hoje, ao retratar as populações rurais e campesinas; a visão da história de uma nação como construção ideológica e tantos outros temas que percorrem esse livro cheio de vozes e acabam por se relacionar com as experiências pessoais vivenciadas por Rivera Garza, que borra constantemente as fronteiras entre ensaio, ficção e narrativa de viagem.
 
***
               
Pode-se dizer que Había mucha neblina o humo o no sé qué é um texto híbrido, isto é, possui uma forma que “desestabiliza o estatuto que separa o ficcional e o documental” (cf. Gutiérrez, 2005, p.99) além de não estar escrito somente em espanhol, apresentando trechos no dialeto mixe e trechos em inglês.
 
Dividido em um prólogo, “Lo que nos pertenece”, e seis seções — “Prometerlo todo”, “El experimentalista”, “Angelus novus sobre el Papaloapan”, “Mi pornografia mi celo mi danza estelar”, “Luvinitas” e “Lo que podemos hacer unos por los otros” —, o livro apresenta como linha temática central a relação entre a produção literária e fotográfica de Juan Rulfo e as condições históricas nas quais essa produção se desenvolveu: a autora faz a evocação do autor de Pedro Páramo no contexto de um México em meados do século passado, que passava por seu período de “milagre econômico”, com a presença de capital estrangeiro, o crescimento da industrialização, o alargamento das grandes cidades e os planos da gestão envolvendo as  comunidades dos povos mixes, de Oaxaca, com a  criação da Comissão Papaloapan, da qual Rulfo foi integrante.
 
A discussão das condições de produção da obra de Juan Rulfo, contudo, é apenas uma das camadas temporais do livro de Garza. Uma outra corre em paralelo a essa primeira e vai alterando o tom e o estilo da escritura do livro — trata-se do presente da autora, do seu momento de enunciação enquanto ensaísta, ficcionista e leitora no século XXI, e que vê em perspectiva o México pregresso refletido no México do presente, numa espécie de continuum histórico violento e não muito melhor do que em relação ao passado:
 
“La violencia que azota el país, y que toca sin duda cada rincón de la geografia y de los cuerpos, da cuenta del horrorismo de un regímen que se ha separado de su ciudadanía. Tal vez este libro esté más cerca del presente de lo que yo misma imagino.” (Garza, 2016, p.21)
 
Os planos temporais se cruzam a tal ponto que a investigação ensaística sobre a vida e os textos de Rulfo acaba por se entremear à voz ficcional que Garza cria para expor temas e situações atrelados à sua realidade imediata: a situação complexa dos migrantes e dos povos de fronteira, as diversas línguas faladas no México que acabam homogeneizadas pelo espanhol vernáculo, o corpo feminino e sua sexualidade, a visão da história como acúmulo de barbáries. Temas que, em larga medida, já estão na ficção rulfiana, mas que Rivera Garza potencializa como “pautas” contemporâneas de sua narrativa.
 
Entretanto, isso não deve levar o leitor à falsa ideia de que há uma “correção”, por assim dizer, de Rulfo por Garza; um engano que certas passagens de Había mucha neblina... podem provocar, sobretudo quando a autora faz uma censura à algumas atitudes de condescendência por parte de Rulfo em relação às instâncias políticas e econômicas da época, e o seu silêncio (Garza, 2016, p.139) em relação aos povos nativos que foram obrigados a deixar suas regiões para dar lugar à represa construída na gestão de Miguel Alemán. Alguém poderia dizer, no entanto, que o silêncio de Rulfo está cheio de protesto, está repleto de significação, que não morre na prática de uma literatura engajada ou panfletária, mas permanece como ruído, como resquício dilacerado da vida.
 
A partir de agora, quero me deter no que expõe Rivera Garza sobre Rulfo para, em seguida, comentar de que maneira, do ponto de vista formal, podemos ver seu livro como uma produção híbrida que conjuga gêneros e linguagens diversas na sua constituição.
 
