O campus roman e o caminho de Piglia

Por Luis Guillermo Ibarra

Ricardo Piglia. Foto: García Adrasti


 
A esta altura, é difícil não reconhecer a existência de um campus roman como um subgênero literário. A presença de romances em que o tema e os cenários universitários se inserem no conteúdo da obra, fazem parte de uma tradição que já percorre várias gerações de narradores. A tentação de entrar na sala de aula, nos pensamentos sombrios dos pesquisadores, nas ambições e nas investidas acadêmicas, deram origem a obras magníficas. Como exemplo, poderíamos citar Pnin de Vladimir Nabokov, a saga do mestre Wilt de Tom Sharpe, A Literary Murder da escritora judia Batya Gur, Desonra de J. M. Coetzee, A marca humana de Philip Roth, Lucky Jim de David Lodge, ou A velocidade da luz de Javier Cercas, El tren de cristal José María Pérez Collados ou El temblor del héroe de Álvaro Pombo.
 
Essa lista é extensa e, sobretudo, abre um panorama de maior complexidade naqueles romances de escritores que tiveram experiência como professores em culturas diferentes da sua. Recordemos Javier Marías radicado em Oxford. Seu romance Todas as almas, publicado em 1989, recolhe algumas de suas experiências acadêmicas neste lugar. O personagem principal não deixa de se surpreender com “aquela cidade imóvel” onde foi parar, onde “a única coisa que realmente importa… é o dinheiro, seguido a certa distância pela informação, que sempre pode ser um meio para obter dinheiro”. Oxford é o centro do histrionismo e do artifício, da toga e do barrete essenciais para se exibir ante a classe turística.
 
Os narradores latino-americanos não ficaram longe dessa tentação no que diz respeito ao campus norte-americano. Essa tentativa de conquista das terras do norte resultou em romances em que as peças desse quebra-cabeça educacional das universidades são relidas. E é que neles, aqueles sonhados espaços de ensino superior do American way of life, propícios ao estudo harmonioso, ao crescimento da ciência e da cultura, também estão repletos das paixões mais baixas, do sufocamento e do fanatismo que muitas vezes termina em crime. Esse mosaico multicultural de que tanto se vangloria o país imperial, longe de se traduzir em diálogo e reconhecimento, muitas vezes se expande em um labirinto pantanoso e em um ostracismo que expõe a hipocrisia de seu sistema educacional.
 
Um doutor salvadorenho, professor de uma das muitas universidades norte-americanas, confessou-me em certa ocasião: “Em meu país eu nunca teria feito minhas pesquisas sobre etnias, teria morrido de fome”. Assim, esse salto para as latitudes acadêmicas do primeiro mundo tem como condição de necessidade, uma busca de prestígio, uma fuga dos obscuros turbilhões políticos da América Latina, ou seguindo uma tradição acadêmica ou de grupo. Talvez esse motivo tenha levado o escritor chileno José Donoso a intitular Donde van a morir los elefantes o seu já emblemático romance sobre o tema.
 
De fato, o próprio Donoso viveu a experiência educacional nos Estados Unidos; primeiro em seus anos de formação, depois como professor na Universidade de Princeton. Dessa última aventura guardará uma lembrança muito desagradável. Em seu romance, publicado pela primeira vez em 1995, o protagonista Gustavo Zuleta, professor chileno especializado na obra do escritor equatoriano Mauricio Chiriboga, é convidado a trabalhar na Universidade de San José; um pequeno campus encravado no médio oeste, que mantém uma estreita relação com o Pentágono graças ao Dr. Jeremy Butter, um notável matemático. Zuleta, personagem de pouco reconhecimento em seu país e de um currículo pobre, é presenteado com a investidura de um grande pesquisador. Assim, ela abre caminho em um mundo que se apropria de novos temas, desde os estudos chicanos e o feminismo até todos os tipos de minúcias relacionadas à literatura latino-americana.
 
