Por Mary Carmen Ánchez Ambriz
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Aleksandr Soljenítsyn. Arquivo Centro Aleksandr Soljenítsyn.
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Um dos poucos livros que mudaram a
história é Arquipélago Gulag (1973), de Aleksandr Soljenítsyn. Foi assim
que Octavio Paz e outros intelectuais o assimilaram, expressando seu desencanto
com o socialismo da União Soviética.
Tchekhov já havia dito que grandes
escritores deveriam falar de política “para defender o povo da política”. Se em
O pavilhão dos cancerosos Soljenítsyn já havia deslumbrado seus leitores
ao se referir ao câncer como a doença do espírito que é o Estado totalitário,
em seus títulos subsequentes continuou com um retrato fiel da repressão que se
vivia durante o regime soviético. Ele não se importava em arriscar a própria
vida; continuou escrevendo clandestinamente, com o apoio de um grupo de amigos
que acreditavam nele, a quem chamava de “Os invisíveis”. Quem eram esses
invisíveis? Como apoiavam o escritor? Quantas vezes arriscaram ser encontrados
pelo ICGB? O que tinham em comum?
Desde 1958 — como detalhado em um
documentário de Jean Crépu e Nicolas Miletitch sobre os bastidores do Arquipélago
Gulag — Soljenítsyn teve a ideia de escrever um livro que narrasse um dia
na vida de um prisioneiro. No entanto, percebeu que sua própria experiência não
era suficiente, mas que devia expor todo o terror que viveu ao longo de quatro
décadas.
Os invisíveis formavam um grupo de
dissidentes cujos pais haviam sido presos ou assassinados pelo regime. Eram
homens e mulheres que pertenciam a um seleto círculo de confiança: eram
astutos, habilidosos em esconder seus passos e evitar chamar as pessoas por
seus nomes verdadeiros; também exigiam discrição e estavam dispostos a arriscar
suas vidas para apoiar o trabalho de Soljenítsyn.
Nadia Levitskaia e Elena
Tchukovskaia deviam distinguir quando ouviam alguém batendo na parede
repetidamente, depois um silêncio e, em seguida, uma nova tentativa. Este era o
sinal combinado para abrir a porta do apartamento e permitir a entrada do
escritor. Ele chegava, sentava-se na sala de estar e começava a escrever. Se
quisesse se comunicar com elas, mostrava um cartão e o queimava imediatamente.
Enquanto isso, elas colaboravam com ele, procurando citações, lendo livros,
localizando passagens — toda a informação que fosse necessária.
A palavra gulag referia-se à sigla
para a direção geral dos campos de trabalho forçado, e zed significava um
prisioneiro do gulag, alguém que vê a vida como “uma rara e temporária anomalia”.
“Nenhum destino na Terra poderia ser pior. No entanto, estavam em paz consigo
mesmos, tão ousados quanto
homens que perderam tudo poderiam ser”, relata o romancista sobre o trabalho
escravo dos prisioneiros em Arquipélago
Gulag.
Quando Aleksandr Soljenítsyn era
um zed, conheceu Arnold Susi, um homem que se tornou seu amigo e que gostou
muito do romance Um dia na vida de Ivan Denisovich. Susi foi assassinado
pelo regime, e sua filha, Heli Susi, em memória da amizade entre o romancista e
seu pai, quis fazer parte do círculo íntimo do escritor. Ela foi uma das que
emprestou um lugar onde Soljenítsyn pudesse se sentar e escrever por horas sem
medo de ser perturbado ou vigiado por agentes do governo.
De 1965 a 1967, durante todo
inverno, o escritor permanecia escondido em uma fazenda nos arredores de
Moscou. Heli Susi mal o via, apenas escutava o som da máquina de escrever, que
funcionava sem parar por horas. Ela apagava suas pegadas na neve de várias
maneiras, com a intenção de impedir que alguém o seguisse seus passos até a
fazenda.
Elena Tchukovskaia ficou
encarregada de reunir os textos dispersos do escritor, que totalizavam três
volumes. Nadia Levitskaia, por sua vez, foi a encarregada de encontrar um
encadernador confiável e, mais uma vez, arriscar sua vida. “Serei eternamente
grata a Soljenítsyn por nos ter mostrado um caminho. Eu sabia que um homem
sozinho não conseguiria lutar contra todo o regime, então decidi me juntar ao
seu círculo íntimo de amigos, Os invisíveis”, observa Levitskaia no referido
documentário.
Depois de encadernados os três
volumes, elas decidiram fotografar cada página e criar um arquivo em
microfilme, pois era a única maneira de conseguir levar o livro de Moscou em
segurança.
Outro grupo de invisíveis
colaborou nessa nova missão: entregaram o microfilme ao metrô de Moscou. Quando
um jornalista sueco próximo a Soljenítsyn já tinha o documento, enviou-lhes o
seguinte telegrama: “A análise de sangue da sua irmã deu positivo”. Ao saber
disso, o escritor e seu círculo de amigos entraram em um período de ansiedade e
medo, pois pensavam que haviam sido descobertos e seriam atormentados por dias
em interrogatórios. No entanto, depois de alguns dias, descobriram que, na
verdade, era uma boa notícia, não um mau presságio.
Em 1970, Aleksandr Soljenítsyn
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Sabe-se que, a partir de 1965, e após
receber essa distinção, o regime impôs maior vigilância às atividades do
escritor.
