Indevassável, mas perquirível: Melhores contos, de Guimarães Rosa

Por Guilherme Mazzafera


João Guimarães Rosa à máquina de escrever.



Que Guimarães Rosa é um contista nato não há como contestar — afinal, o romance, por mais brilhante que seja, é antes desvio irrepetível de percurso do que a norma compositiva em sua obra. No terreno mais ambíguo da novela, sua adoção plena deu-se unicamente em Corpo de Baile, contraface de Grande Sertão: Veredas e que forma com este o ápice da diástole rosiana soberbamente evidenciada no ano de 1956. Circundando estas obras magnas, temos dezenas de narrativas cuja variedade, apuro e escopo formal já seriam mais que suficientes para garantir ao escritor mineiro seu merecido lugar no panteão literário nacional. E é justamente esta contística múltipla que chega às mãos dos leitores brasileiros a partir da esmerada seleção de Walnice Nogueira Galvão.

Melhores contos (Global, 2020) reúne 16 narrativas rosianas extraídas de cinco livros seus:  três de Sagarana (1946), sete de Primeiras estórias (1962), três de Tutameia – terceiras estórias (1967), uma de Estas estórias (1969) e duas de Ave, palavra (1970). O peso da seleção recai evidentemente sobre os dois primeiros, que representam aproximadamente dois terços da coletânea e contemplam um terço de cada uma das obras originais. A proposta de divisão é antes temática que cronológica ou formal, abarcando quatro eixos: Metalinguagem (“São Marcos”, “Desenredo” e “Famigerado”); O Outro (“Orientação”, “Faraó e a água do rio”, “A menina de lá”, “As garças” e “Meu tio o Iauaretê”); Humor (“A volta do marido pródigo”, “Os irmãos Dagobé”, “O porco e seu espírito”, “Darandina” e “— Tarantão, meu patrão”); e O narrador (“A hora e vez de Augusto Matraga”, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, e “A terceira margem do rio”). Para Galvão, que explicita seu recorte na apresentação do volume, estas seriam as linhas de força da obra rosiana, interligadas pela constância de um mesmo espaço — o Sertão — e pela busca da oralidade.

Como nada no universo rosiano é estável, com as coisas e os viventes em proteico movimento, essa divisão sabe-se estanque e busca unicamente postular uma “questão de ênfase”. Afinal, a metalinguagem, veio inconteste do “poliglota precoce” apaixonado por línguas, a reflexão apaixonada sobre a língua e seus descaminhos — que sempre interessam mais do que os caminhos ordeiros do bom-mocismo gramatical ­— é parte constitutiva da construção de uma poética que apregoa gritos de morte ao lugar-comum e a uma literatura subserviente ao tema e à sua própria inércia expressiva. O valor selvagem, vivificador do “ileso gume do vocábulo”, vincadamente escrito em gomos de bambu em um duelo poético entre o narrador de “São Marcos” e seu rival, Quem-será, assim como a entoação desesperada da reza brava que alivia o narrador de sua cegueira momentânea, são preciosos indícios da vocação afirmativa da linguagem presente em um autor para o qual a escrita não deixava de ser uma espécie de oração.




Se “São Marcos” — como atesta a correspondência do autor com sua tradutora norte-americana — figura como a súmula poética do livro de estreia, “Desenredo” parece desempenhar papel análogo no livro de despedida, Tutameia. Na brevidade de suas três páginas, temos uma reencenação do mito de Odisseu e Penélope: diante da infidelidade desta, Jó Joaquim, o protagonista, recompõe sua amada sucessivas vezes pela linguagem, solfejando alternativas em busca de reconstruir um passado maculado, culminando em um “plástico e contraditório rascunho”. Sua Penélope, cujo nome é perpétuo signo deslizante, só pode ser recuperada pela contínua cerzidura não de uma mortalha, mas da linguagem, tecido de enganos, trapaças e muita astúcia.

Abarcando um escopo de pouco mais de 20 anos (ou 30, se considerarmos a gestação completa de Sagarana), o que vemos é um escritor que testa os limites de uma forma com grande variedade de respiros. Dos microcontos tutameianos aos alongados vértices narrativos de Sagarana e Estas estórias, o banquete aqui servido tem muitos sabores. Vale apreciar textos menos conhecidos como “As garças” e “O porco e seu espírito”; relembrar as patranhas de Lalino Salãthiel e as ingentes desventuras do quixótico Tarantão; e, é claro, a via crucis matraguiana, a catarse coletiva posta em marcha por um pai, sua mãe e sua filha, e os redemunhos lírico-trágicos de um rio trimargeado. Se o destaque em termos de refinamento estórico cabe à parte derradeira, focada nos narradores que, como lembra Galvão, muitas vezes se perdem no plural, o coração pulsante do volume é aquela que talvez seja a maior narrativa curta do século XX brasileiro, o dismenso “Meu tio o Iauaretê”, súmula investigativa de um outro — indevassável, mas perquirível — e candente denúncia de um contínuo e infausto processo dito civilizatório. Este interesse detetivesco pela alteridade, vale sempre lembrar, é parte constitutiva do ethos narrativo de Guimarães Rosa.

Um belíssimo aperitivo para leitores de primeira viagem, Melhores contos por certo poderia ter se beneficiado de um escopo um pouco menos “purista” com a inclusão de alguns textos de natureza híbrida (conto-retrato, conto-crônica, entrevista lírica etc.) que abundam nos volumes póstumos de Rosa, nos quais, para além de uma dissolução da própria forma, vemos a emergência mais ostensiva do ambiente citadino (brasileiro e internacional), redimensionando, criticamente, a mais que batida alcunha de Rosa como aedo (exclusivo?) do Sertão. Feita a leitura desta seleta pessoal organizada por uma leitora argutíssima, caso alguém deseje pervagar por tal périplo impuro, eu não hesitaria em sugerir a tétrade “Com o vaqueiro Mariano”, “O mau humor de Wotan”, “Pé-duro, chapéu-de-couro” e “Páramo” (o primeiro e o último de Estas estórias; os demais, de Ave, palavra), pequenas joias imperfeitas que muito alargam a compreensão de uma obra cuja feracidade ainda clama por maior estudo e melhor fruição.

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Melhores contos: João Guimarães Rosa
Walnice Nogueira Galvão (org.)
Global Editora (2020)
238 p.

Comentários

Luís Fagner disse…
Excelente resenha para um bom livro com edição feia feia. Guimarães Rosa merecia um tratamento editorial melhor.

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