O professor Zuleta vive rodeado de personagens com biografias à beira do desespero e à beira da loucura. Enquanto Zuleta percorre esta sórdida e fria miragem do campus, as passagens da memória chilena não deixam de estar sempre presentes. As questões sobre o milagre econômico de seu país, um milagre refletido nas carências e construído a partir de um discurso ficcional. Donoso aproveita os novos implementos da cultura e da tecnologia que se tornarão realidades sufocantes do século XXI: o fanatismo, a realidade virtual e, parafraseando Nicolás Casullo, “a aceleração da abundância para um futuro definitivamente desumanizado”.



 
Quase duas décadas depois da publicação de Donde van a morir los elefantes, o escritor argentino Ricardo Piglia também buscou um acerto de contas com a questão das universidades norte-americanas. Como professor emérito da Universidade de Princeton, pode-se dizer que ele conhece os meandros desses cenários. Seu romance O caminho de Ida, publicado em 2013, é de certa forma o caminho de Piglia.
 
Seu já reconhecido personagem Emilio Renzi é contratado pela Taylor University em Neva Jersey para ministrar um curso sobre os anos do escritor W. H. Hudson na Argentina. Renzi vive um caso com a atraente professora Ida Brown, que morre de forma estranha.
 
Nessa obra, Piglia reforça sua ideia de que a aventura e o assassinato ou a investigação são os dois grandes temas do campus roman. Por um lado, manifesta com a estranha morte de Ida como algo que despedaça as entranhas do sistema e mobiliza novos contextos e visões do país do norte; por outro lado, deixa-se notar com a presença de Parker, o investigador particular a quem Renzi recorre para resolver o caso da morte de Ida. A isso podemos acrescentar o cenário de uma série de ataques em várias universidades; a inteligência de Thomas Munk, um brilhante professor de matemática da Universidade de Berkeley que escreve um “Manifesto sobre o capitalismo tecnológico” e uma nova releitura de O agente secreto de Joseph Conrad.
 
De muitas maneiras, Piglia continua a trilhar o caminho iniciado desde a publicação de Respiração artificial em 1980. Um caminho em que dialoga, à maneira de Michel de Certeau, com os mortos, no caso dele com os escritores mortos; onde os espaços culturais são entidades abertas a conflitos e resistências constantes.
 
Piglia apresenta as novas esferas catastróficas de um capitalismo sobrevivente e sua relação com as universidades. Aqui, “As universidades substituíram os guetos como lugares de violência psíquica.”; lugares onde “por baixo correm altas ondas de cólera subterrânea: a terrível violência dos homens educados”. Por isso Renzi ousa profetizar: “Daqui a pouco, só os homens com experiência na prisão e na guerra é que serão incumbidos de administrar as universidades”.
 
A partir dessa visão do campus universitário, Piglia abre uma cartografia dos Estados Unidos dividida em dois grandes extremos. Apresenta os cenários dominados por seus outsiders e um capitalismo que não se detém, que marca a rigidez de seus hábitos e que desencadeia seus assassinos em série.
Piglia coloca à mão as referências de Liev Tolstói, Conrad e alguns signos ocultos de Walter Benjamin. Sua paixão por esses mundos literários construídos por duas tradições e duas línguas se entrelaça com o dinamismo noticioso que envolve o impulso categórico da violência. Aqui pode ler-se uma geografia que considera que “limpar os rastros, criar pistas falsas, mudar, ser outros. Nisso consiste a civilização; a possibilidade de fingir e enganar nos permitiu construir a cultura”.
 
Desse mundo que José Donoso nos representou em suas páginas, chegamos ao mundo pulverizado de Ricardo Piglia. Dessa abundância de futuro desumanizado chegamos à confirmação de Bayley: “É infinita esta riqueza abandonada”.¹
 
Notas da tradução:
1 Todas as citações do romance de Ricardo Piglia, O caminho de Ida são da tradução de Sérgio Molina (São Paulo: Companhia das Letras, 2014). 


* Este texto é a tradução livre para “El campus roman y el camino de Piglia”, publicado aqui, em Confabulario.

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