Um dos primeiros editores que
leram o Arquipélago Gulag foi Claude Durand, que levou o manuscrito que
o jornalista sueco lhe enviara para a Feira do Livro de Frankfurt. Na
realidade, não havia data para a publicação do livro, mas a prisão precipitada,
a tortura e o assassinato de uma das mulheres que apoiavam o escritor — que
havia sido ordenada a destruir uma cópia do manuscrito e nunca o fez por
admiração e afeição por Soljenítsyn — levaram a isso. A morte de uma das invisíveis
causou profunda dor ao romancista e foi quando ele tomou a decisão. Em 28 de
dezembro de 1973, o livro foi lançado na Alemanha e na França.
Arquipélago Gulag
logo se tornou o número um na lista de livros proibidos pelo regime soviético.
Era muito perigoso lê-lo. Alguns exemplares circularam na URSS, mas eram
passados de casa em casa
com extrema cautela. Começou a se formar um círculo de leitores interessados no
livro, que liam muito rapidamente, à noite, para não serem descobertos. O que faziam era ler clandestinamente e
avisavam uns aos outros quando era a vez de cada um se revezar na leitura do
livro.
“Aparentemente, o mal também é uma
magnitude limiar. Sim, o homem hesita e luta a vida toda entre o bem e o mal,
escorrega, cai, levanta, arrepende-se, fica cego novamente, mas enquanto não
cruza o limiar do mal, tem a possibilidade de voltar atrás; ele ainda está
dentro do reino da nossa esperança. Mas quando a densidade ou o grau de suas
más ações ou o caráter absoluto de seu poder o forçam a saltar além do limiar,
ele deixa a espécie humana. E talvez para sempre”, escreve Soljenítsyn.
Em 13 de fevereiro de 1974, o
escritor foi levado para Lefortovo, um bairro a sudeste de Moscou, onde iniciou
o seu interrogatório e, posteriormente, seu julgamento. Naquela época, o que
foi descrito em Arquipélago Gulag veio revelar os horrores do sistema e
a decadência opressiva do regime. Por um lado, o romancista sabia que não
poderia ser preso porque isso causaria um escândalo internacional, e o sistema
acabaria concordando com o que descrevera no livro. Após o julgamento, o regime
concluiu que a punição de Aleksandr Soljenítsyn seria desmantelar a rede de
amigos de Os invisíveis e condená-lo ao exílio.
Quando o escritor foi expulso da
URSS, foi acolhido na Alemanha por Heinrich Böll, que o apoiou naqueles
primeiros meses de liberdade, diante dos olhos do mundo e da decadência de um
sistema que prometia ser algo diferente. “O enigma que nós, contemporâneos,
jamais conseguiremos decifrar é o seguinte: por que a Alemanha pode punir seus
malfeitores e a Rússia não? Que caminho desastroso nosso país ainda deve seguir
se não conseguirmos nos livrar dessa imundície que apodrece em nossos corpos?
Que lição a Rússia pode ensinar ao mundo?” questiona-se.
Arquipélago Gulag vendeu
mais de trinta milhões de cópias em mais de trinta idiomas. O escritor soube
que relatar suas experiências e as de outros acabou por enriquecer toda a
estrutura autobiográfica que construía um bildunsroman. Soljenítsyn,
como em outros romances, recorreu mais uma vez à técnica polifônica, o que
também conferiu maior potência ao que narra. É um coro de confissões,
lamentações e angústias, que desafia o leitor a continuar a história.
Vale lembrar a formação
intelectual do autor; ele foi marxista a vida toda e, de repente, acabou
repudiando essa ideologia e buscando alternativas. Sua experiência zed o marcou
para o resto da vida. Ao optar por outra perspectiva, o escritor voltou seu
olhar para os gregos, especificamente para Platão, ao se referir à “extrema
injustiça” que prevalecia na URSS, “quando os injustos são considerados justos
e o único refúgio possível e desejado para os justos é a prisão”.
Em 1974, Ignacio Olares
entrevistou José Revueltas sobre sua opinião acerca dos escritos de Soljenítsyn,
que na época era visto por certo setor da esquerda como “alguém usado pelo
imperialismo para alimentar seu moinho”. Revueltas comenta: “Literariamente, Soljenítsyn
foi um grande herdeiro de seus compatriotas Tolstói e Dostoiévski. Ele não é
deste mundo e, por isso mesmo, é profundamente relevante. Com poucos escritores
vivos como ele, pode-se ter absoluta certeza de que será um clássico.” Quando
Ignacio Olares lhe pergunta sobre o desencanto com o socialismo transmitido
pelo escritor russo, ele responde: “A verdade é sempre revolucionária, não
importa onde ou como surja. Soljenítsyn teve que dizer sua verdade, de uma
forma ou de outra, dentro deste ou de qualquer sistema político; ela nos
alimenta a todos.” A entrevista é citada em Octavio Paz y su siglo, de
Christopher Domínguez Michael.
Era importante para Octavio Paz
ler Soljenítsyn, embora estivesse muito de acordo plenamente com a moral cristã
que ele adotava. Através dos livros de Soljenítsin, o mundo conheceu os
horrores que se desenvolviam na URSS, e também contribuiu para o colapso do
regime. A crise das ideologias permeou o século XX, e o que vivemos no século
XXI também é consequência dessa experiência. Dentro da polifonia de vozes que
constitui Arquipélago Gulag, em sua estrutura, estão Os invisíveis, os
cúmplices do escritor que se uniram por uma causa comum: revelar a verdadeira
face do regime.
* Este texto é a tradução livre de “Soljenítsyn y Los
inivisibles”, publicado aqui, na revista Nexos.
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