Já consagrado e praticamente uma
celebridade, Jeferson Tenório se viu na difícil missão de entregar o “segundo
livro” — aspas pelo medo comum de quem faz estreia arrebatadora mas também pelo
fato de
O avesso da pele não ser o seu primeiro livro —carregando uma
expectativa imensa nas costas, uma vez que é portador de um Jabuti e de vendas consideráveis
de seus outros romances. E o que se lê é um resultado pertinente, atual e ao
mesmo tempo anêmico.
Esse é um incômodo pessoal, mas
também não é: as narrações em primeira pessoa em formato de relato são
limitadoras. Tenório faz um exercício narrativo muito bom em
O avesso da pele,
com o uso da segunda pessoa, mas entrega um descompasso grande em
Estela sem
Deus, com uma narrativa que começa em lugar nenhum para se encerrar em
nenhum lugar. E o mesmo ocorre com
De onde eles vêm — mas nem tanto:
Joaquim é introduzido na narrativa quando ingressa na universidade pelo sistema
de cotas e já se defronta com a primeira catraca: provar que é preto.
Este é um dos únicos pontos
interessantes do romance, e muito se perde na excessiva demarcação de raça por
todos os personagens. Quão mais interessante e sutil seria deixar para o leitor
deduzir o tom de pele e a classe social de determinados personagens apenas pela
forma como eles agem e pelo que possuem, e não tanto pela voz narrativa nos
dizendo “de pele clara e cabelos loiros”, “um homem negro retinto”, entre
outros usos questionáveis. Não há problema algum com essas marcações, o
problema é mesmo a atenção que elas ganham ao serem tão repetidas.
A jornada de Joaquim é marcada por
dois elementos: suas dificuldades sociais e sua vida comum de jovem
universitário. Bem pouco interessante são suas desventuras amorosas com seus
pares românticos, apenas mais para o meio do romance, quando as diferenças
sociais entrecruzam o relacionamento que se desenvolve.
O jovem, dividido entre o sonho de
ser escritor, os dilemas universitários e os cuidados com a avó, que divide com
a tia, parece viver em angústia, correndo de lá pra cá, como quem deve apagar
múltiplos incêndios — o que por si só tornaria a narrativa dinâmica e dividida
em núcleos ricos se aprofundados; mas não é o que ocorre: em determinado
momento, todo um capítulo é dedicado a como seus avós se conheceram, e em
nenhum momento posterior isso é retomado.
Parece que o romance vai se
expandir para as múltiplas vivências de quem vive em situação similar ao
protagonista. Mas logo voltamos aos olhos dele sobre os acontecimentos que
vivenciou — vivencia? Os verbos no pretérito denotam ações já encerradas, mas de
que momento Joaquim narra o que vemos? O protagonista de
O lugar mais sombrio,
a recente trilogia de Milton Hatoum, jovem universitário como o protagonista de
Tenório, retoma o passado anos adiante, no futuro, já como homem adulto formado
em outro lugar do espaço e da vida. Mas, nem mesmo isso a narração em
De onde
eles vêm nos proporcionou, mais uma vez construindo todo um arco de lugar
nenhum para nenhum lugar.
E mesmo que esperançosa seja a
conclusão do protagonista, em sua premiação e viagem a Portugal, tudo que
ocorre antes é excessivamente extenso: o
telemarketing, a perdição pelas
ruas, a bebedeira. Mesmo a cena em que atende um telefonema e se depara com uma
situação de perigo e crime, o que leva até a casa da cliente, resulta em lugar
nenhum: toda uma efetiva ação, dentro de um romance parado, bem construída e
empolgante, para dar com o rosto na porta. Foram incontáveis as reviradas de
olho que dei nesses momentos e precisei muito me conter para refrear a vontade
de largar a leitura.
Parece que aqui, Jeferson Tenório
abraçou o mote da escrevivência: nos entregou uma narrativa que apenas ele,
aluno cotista que foi, em um momento em que isso era novidade e pouco
problematizado e explorado, vivendo o que viveu, poderia entregar. Mas essa
aproximação excessiva do relato e da “vida como ela é” corrompe toda a
possibilidade narrativa que aqui existia: poderia ter explorado mais as
vivências de Joaquim e sua dificuldade com a universidade; poderia ter
construído todo o romance ao longo da graduação inteira do protagonista e suas
superações acadêmicas e ainda mais disforias sociais e raciais — como Chimamanda
Ngozi Adichie bem fez em
Americanah.
Sem falar nos muitos núcleos
abertos e encerrados abruptamente, sem devida profundidade: como a relação de
encanto e desencanto entre uma menina negra cotista e sua professora/ orientadora
branca, a relação de um jovem de periferia e a homossexualidade, a relação
afetiva/ sexual de uma jovem negra militante e o seu professor branco e
burguês.
Jeferson Tenório, aqui, se
aproxima muito mais de
Estela sem Deus do que do
Avesso do pele.
Regride ou mostra que seu melhor trabalho talvez tenha sido um lance de sorte.
Infelizmente, vendas e prêmios não são sinônimos de qualidade — e a literatura
negro-brasileira muito tem a perder ao exaltar autores pretos e livros com essa
temática sem uma crítica aprofundada aos tantos defeitos neles encontrados.
208p.
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