A necessidade humana de expressão artística – parte II

Nota: Em maio de 2010, publiquei no jornal Correio da tarde um texto que se intitulava "A necessidade humana de expressão artística - parte I"; meses depois voltei com o mesmo tema. Essa é uma das publicações que provavelmente pode ter saído, mas a certeza, só alguns leitores terão, porque não acompanhei se de fato o texto foi para as páginas do jornal ou não. Como aqui reúno - à medida que posso - as publicações que saem nos jornais, deixo, depois já de tanto tempo, aquilo que se constitui na segunda parte para "A necessidade humana de expressão artística". (Pedro Fernandes)

A Cidade Desperta - Umberto Boccioni


Ainda naquele tour de force da arte enquanto elemento instintivo, consiste voltar a ele para mais algumas considerações. Entre os instintos de conservação e de reprodução, a arte dá a ideia (pela presença constante em todos os ambientes sociais humanos) de um instinto “intermediário” entre eles dois, ou, por que não, um primo legítimo deles. E há nesse rol ainda outro caráter, para além da presença constante nos meios humanos, que vem reforçar esse critério de instintividade à arte. A sua beleza. Todo elemento fruto do instinto, diferente da razão, é belo por natureza. É, aliás, o que de mais belo há na natureza, se entendo, que foi e é sob o critério da razão que o homem já cometeu e comete as maiores atrocidades que esta mesma razão julga; o instinto é uma força que se mantém mais forte do que as rédeas de controle que inventamos para superá-lo; é o único elemento que nos aproxima do sublime, que nos preenche, ainda que em breves instantes – porque, é da natureza humana, a incompletude. 


Não será difícil de aceitar essa proximidade da arte com o instinto, ainda quando procurarmos analisar com simplicidade a verdadeira natureza da emoção estética, sua inquietação produzida no sujeito diante da obra de arte, seu estágio orgástico. Quando contemplamos uma obra de arte que nos agrada por qualquer motivo, o que realmente experimentamos, sob denominação de emoção estética ou sentimento do belo, parece ser uma sensação de bem-estar, de euforia, um entusiasmo, uma inquietude; noutras palavras, um acréscimo de nossa vitalidade. Não importa se for depressivo, macento ou ilegível o conteúdo da obra de arte; seja ao lermos o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa ou contemplarmos o Naufrágio da Medusa, de Teodoro Géricault, ou ouvir Bach naqueles desníveis das cordas do violoncelo. Essa sensação está próximo, claro está, daquele instinto de conservação, visto que re-engendra em nós o viço da existência, a satisfação da alma; pelo êxtase, nos acresce de um sentimento de vitalidade e ser-no-mundo. Além de que, tudo isso também contém, na sua essência de prazer, um sentido altruísta de renúncia ou sacrifício, divisão e ao mesmo tempo que viço, perda do plano vital. Sensações que nos são apresentadas diretamente quando estamos diante de alguma obra de arte.     

Porém, alguém pode ainda torcer o nariz para tal assertiva do instinto, porque o instinto ainda é aquilo que tanto nos causa repulsa; aquilo que desejamos encoberto porque quebra a ordem, a estabilidade, o plano da razão erguido a tanto custo. Ao instinto ainda é associado o lugar cativo do vulgar, do pejorativo, geralmente usado para indicar impulsos e paixões grosseiras. Não é assim, portanto, que delego seu lugar. E por isso mesmo que associo ao caráter artístico. O instinto, a meu ver, se atrela a significação de uma forma de inteligência, dotada de alta sabedoria, imanente e necessária à matéria viva; ao instinto se associa o prazer e o prazer é que move o traço de humanidade que ainda teimamos em ter. E justo por sua natureza instintiva ou biológica e não apenas intelectual e social é que essa necessidade de expressão artística é tão elementar, precoce, permanente e universal no ser humano. Sendo tão elementar, deve ser na essência, igual em todas as pessoas. Deve ser a mesma num sambista a bater no couro de gato de um tamborim, como num Beethoven compondo a Nona Sinfonia. 

Se assim as pessoas ainda torcem o nariz é porque estas fazem uma confusão comum. A da essência com a forma. Toda a questão está em não confundir a essência, biológica e absoluta da Arte, vinda do universo misterioso dos instintos, com as formas técnicas e expressivas, que são particulares, relativas e transitórias. Quando se diz que a necessidade de expressão artística de um sambista a bater no couro de gato de um tamborim é como a de um Beethoven compondo a Nona Sinfonia, fala-se de essência, que é absoluta e permanente, não das formas técnicas e expressivas, ou dos estilos, que são relativos e transitórios. Fala-se de um caráter inerente a todas as criaturas humanas.
No mais, outra ideia que vem reforçar essa relação da arte com o instinto, tem a ver com o caráter de sanidade mental que ela nos provoca. Parece que ela recupera em nós, ou pelo reelabora em nós espaços de lucidez a fim de que possamos rever, pelo lado contrário, todas as cadências perigosas que nos cerceia a carne humana; cumpre, pois, uma “missão”, que é a de nos salvar da loucura e privar do mal dos discursos reducionistas.


Penso ainda que esse caráter de dessubstanciação da loucura tem a ver com o caráter de desautomatização da vida, em apreendê-la como algo impreciso e, sobretudo, não-transparente, “preocupação” que fia toda obra de arte, é também o fio que alia arte-instinto e norteia, sem dúvida, que a arte se abre, atenta, em obter, por através do seu corpo, todas as vias possíveis da própria existência humana.



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