Resistir, reconstruir e nomear, o ethos de No Other Land

Por Alonso Díaz de La Vega



O documentário é o gênero palestino por necessidade. Por razões óbvias, na Cisjordânia e em Gaza, é praticamente impossível estabelecer uma indústria cinematográfica que abranja musicais e melodramas intimistas. Conhecemos a ficção, é claro, da diretora feminista libanesa Heiny Srour ou da estrela contemporânea Elia Suleiman — um viajante sem rumo fixo, como sugere seu último filme, O paraíso deve ser aqui (2019) —, mas as condições pendem a balança para o outro lado. Além disso, há uma coincidência com as necessidades políticas dos cineastas: o amadorismo inerente a certos documentários sempre sugere um testemunho; o gênero aproveita o que lhe aparece e, diferentemente da ficção, não cria imagens, mas as captura. Há, é claro, casos e casos, mas na Palestina não há outra opção: o cinema é quase sempre feito para deter o avanço da ocupação israelense.
 
Em 2011, Cinco câmeras quebradas registrou a vida e a morte de cinco dispositivos que haviam capturado durante anos os abusos do exército israelense. A câmera e a imagem são entendidas naquele filme como armas de resistência contra um inimigo que porta rifles e agressões e os emprega sem muita ou nenhuma consideração. Os telefones inteligentes, as redes sociais, as câmeras adquirem em um meio tão adverso, tão carente de atenção, um caráter completamente diferente do que atribuímos em países mais ou menos pacificados, onde não significam muito mais que mercadoria e entretenimento. Uma imagem de No Other Land (2024) confirma isso: o ativista palestino Basel Adra está ao lado de um tanque israelense que lhe aponta a câmera, como se fosse capaz de destruí-lo com ela. Os cínicos dirão que de nada adianta, que melhor seria apontar um lança-foguetes; outros talvez aconselhassem que o melhor fosse se render, mas o filme tem como um dos seus temas principais o objetivo fundamental da câmera e da imagem: demonstrar a existência das coisas.
 
No Other Land narra a desapropriação sofrida pelo povo na região de Masafer Yatta, na Cisjordânia. Durante décadas, o governo israelense, o exército e os colonos buscaram se apropriar desses territórios — assim como tantos outros —, mas o povo resiste. A forma mais elementar e documentada de reconstrução no filme é a reconstrução de tudo o que os israelenses demolem: se durante o dia eles chegam com tratores para demolir casas, galinheiros e até escolas, à noite as pessoas saem para reconstruir os prédios. É por isso que a arquitetura local consiste em enormes caixas cinzas: a estética — ou melhor, sua ausência — é resultado da luta, mas essa feiura também é simbólica de um desejo existencial. A voz de Basel, codiretor do filme com Hamdan Ballal, Rachel Szor e seu colega de elenco, Yuval Abraham, narra no início que as aldeias da região estão catalogadas em mapas que datam do século XIX, embora os israelenses neguem e afirmem que foram os palestinos que invadiram seu sacrossanto campo de treinamento.
 
Insisto: se o cinema serve para demonstrar a realidade de objetos e lugares, de fenômenos, apontar uma câmera para um tanque demonstra a natureza tangível da invasão, do abuso de força, para que o mundo possa julgá-las. Em outra cena, uma menina começa a listar tudo: “Temos uma montanha, ela existe; temos grama, ela existe; temos um galinheiro, ele existe; temos uma casa, ela existe!”. Isso não é apenas a brincadeira de um inocente, mas uma expressão do que eu ousaria chamar de resistência epistêmica: nomear as coisas, registrá-las e compartilhar sua imagem mesmo quando foram arrasadas ou negadas, demonstra sua realidade e se torna uma possibilidade de impedir que os opressores as apaguem. O controle de informações e fatos faz parte das táticas israelenses para tomar o controle de Masafer Yatta, e vemos isso em alguns trechos do filme, nos quais Yuval, um ativista israelense pelos direitos palestinos, é silenciado por seus compatriotas, que mantêm a falsa narrativa de que Masafer Yatta sempre foi seu território. Diante das declarações dos colonos, restam apenas os fatos fornecidos pela câmera.
 
