Sete poemas de Ryokan

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)*



 
 
I.
(a partir da tradução de Donald Keen)
 
num velho templo
nas profundezas de Takano
na província de Ki1
passei a noite escutando
as gotas da chuva caindo dos cedros
 
 
II.
(a partir da tradução de Steven Carter)
 
a nossa vida neste mundo:
a que poderei compará-la?
é como um eco
ressoando através das montanhas
diluindo-se no vazio do céu
 
 
III.
(a partir da tradução de Donald Keen)
 
não deverás supor
que nunca me misturo
com o mundo da humanidade
— simplesmente prefiro, sozinho
desfrutar da minha própria companhia
 
 
IV.
(a partir da tradução de Burton Watson)
 
tenho um cajado de caminhante
nem sei por quantas gerações foi sendo passado
a casca estalou e há muito que caiu
nada sobra, apenas um miolo robusto
em anos anteriores, testou a profundidade de ribeiros
e quantas vezes retiniu sobre íngremes trilhas rochosas!
agora, encosta-se à parede do lado poente
negligenciado, enquanto os anos passam
 
 
V.
(a partir da tradução de Nobuyuki Yuasa)
 
tenho casa nos mais profundos recantos da floresta
a cada ano que passa, as heras crescem mais que no ano anterior
vivo sem pesos, sem a perturbação dos assuntos mundanos
as canções dos madeireiros raramente chegam até aqui
enquanto o sol brilha, remendo as minhas roupas rasgadas
virado para a lua, leio em voz alta, só para mim, os textos sagrados
deixem que dê aos crentes da minha filosofia um conselho:
não necessitas de muitas coisas para desfrutar da imensidão da vida
 
 
VI.
(a partir da tradução de Nobuyuki Yuasa)
 
desde que comecei a trilhar o íngreme caminho da disciplina
vivo detrás duma cancela e centenas de colinas
antigas árvores, negras, acorrentadas por heras, erguem-se sobre mim
as rochas parecem frias nas encostas meio cobertas pelas nuvens
as traves da minha casa foram arruinadas pelas chuvas nocturnas
o meu manto feito em farrapos pela neblina matinal
nenhuma notícia minha os meus familiares e o mundo se interessaram em receber
ano após ano, desde que aqui vivo
 
 
VII.
(a partir da tradução de Burton Watson)
 
toda a minha vida fui demasiado preguiçoso para tentar o que fosse
deixo tudo à verdade do céu
na minha bolsa, três medidas de arroz
junto ao fogão, um molho de pauzinhos
— para quê perguntar quem é iluminado e quem não é?
que saberia eu sobre essas poeiras, o ganho e a fama?
noites chuvosas, aqui na minha cabana de palha
esticando as minhas pernas como bem entender
 
_____
 
Eizo Yamamoto nasceu no ano de 1758 na vila japonesa de Izumozaki, um lugar frio e remoto, onde o seu pai ocupava um cargo de liderança administrativa, uma espécie de “chefe de aldeia”. Não existem muitos detalhes sobre a infância de Eizo, mas sabe-se que teve uma educação prendada, que o tornou versado nos grandes clássicos japoneses e chineses. O seu pai, diga-se, também exercitava a prática do haiku.  
 
Embora tímido e estudioso, terá sido o Don Juan da aldeia quando a idade lhe despertou tais apetites. A confissão feita num certo poema não permite muitas dúvidas: terminava, frequentemente, os idos dias da juventude num “pavilhão do prazer”. Porém, pelos vinte anos, sentiu um profundo apelo que o levou a uma decisão drástica: renunciar ao mundo dos homens e receber instrução num templo budista das redondezas, que seguia a via Soto2. Empenhado na decisão, rejeita a herança familiar e entrega-se totalmente aos preceitos da sua nova vida.
 
A dada altura, um mestre Zen, à época muito conceituado, visitou o templo onde Eizo se internara. Numa comunhão imediata, ocorrida para além de qualquer palavra, ambos ficaram muito impressionados um com o outro. Então, Eizo pediu permissão para ser seu discípulo. Uma vez concedida, os dois encaminharam-se para o mosteiro donde o mestre viera, em Tamashima3. Será neste lugar que, segundo se conta, Eizo atingirá o estado designado por satori (equivalente ao Nirvana, no Hinduísmo), ou iluminação, isto é, a real e suprema compreensão da verdadeira identidade do Homem, o despertar para a verdade de todas as coisas.
 
No ano seguinte o seu mestre morre, e Eizo decide partir numa longa peregrinação. Teria já obtido licença para dirigir o seu próprio templo, mas preferiu encetar uma deambulação pelo país inteiro. Seria quase uma década de errância. Embora pareça que o grande instigador da sua partida fora o falecimento do mestre Kokusen, vários estudiosos apontam um desacordo entre Eizo e o abade daquele mosteiro, Gento, que na altura empenhava-se em reformular os preceitos do Soto, desenvolvendo-o às suas origens.
 
A partir deste momento, quase até à sua morte, a “vida monástica” de Ryokan4 resume-se a uma existência de isolamento e comunhão com a natureza, tornando-o, com o tempo, num célebre ermita. Continuará o estudo dos preceitos budistas, a prática da arte da caligrafia (tornando-se um dos seus maiores mestres) e, claro, da poesia (para muitos, o mais amado poeta do Zen que até hoje viveu). Granjeou notoriedade em vida, os seus poemas eram apreciados pelas gentes mais humildes e procurados por escolásticos, mas rejeitou sempre qualquer convite para dirigir templos ou sequer ser aceite no meio artístico como “poeta”. Optou por uma existência simples e tranquila, o que se reflectiu na sua poesia, pautada por apontamentos naturalistas, reflexões e um profundo humanismo, exalando beleza, compaixão e um enorme respeito por toda e qualquer forma de vida.
 