A autora começa por apontar que existiu um descompasso entre a modernização mexicana dos anos cinquenta do século passado e a realidade concebida por Rulfo em seus contos e em seu romance. Em outras palavras, se o trabalho de Rulfo fora da literatura (seu posto como como vendedor de “neumáticos” de uma grande companhia de veículos e estradas, “las carreteras”, e depois como membro da máquina governamental que cuidava da construção da represa na região de Oaxaca e da redistribuição dos povos da região para outras localidades) estava ligado diretamente ao período de modernização do país, sua obra caminhava em sentido inverso, mostrando as consequências do progresso na realidade dos povos rurais e focalizando as comunidades tradicionais ligadas à terra e ao trabalho manual. Basta, para exemplificar essa tensão inerente à sua criação literária, lembrar as palavras do narrador de “Luvina”:
 
“‘Porque en Luvina sólo viven los puros viejos y los que todavía no han nacido, como quien dice... Y mujeres sin fuerzas, casi trabadas de tan flacas. Los niños que han nacido allí se han ido... Apenas les clarea el alba y ya son hombres. Como quien dice, pegan el brindo del pecho de la madre al azadón y desaparecen de Luvina. Así es allí la cosa.” (Rulfo, 2012, p.118).
 
Garza também observa que essa modernização violenta impulsionada pelo dinheiro do capital comercial e do turismo, que começou a se acentuar em finais do século XIX, demanda a criação de uma identidade histórica ao México, ou seja a elaboração de um passado que se ligasse em linha reta com o futuro promissor que se anunciava. A história é vista, nesse sentido, como “matéria prima para ideologias nacionalistas” e “se não há nenhum passado satisfatório[,] é preciso inventá-lo” (cf. Hobsbawm, 2013, p.18):
 
“Al empleado del gobierno o de la iniciativa privada [a Rulfo]   le pagaban por viajar, pero del viaje se quedaba com algo que pertenecía sólo a sus ojos [las fotografias]. El pedazo mínimo de realidad en la que se concentra, con todo su poder crítico, lo que, pudiendo haber sido, no fue. La violencia que detuvo toda esa serie de posibilidades. El momento de la decisión. Lo suyo [de Rulfo] era la ruina, en efecto, la que congregaba la curiosidad y los bolsillos de los turistas atraídos por un pasado monumental y exótico que un régimen comprometido a toda costa con el futuro se empeñaba en producir. De ahí, sin duda, esos ambivalentes rectángulos de papel albuminado donde quedaron las huellas de la pobreza descarnada, el abandono espetacular, la permanencia de los rituales religiosos, la risa que austaba o asusta. De ahí esa câmara que, casi al ras del suelo, insiste en aproximar la línea del horizonte. Todo eso apareció también en los mundos de su escritura. Esa manera.” (Garza, 2016, p.76-77, grifo meu).
 
“Un pasado monumental e exótico” é uma expressão que define bem como era necessária a elaboração de uma visão nova do país, que desse conta das suas transformações e ao mesmo tempo que apagasse as “imperfeições” de um México atrasado e pobre.
               
Não obstante, Rulfo mais uma vez vai optar por fazer de sua criação artística (no caso específico, a fotografia) um espaço para fazer dialogar as tensões. Se a sua escrita literária foi um contraponto à “literatura de la tierra” que se vinha fazendo até então, acentuada pela Revolução 1910, onde a cor local, o exotismo e certo determinismo marcavam a representação do camponês, a sua fotografia também vai na contramão da representação vigente, na medida em que apresenta uma função dupla: ao mesmo tempo que está à serviço do governo para registrar o avanço e os “benefícios” prometidos aos povos de Oaxaca, flagra também seus modos de vida, sua relação com a comunidade e com o trabalho manual, seus costumes e festas, sua religiosidades, em suma, dá corpo e existência àquilo que é encarado como empecilho à modernização (Ver Garza, 2016, p107-108).
               
Como dito acima, esse é o argumento ensaístico do livro de Cristina Rivera Garza — “¿Es posible la producción de una obra y la producción de una vida sin que una esté supeditada a la otra?” (p.15). A autora se empenha em responder que é impossível uma separação entre a arte e a vida. Ainda que esse argumento seja discutível, sobretudo se pensarmos que muitas vezes a arte de um autor contradiz¹ a sua vida, sua ideologia, seu modo de pensar, ele é o fundamento do livro da autora mexicana, dado que ela rompe com a fixação dos gêneros discursivos, e aquilo que era biográfico passa a fazer parte da ficção e o que era ficcional torna-se parte integrante da vida, criando aquilo que ela denomina de “espacio liminal”.
 