Entre as diversas formas de filmagem que cruzam a tela (vídeos de redes sociais, imagens de notícias, filmagens dos diretores), uma demonstra particularmente o poder das imagens: um vídeo do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, visitando a cidade de Basileia, demonstra como, primeiro, as imagens o atraíram e, depois, como as fotografias e os vídeos de sua presença conseguiram deter as operações de desapropriação israelenses na região. “Esta é uma história de poder”, diz Basel, convencido de que o ativismo de seu pai e o seu podem salvar seu povo.
 
Apesar destas ideias sobre o visível, No Other Land não é um filme filosófico, como o ensaio de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville sobre a resistência palestina, Ici et ailleurs (1976), que refletia diretamente sobre o papel do cineasta-testemunha, sobre o conforto de assistir a um filme sobre algo que não nos afeta e sobre as limitações do cinema em salvar vidas. No Other Land é um cinema ativista, jornalístico, cujas ideias estão implícitas nas imagens e na sucessão delas, que capturam o exército israelense desapropriando e fuzilando os habitantes de Masafer Yatta. As figuras cinzentas e autoritárias descrevem, sem manipulação ou narração, o que significa viver com uma nação fascistóide determinada a reconquistar o que nunca foi seu. Há também crianças chorando e uma mãe que reza para que seu filho, paralisado por uma bala israelense, deixe seu corpo e, com ele, a dor.
 
A vida, no entanto, é mais extensa que o sofrimento, e No Other Land permite uma variedade de tons ao observar outra arma à disposição dos civis palestinos: a leveza. Na manhã seguinte a quando uma patrulha israelense é enviada para capturar Basel, sua família escapa: normalmente é um preguiçoso mas nesta ocasião se levantou em segundos. E com calma vemos os israelenses destruindo as casas dos palestinos mesmo sabendo que à noite voltarão a levantá-las. Mas, vivem em cavernas, sem muito sofrimento. As rotinas de uma avó e sua neta são mantidas em meio ao despejo; assim como as aulas e o recreio, porque é preciso viver em resposta àqueles que buscam negar esse direito. As armas de civis palestinos são intangíveis: são carregadas dentro de casa, não matam.
 
No Other Land documenta não apenas o que é suportado, o que cai, mas também o que brota dos escombros. Basel e Yuval têm uma amizade desequilibrada: o primeiro, palestino, não pode se preocupar muito em constituir família; o israelense também não, trabalhando como jornalista em uma zona de conflito, mas Yuval poderia parar a qualquer momento se quisesse. Seu sorriso desaparece em um segundo quando, após dizer a Basel que vai passar alguns dias visitando sua mãe, seu amigo responde que não pode sair da Cisjordânia. Ao longo do filme, vemos como a consciência de Yuval cresce e ele parece ansioso para fazer uma mudança. Basel se irrita em uma conversa tensa porque considera a pressa um luxo. Paciência, aconselha. Yuval e Basel também são separados por diferenças de classe, e isso fica evidente quando trabalham nas reconstruções noturnas: Yuval não tem experiência nem força para o trabalho físico. Seu amigo, por outro lado, pagou a faculdade trabalhando como pedreiro. Embora haja certa desesperança embutida nessas diferenças que impede os amigos de se entenderem plenamente, a persistência de Yuval em conquistar o apreço da comunidade (vários insistem que podem ser seus familiares e amigos que os expulsarão, mas ele não se aborrece) e a compreensão de Basel sugerem possibilidade, ao menos, de convivência. Ambos querem o mesmo e, se triunfam ou fracassam, serão juntos.
 
 No Other Land não é sentimental; seu apego aos fatos faz o filme emotivo em certas passagens, mas não busca a esperança ou a inspiração. Como imagem cinematográfica que é e pretende ser, busca apenas mostrar o que seus quatro criadores viram: um catálogo de crueldade e também de coragem cotidiana; de dias de brutalidade e paciência que transformam esse evento distante em um fato que se desenrola diante de nós. Estamos aqui, não lá, para parafrasear Godard e Miéville; também Yuval, que, embora presente, não está inteiramente na Cisjordânia. O cinema pode não conseguir fechar as distâncias com gostaria, mas reproduz um olhar e nos coloca durante cada cena na perspectiva daqueles que sofrem. 

* Este texto é a tradução livre de “Resistir, reconstruir y nombrar, el ethos de No Other Land”, publicado aqui, em Gatopardo.

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