É natural que esta sua arte esteja embebida de preceitos budistas, mas consegue atingir uma universalidade indisputável, tornando-a válida para além de todo o estreito caminho que qualquer religião apresente — ou tente impor. É uma poesia leve e esclarecedora, mas também se prende nas miudezas do quotidiano, sendo cintilante, por vezes, de tão banal. O discurso livre é polvilhado com humor, de tempos a tempos, sempre focado no momento presente, não deixando muito espaço ao pensamento ou a suposições filosóficas. É leve, como dissemos, mas directa, intensamente contemplativa, capaz de tocar o espírito humano bem para lá do alcance da mente tirana, levando-o a despertar dum torpor milenar — ou, pelo menos, a agitar a sua letargia.
 
Apesar do isolamento que escolheu, nunca se fechou no mesmo. São várias as histórias que até nós chegaram atestando o carácter generoso e bem-humorado do poeta-monge-eremita. Por vezes, esquecia-se de esmolar o seu sustento diário (sublinhe-se que era prática comum na época, algo que até o próprio Buda fizera) de tão embrenhado que estava em brincadeiras com as crianças das aldeias locais. Noutras, disfarçava-se de mulher para frequentar festivais populares, eventos que os monges evitavam. Porém, também sabia ser crítico na hora certa, especialmente de regras e costumes religiosos, embora, em verdade, não se levasse muito a sério, nem a ele nem ao mundo em si.
 
Embora outros o tenham seguido, Ryokan firma-se na história como um dos últimos poetas-ermitas de maior destaque, essa nobre estripe de vagabundos gentis que da leveza e fluidez de carácter e princípios fazia a sua força maior, e que proliferou em terras orientais durante séculos.
 
Por volta de 1826, Ryokan adoece e fica impossibilitado de continuar no seu ermitério. Muda-se para a casa dum dos seus maiores patronos e aí permanece ao cuidado duma jovem freira (não nos termos católicos, entenda-se), de nome Teishin. Já no fim da vida, irá usufruir duma inesperada e forte amizade com a sua cuidadora (há quem diga paixão), com quem troca diversos haikus em estilo de correspondência. Foi um relacionamento feliz que, segundo dizem, abrilhantou os últimos anos de vida do poeta. Será esta jovem quem reunirá a poesia de Ryokan e a publicará, a título póstumo, elegendo ao conjunto talvez o nome mais belo que conseguiu encontrar: “Gotas de Orvalho Numa Folha de Lótus”.
 
Pelo que se conta, nos primeiros dias do ano 1831 Ryokan sucumbe, enfim, à sua doença. De acordo com o relato que a amiga freira nos deixou, o poeta sentara-se em pose meditativa e assim falecera, como quem vai, pacificamente, entrar no sono. Antes, porém, deixara nas mãos da amiga aquele que fora o último poema escrito em vida, um haiku — que teremos o maior gosto em de seguida partilhar:
 
agora revela o seu lado oculto
e agora o outro
— assim tomba, uma folha d’outono
 
É importante, a nosso ver, não encerrar esta publicação sem frisar aquela que provavelmente será a história mais célebre envolvendo o poeta-eremita, e que, atestando o seu carácter aberto e generoso, terá estado na origem dum celebrado poema que compôs.
 
Certa noite, Ryokan, ao regressar à sua cabana no sopé duma montanha, surpreendeu um ladrão que, por sua vez, muito surpreendido estava por ter entrado numa habitação que, embora humilde, nada possuía digno de roubo. Compadecendo-se pelo pobre larápio, que teria, decerto, feito um longo caminho para, afinal, ver os seus planos de furto totalmente frustrados, Ryokan tira todas as suas roupas e oferece-as ao ladrão. Este, absolutamente estonteado, pega na inusitada oferenda e abandona o local o mais rápido que pode. O poeta sentou-se, depois, totalmente nu, a observar a lua. E então terá proferido as famigeradas palavras: “Pobre homem… Quem me dera que lhe pudesse oferecer esta bonita lua”.
Agora que relatámos o episódio, deixamos o haiku nele inspirado:
 
o ladrão deixou-a para trás:
a lua
na minha janela
 
Notas
 
1 Antiga província japonesa, localizada no sul do país. É hoje a prefeitura de Wakayama.
 
2 Escola japonesa derivada do Budismo Zen. A principal diferença para as demais encontra-se no modo de meditação. No fundo, simplifica a prática, ensinando a via de “apenas sentar-se”, isto é, não foca a meditação num objecto em específico, permitindo o livre fluir do fluxo de pensamentos e emoções, permanecendo o meditador como o seu imparcial observador. A estes monges é permitido o casamento. Dentro do Zen, é hoje a escola com maior expressão no mundo ocidental.
 
3 A actual prefeitura de Okayama, outrora um lugar de intensa actividade cultural e intelectual.
 
4 Curiosamente, é o nome dado às tradicionais hospedarias japonesas.
 
 
* As versões são a partir dos textos antologiados em Zen Poems (Everyman’s Library, 1999).
 

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