Esse rompimento dos gêneros fica ainda mais acentuado na segunda metade de Había mucha neblina o no sé qué (partes IV e V). No capítulo quarto, Garza recupera dois personagens de Pedro Páramo — Dorotea (ou Doroteo) e Susana San Juan — para falar do desejo, do sexo e do corpo como local de disputa entre o feminino e o masculino. Nesse capítulo, contudo, o tom é outro, a linguagem teórica e expositiva vai aos poucos dando lugar ao ficcional. Aqui a matéria rulfiana serve menos como texto sobre o qual se realiza uma exegese crítica e mais como uma possibilidade para outro texto. Exemplifico com dois trechos, um deles mais ensaístico, no qual a autora pondera sobre como a matéria amorosa e o desejo são expressos em Pedro Páramo, e um segundo trecho no qual através de elementos do romance de Rulfo, Rivera Garza constrói a sua expressão:
 
“Una historia de amor imposible [a de Pedro Páramo e Susana San Juan] precisa de una enunciación imposible. Para seguir el anhelo amoroso de Pedro Páramo, que es absoluto, Rulfo ha precisado de estrategias narrativas que lleven la historia de un plano terrestre a otro en el más allá, donde los protagonistas continúan purgando sus penas.” (Garza, 2016, p.166)
 
Agora o trecho em que a autora retrabalha o que foi dito numa linguagem poética:
 
“Mi pornografia. Mi celo. Mi danza estelar.
[...]
Dicho de un cuerpo, penetrar significa introducirse en otro. Dicho del frío, penetrar quiere decir hacerse sentir con violencia e intensidad.
Aquí todo es deseo. Aquí todos es carnal.” (Garza, 2016, p.171).
 
É um excerto notável, pois a “assimilação” de Rulfo é tão intensa que Rivera Garza obtém quase a mesma condensação e o mesmo ritmo das frases do autor, uma frase que abusa das repetições e usa um vocabulário restrito a fim de obter um efeito quase encantatório. No trecho acima o efeito rítmico é obtido pela palavra ‘‘penetrar’’, que reforça a imagem da união carnal e do desejo
 
Por fim, os últimos capítulos do livro, “Luvinitas” e “Lo que podemos hacer unos por los otros” contam mais diretamente a viagem que Cristina Rivera Garza fez até a região de Luvina, nas altitudes mexicanas, e onde Rulfo situa seu mais emblemático conto. São as partes finais em que a voz da autora, o eu por ela enunciado, vai progressivamente se impondo até que a narrativa chega à primeira pessoa. Ao contrário do que pode parecer, o diálogo (o agon) com Rulfo não desaparece ao final, ao contrário, esses capítulos demandam do leitor um conhecimento profundo da prosa rulfiana, visto que Garza entremeia, de modo muito sutil agora, frases, referências a cenas e personagens, tanto de El llano en llamas quanto de Pedro Páramo.
 
O capítulo sexto é, a meu ver, o mais belo e bem-acabado de toda obra, pois narra, em pequenas cenas condensadas e líricas, a subida que faz a autora, junto de uma família mixe, a um monte sagrado de Tlahuitoltepec. Ao subir a montanha, que Rulfo havia subido mais de cinquenta anos antes, Garza sintetiza sua experiência de leitora e de escritora e encontra a sua voz — uma voz na qual ecoam outras, uma voz de muitos murmullos:
 
“Compartimos palabras y alimento, eso es lo que hacemos justo ahora. Justo en este instante. Qué muchedumbre tan ruidosa. Un poco después, mientras el intercambio continúa, compartimos la carcjada también. Es um domingo espetacular. Luminoso. Limpio. La niebla se aproxima desde lo lejos. ‘Es lo que podemos hacer los unos por los otros’, escribió Claudia Rankine alguna vez, cuando trataba de definir la soledad. En la montaña no hay soledad.
Esto es lo opuesto a la soledad.
Esto es lo que podemos hacer unos por los otros en una montaña. Esto es lo que hemos hecho.” (Garza, 2016, p.231)
 
***
 
Cabem, ainda, algumas considerações de caráter geral sobre o que expus até o momento.
 
