Pertinente, atual e anêmico: De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

Por Vinícius de Silva e Souza




 
Já consagrado e praticamente uma celebridade, Jeferson Tenório se viu na difícil missão de entregar o “segundo livro” — aspas pelo medo comum de quem faz estreia arrebatadora mas também pelo fato de O avesso da pele não ser o seu primeiro livro —carregando uma expectativa imensa nas costas, uma vez que é portador de um Jabuti e de vendas consideráveis de seus outros romances. E o que se lê é um resultado pertinente, atual e ao mesmo tempo anêmico.
 
Esse é um incômodo pessoal, mas também não é: as narrações em primeira pessoa em formato de relato são limitadoras. Tenório faz um exercício narrativo muito bom em O avesso da pele, com o uso da segunda pessoa, mas entrega um descompasso grande em Estela sem Deus, com uma narrativa que começa em lugar nenhum para se encerrar em nenhum lugar. E o mesmo ocorre com De onde eles vêm — mas nem tanto: Joaquim é introduzido na narrativa quando ingressa na universidade pelo sistema de cotas e já se defronta com a primeira catraca: provar que é preto.
 
Este é um dos únicos pontos interessantes do romance, e muito se perde na excessiva demarcação de raça por todos os personagens. Quão mais interessante e sutil seria deixar para o leitor deduzir o tom de pele e a classe social de determinados personagens apenas pela forma como eles agem e pelo que possuem, e não tanto pela voz narrativa nos dizendo “de pele clara e cabelos loiros”, “um homem negro retinto”, entre outros usos questionáveis. Não há problema algum com essas marcações, o problema é mesmo a atenção que elas ganham ao serem tão repetidas.
 
A jornada de Joaquim é marcada por dois elementos: suas dificuldades sociais e sua vida comum de jovem universitário. Bem pouco interessante são suas desventuras amorosas com seus pares românticos, apenas mais para o meio do romance, quando as diferenças sociais entrecruzam o relacionamento que se desenvolve.
 
O jovem, dividido entre o sonho de ser escritor, os dilemas universitários e os cuidados com a avó, que divide com a tia, parece viver em angústia, correndo de lá pra cá, como quem deve apagar múltiplos incêndios — o que por si só tornaria a narrativa dinâmica e dividida em núcleos ricos se aprofundados; mas não é o que ocorre: em determinado momento, todo um capítulo é dedicado a como seus avós se conheceram, e em nenhum momento posterior isso é retomado.
 
Parece que o romance vai se expandir para as múltiplas vivências de quem vive em situação similar ao protagonista. Mas logo voltamos aos olhos dele sobre os acontecimentos que vivenciou — vivencia? Os verbos no pretérito denotam ações já encerradas, mas de que momento Joaquim narra o que vemos? O protagonista de O lugar mais sombrio, a recente trilogia de Milton Hatoum, jovem universitário como o protagonista de Tenório, retoma o passado anos adiante, no futuro, já como homem adulto formado em outro lugar do espaço e da vida. Mas, nem mesmo isso a narração em De onde eles vêm nos proporcionou, mais uma vez construindo todo um arco de lugar nenhum para nenhum lugar.
 
E mesmo que esperançosa seja a conclusão do protagonista, em sua premiação e viagem a Portugal, tudo que ocorre antes é excessivamente extenso: o telemarketing, a perdição pelas ruas, a bebedeira. Mesmo a cena em que atende um telefonema e se depara com uma situação de perigo e crime, o que leva até a casa da cliente, resulta em lugar nenhum: toda uma efetiva ação, dentro de um romance parado, bem construída e empolgante, para dar com o rosto na porta. Foram incontáveis as reviradas de olho que dei nesses momentos e precisei muito me conter para refrear a vontade de largar a leitura.
 
Parece que aqui, Jeferson Tenório abraçou o mote da escrevivência: nos entregou uma narrativa que apenas ele, aluno cotista que foi, em um momento em que isso era novidade e pouco problematizado e explorado, vivendo o que viveu, poderia entregar. Mas essa aproximação excessiva do relato e da “vida como ela é” corrompe toda a possibilidade narrativa que aqui existia: poderia ter explorado mais as vivências de Joaquim e sua dificuldade com a universidade; poderia ter construído todo o romance ao longo da graduação inteira do protagonista e suas superações acadêmicas e ainda mais disforias sociais e raciais — como Chimamanda Ngozi Adichie bem fez em Americanah.
 
Sem falar nos muitos núcleos abertos e encerrados abruptamente, sem devida profundidade: como a relação de encanto e desencanto entre uma menina negra cotista e sua professora/ orientadora branca, a relação de um jovem de periferia e a homossexualidade, a relação afetiva/ sexual de uma jovem negra militante e o seu professor branco e burguês.  
 
Jeferson Tenório, aqui, se aproxima muito mais de Estela sem Deus do que do Avesso do pele. Regride ou mostra que seu melhor trabalho talvez tenha sido um lance de sorte. Infelizmente, vendas e prêmios não são sinônimos de qualidade — e a literatura negro-brasileira muito tem a perder ao exaltar autores pretos e livros com essa temática sem uma crítica aprofundada aos tantos defeitos neles encontrados.


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De onde eles vêm
Jeferson Tenório
Companhia das Letras, 2024
208p.

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