70 anos de Vidas Secas

Por Fabiano Mendes 



Obviamente, o título deste artigo se refere ao livro de Graciliano Ramos, escrito em 1938. No mesmo ano em que se comemora o centenário de morte de Machado de Assis, aclamado o maior escritor brasileiro, comemora-se também os 70 anos de uma obra imortal: Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos – para muitos igual em valor a Machado, mas que, diferentemente deste último, fundador da Academia Brasileira de Letras, ignorou a ABL e fez-se imortal ao aliar a profundidade de seus escritos a uma vida cheia de marcas das angústias, uma vida que foi até certo ponto também muito seca. 

Graciliano Ramos de Oliveira nasceu em Quebrangulo – AL, em 1892 e morreu em 1953, no Rio de Janeiro. O conjunto de sua obra acompanha de perto a trajetória de sua vida. Afinal, como ele mesmo sentenciou, só escrevia o que via e só sentia o mandacaru. Assim, suas principais personagens e suas memórias e crônicas, todas de fortíssimo teor realista são o resultado direto de suas observações e vivências. Graciliano foi filho de pequeno comerciante que tentou ser proprietário agrícola em Pernambuco e fracassou com a seca, pelos idos de 1899, quando a família volta a Alagoas e o pai instala-se em Viçosa.

As experiências do menino Graciliano renderão mais tarde o livro de memórias Infância (1945), e fornecerá parte do material humano que o escritor empregará em Vidas Secas: vaqueiros, moleques maltrapilhos, a brutalidade dos patrões, a animalização do homem. 

Graciliano será ainda revisor de jornal, editor, gerente de uma pequena venda, prefeito, diretor de instrução pública (o equivalente a Secretário Estadual de Educação), preso político, colunista da revista Cultura Política, do Departamento de Imprensa e Propaganda – órgão do Estado Novo, comandado pelo mesmo presidente Getúlio Vargas, que o prendera em 1936 –, e Inspetor Federal do Ensino Secundário do Rio Janeiro, função que exerceu até onde pode, quando o câncer o impediu de continuar em 1953. 

Da vida de comerciário e intelectual interiorano tirou material para construir Caetés (1932), seu primeiro romance; da administração pública nas vésperas da revolução 1930 encontrou tipos duros e encastelados que lhes serviram para compor o pequeno ditador de São Bernardo (1934), para muitos o seu romance mais lúcido e mais realista; das experiências como servidor público na capital emergiu o círculo dostoievskiano de Angústia (1936), livro que fora publicado com seu autor na cadeia, preso sem acusação formal, mas provavelmente por ter simpatias com o comunismo e, portanto, suspeito de qualquer envolvimento com os levantes de 1935 – a prisão renderia Memórias do Cárcere (1953), cuja publicação é póstuma. Há ainda as crônicas de costumes e aspectos do Nordeste, as crônicas dos tempos de jornalista, os contos... Quase tudo publicado a partir de 1962, sob a organização do filho Ricardo Ramos.

Gente humilde

Toda esta obra – não tão vasta quanto a de um Jorge Amado – tem como peça máxima justamente Vidas Secas, aquela que fala da gente mais humilhada que um país de injustiças caliçadas em cinco séculos de exploração e exclusão pode produzir: o retirante. Elemento crucial não para entender a seca como fenômeno climático, mas para apontar as contradições básicas de uma nação procura de si, o retirante de Vidas Secas, representado nas figuras de Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cadela Baleia, ganha profundidade inédita na literatura brasileira.



Graciliano lhes concede contradições e conflitos internos tão profundos como os das personagens de Kafka, ao mesmo tempo em que, obrigado pelo compromisso realista, lhes furta a fala, o dinamismo, a altivez e as possibilidades de protagonizarem seu próprio destino. Isso rendeu ao autor críticas pesadas do Partido Comunista, que queria ver Fabiano se vingando do Soldado Amarelo que o espancara e prendera. A sensibilidade de Graciliano Ramos não poderia deixar passar o fato de que “governo é governo”, máxima que se hoje tem algum valor, o tinha muito mais naquele cenário de governo centralizado na figura de Vargas, o maior dos soldados amarelos. Resultado: mesmo no meio do mato, isolados, Fabiano de facão na mão, o vaqueiro dá passagem ao soldado e lhe indica o caminho perguntado. Governo é governo. 

Montagem 

Vidas Secas tem gestação irregular – em parte por culpa do governo – afinal é a primeira produção de um ex-preso político que divide pequeno espaço de um quarto de pensão com sua família numerosa. O fato é que o romance – ou novela para alguns críticos – foi feito de modo esfacelado e vendido separadamente para diversos jornais como contos, que só mais tarde se rearranjaram em capítulos, dando o formato final da obra. Para termos uma idéia, o primeiro “capítulo” escrito foi Baleia, em 4 de maio de 1938; na obra este é o nono de treze capítulos, cujo último, Fuga (coincidente ao da obra final), data de 6 de outubro do mesmo ano. O livro seria montado e publicado antes de dezembro.

Tudo muito rápido, tudo muito movido ao duplo sentido que a palavra precisão carrega: o tiro tinha que ser certeiro e a necessidade de garantir recursos estava premente.

70 anos depois, e na sua centésima sexta edição – sem contar as traduções para várias línguas, incluindo polonês, o turco e o búlgaro – a saga de retirantes já fez mais de um milhão e quinhentos mil leitores brasileiros irrigarem os olhos diante da secura de vidas tão sugadas pela exploração, o isolamento, as privações e as desesperanças, incluindo este que vos escreve.

O livro feito para pagar contas seria escolhido pela Fundação William Faulkner dos Estados Unidos, em 1962, como o representante da Literatura Brasileira Contemporânea.

Passagem 

Encerro este pequeno artigo com esta passagem que simboliza melhor que qualquer tentativa minha a amargura de vidas secando. Antes um pequeno aviso: são muitas as particularidades e mistérios deste clássico que não puderam ser expostos aqui, mas outros aniversários virão. Vamos às palavras do mestre: 

“Instintivamente procurou no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o. Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.”


* Fabiano Mendes é Professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

** Este texto foi publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato no dia 05 de outubro de 2008, p. 12 e 13.


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