Quando se pensa no entrelaçamento dos dois planos narrativos, que identifiquei como estruturantes do livro de Garza, coloca-se em evidência aquilo que a crítica denomina de intertexto; esse conceito, no entanto, não é privilégio ou invenção da narrativa dita pós-moderna ou, como prefiro chamar, seguindo Leyla Perrone-Moisés, da “modernidade tardia” (Perrone-Moisés, 2016, p.116). Há, sim, uma ênfase na presença de outros discursos e de outras vozes em Había mucha neblina o no sé qué, mas a sua função é de “refletir sobre o mundo do passado [o passado Mexicano] e de confrontá-lo com o [...] presente.” Esse confronto entre os tempos é um dos maiores acertos de Rivera Garza no livro, pois a autora não vê o presente, tampouco Rulfo o via, como uma superação do passado. E ao notar que a literatura, e as artes de uma maneira geral, não conduzem à “salvação”, como certos idealistas fazem crer, mas abrem um espaço para as contradições, possibilitado também pelo ato soberano da leitura.
 
A leitora Rivera Garza apontou as tensões existentes na obra de Juan Rulfo, e mesmo que não aceitemos algumas de suas considerações, ou discordemos de seus pressupostos, é inquestionável a sensibilidade que liga leitora e obra; em outras palavras, para retomar Paul Valéry, que abriu estas minhas considerações, todo leitor transforma a potência da literatura em ato.

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Notas
 
* Esse breve ensaio, agora com algumas poucas modificações, foi apresentado como trabalho de aproveitamento à disciplina Literaturas Hispânicas: Processos Históricos e Perspectivas Teórico-críticas, ministrada pela professora Laura Hosiasson no primeiro semestre de 2021, a quem agradeço muitíssimo pela leitura atenta do texto original e sugestões bibliográficas, pela acolhida calorosa de sempre e pelas aulas inspiradoras.
 
1 Otto Maria Carpeaux, num achado crítico dos mais notáveis, chama essa disposição complexa e contraditória que se apresenta no interior das obras dos grandes autores de “pseudomorfose”, ou seja, quando mesmo estando marcados por uma ideologia, seja ela conservadora ou progressista, um modo de ver o mundo, alguma crença, esses valores são rebatidos dentro da própria obra por concepções contrárias; arma-se, portanto, uma relação dialética em que obra e vida estão em confronto o tempo todo. Nesse sentido, não é apenas uma questão de notar a relação entre obra e vida, como quer Rivera Garza, mas em que sentido essa tensão constitui a obra de Rulfo. Para uma explanação mais detida sobre o conceito de Carpeaux, ver o ensaio “Perspectivas da interpretação: Carpeaux e sua fortuna crítica”, de Guilherme Mazzafera. (Cf. VILHENA, 2020, p.350).
 
Bibliografia
 
CANCLINI, Néstor García. “Entrada”. In. Culturas híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2011.
GARZA, Cristina Rivera. Había micha neblina o no sé qué. México: Random House, 2016.
GUTIÉRREZ, Rafael. “Formas híbridas na literatura latino-americana contemporânea”. In. Revista Landa, vol.3, nº.2, 2005.
VILHENA, Guilherme Mazzafera S. “Perspectivas da interpretação: Carpeaux e sua fortuna crítica”. In. Revista Teresa, nº.24, 2020, pp.349-375. Disponível aqui.
HOBSBAWM, Eric. “Dentro e fora da história”. In. Sobre a história. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
OLMOS, Ana Cecilia. “Transgredir o gênero: políticas da escritura na literatura hispano-americana atual”. In. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº.38, 2011, pp.11-21.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Metaficção e intertextualidade”. In. Mutações da literatura do século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
RULFO, Juan. El Llano en llamas. 20 ed. Madrid: Catedra, 2012.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. Nueva York: Vintage Español, 2019.
VALÉRY, Paul. Lições de Poética. Trad. Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
 


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