Machado de Assis, memórias póstumas

Por Pedro Fernandes


Cena do filme Memórias póstumas, de André Klotzel.


Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881, é a obra do auge da carreira literária do escritor brasileiro Machado de Assis: assim define sua crítica mais especializada. Autor da fina ironia, da fina análise da alma, da fina análise da sociedade e das relações sócio-burguesas, tudo isso me leva apropriar-se do título da obra de Machado para retomar alguns aspectos da vida do escritor que neste setembro de 2008, centenariza-se.

Pode não ter tido o reconhecimento merecido ainda em vida – e até teve para sua época –, mas a obra de Machado de Assis é marco na literatura brasileira e eterniza-se ao lado dos grandes clássicos literários. Isso porque o escritor inaugura na língua portuguesa brasileira um estilo novo de se escrever romance num estilo novo de se usar a língua escrita.

Machado, um mulato, foi uma criança pobre, neto de escravos alforriados – o Brasil só libertaria seus escravos em 1888, com a lei Áurea –, nascido no morro carioca e desde cedo já confessava sentir “umas coisas estranhas” – talvez as raízes da epilepsia. Logo, é ele marco também quando nos referirmos à sua trajetória de vida. Tendo em vista que numa sociedade marcada por divisões sociais muito rígidas como a nossa – e como já era o Brasil por essa época – o sujeito já nasce com seu destino traçado, determinado pela raça, pela origem e, no caso de Machado, marcado ainda pela possibilidade de freqüentar ou não o ambiente escolar.

O Rio do escritor que foi seu cenário predileto – “Eu sou um peco fruto da capital, onde nasci, vivo e creio que hei de morrer” –, o mais proseado ao longo de sua obra literária, era ainda sede do Império português no Brasil, quando do Morro do Livramento, mais precisamente da casa do pintor de paredes Francisco de Assis e da portuguesa Maria Leopoldina Machado de Assis, abria-se o choro do menino Joaquim Maria Machado de Assis. Isso no dia 21 de junho de 1839.

Quando menino os cenários da sua literatura, como a Chácara do Livramento de propriedade da madrinha, senhora muito rica, foram os lugares mais freqüentados. Quando menino o vulto da morte e da miséria faz-se vida entre a família – aos seis anos, perde a única irmã; aos dez, a mãe. Aos catorze encontramos o menino Joaquim Maria com a madrasta a vender doces para sustentar a casa, tarefa ainda mais difícil com a morte do pai, em 1853. Tantas dificuldades, certamente contribuíram para que trajetória do escritor iniciasse ainda na adolescência, com uma concentração de esforços para sair do anonimato e integrar-se ao clã intelectual da cidade. Ambições de um jovem que não teve nessa trajetória, lances de sorte, sucesso imediato, consagração enquanto escritor por parte de crítica e público instantaneamente. Nem riqueza, nem fama.

A arte literária lhe vem dum longo e árduo trabalho com a escrita. Um amadurecimento de passos calvários, tanto que seu momento de epifania só se dará na idade madura, já aos sessenta anos de idade.

Começa na literatura pelos jornais. Em 1855, o jornal Marmota Fluminense publicava os versos de “A palmeira” – “Tenho a fronte amortecida/  Do pesar acabrunhada!/ Sigo os rigores da sorte,/Nesta vida amargurada”. Este jornal era na época editado numa livraria que era o ponto de escritores da época, como Paula Brito, dono da livraria e do jornal, e Manuel Antônio de Almeida, já romancista conhecido. Desse convívio, Machado acaba por tornar-se membro da redação do Marmota, sendo a porta de entrada para outras publicações e outros jornais. Antes o adolescente Machado apenas vivia encantado com as elegâncias da Rua do Ouvidor, onde certamente trabalhava como caixeiro e tipógrafo, antes de tornar-se cronista e passasse esses encantos e percepções através das crônicas, num estilo irônico, que logo mais tarde o consagraria enquanto romancista.

Mas como sempre foi desse país, nem só de letras vivia o escritor. Teve ele a necessidade de ir, assim como na escrita, pouco a pouco ingressando na carreira burocrática. Nela fez-se Oficial de gabinete de ministro, membro do Conservatório de Drama, Oficial da Ordem da Rosa, até o mais alto grau da carreira na diretoria do Comércio. Esta estabilidade burocrática seria o que daria a ele a estabilidade para escrever. Foi cronista durante quarenta anos.

Nesse ínterim, casa-se o escritor com a portuguesa de nacionalidade Carolina Novais – “Ai, o amor de um poeta! Amor/subido!/Indelével, puríssimo, exaltado,/Amor eternamente convencido...”. Com ela, Machado viveria 35 anos. Quando Carolina morre, em 1904, desmorona sua vida. Uma sucessão de doenças – vista fraca, infecção intestinal, uma úlcera na língua – leva Machado a sair de licença da Academia Brasileira de Letras – instituição que ajudou a fundar e da qual é presidente perpétuo. Esta licença, em junho de 1908, já o prenúncio de sua morte, ocorrida três meses depois.

O que trará a vida desse escritor está marcado na escrita da poesia, do romance, do conto, do teatro, da crônica, reunidos numa obra, que é antes de tudo como um feixe de memórias póstumas, que assim defino dado o legado que ela nos tem dado ao longo desse século machadiano.


* Este artigo foi publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato, em 28 de setembro de 2008.


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