Antonio Tabucchi

Por Pedro Fernandes




Esta entrada no Letras não existiria sem dois acontecimentos. Dois fatos distantes no espaço, mas em tempos relativamente muitos próximos. Uma vez aconteceu algo parecido quando redigia o texto para a seção Os escritores dedicado ao escritor brasileiro Moacyr Scliar. Agora, era tarde de um domingo, 25 de março, quando eu lia — “experimentei então um sentimento de estranheza muito forte em relação a tudo: a tal ponto que já não sabia porque estava ali, qual o sentido da minha viagem, e que sentido tinha o que andava a fazer e o que eu próprio era. Daí, provavelmente, o meu livro. Em suma, um equívoco. Sou, evidentemente, dado ao equívoco.” — um fragmento de Os voláteis do Beato Angélico do escritor italiano Antonio Tabucchi. No mesmo instante em que fechei o livro e fui espiar o Facebook, está postado um link dando contas da sua morte.

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Antonio Tabucchi foi autor de uma vasta e premiada obra que chega aos leitores brasileiros ainda nos anos 1900, certamente devido sua estreita relação com a literatura portuguesa. El foi professor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Siena e depois elegeu Portugal como pátria preferida e quase toda sua obra a partir de então logo foi traduzida por lá, como Afirma Pereira, de 1994, uma das obras adotada pela sétima arte, e Noturno Indiano, de 1984. 

Nasceu em Pisa, Itália, em 1943 e viveu toda sua infância e parte da adolescência num pequeno povoado próximo a essa cidade. Filho de um comerciante de cavalos, Tabucchi estudou línguas e filosofia antes de viajar pela Europa. Em Paris, na Sorbonne, descobriu, traduzida para o francês, uma coletânea de poemas de Fernando Pessoa. Foi o passo primeiro para uma paixão que o levou a estudar português para melhor compreender a obra do poeta. Resulta daí uma série de ensaios sobre o trabalho de Pessoa, e juntamente com a sua mulher, Maria José de Lancastre, verteu para o italiano muitos dos textos do poeta modernista português.

Além da adaptação para o cinema, Afirma Pereira é seu romance que mais recebeu prêmios, entre eles o italiano Via Reggio e Campiello e o francês Jean Monet. Dele, Mario Vargas Llosa notou, certa vez: “A sobriedade do estilo, a sua condensação, bem como a sábia parcimônia de constituição dos dados, não são o que há de mais original na forma narrativa de Afirma Pereira.” Depois do livro de 1994, Noturno indiano é outro que reafirma a qualidade de Tabucchi; com este, recebeu o Prêmio Médicis.

Outro destaque da sua obra é o romance Requiem. Uma alucinação. Escrito direto em língua portuguesa, se passa, à maneira do Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, numa Lisboa pós-morte de Fernando Pessoa. Ainda sobre o poeta, Tabucchi compôs Os três últimos dias de Fernando Pessoa e uma comédia para o teatro.

Defensor da liberdade de expressão, o autor italiano se envolveu em algumas polêmicas: em 2009, foi processado pelo presidente do senado italiano pela publicação de um artigo no jornal L'Unitá, no qual se coloca ao lado de um jornalista que, no mesmo jornal, notara que os perfis sobre Schifani, então presidente daquela casa, não mencionavam as ligações do político com as pessoas condenadas por relações com a máfia italiana. 

Em 2011, Antonio Tabucchi cancelou sua participação na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip) em protesto à decisão da justiça italiana por extraditar Cesare Battisti, um ex-ativista de esquerda condenado em seu país à prisão perpétua que se exilou no Brasil sob custódia do governo federal.

O escritor morreu em Lisboa aos 68 anos.

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Depois da morte Antonio Tabucchi, Maria José Lancastre, foi descobrindo cadernos; mais de uma centena deles. Cadernos com rascunhos e onde estava já uma versão quase final de um conto. “Era como um equilibrista que tinha de atravessar uma corda entre uma janela e outra. Dizia que um conto era como um soneto, tinha um equilíbrio seu e tinha de ser percorrido logo. Um romance podia ser interrompido.” 

O conto foi descoberto em novembro de 2014. Durante uma viagem de avião para Itália, Maria José Lancastre começou a transcrevê-lo. “Fiquei presa no texto”, conta. A caligrafia estava difícil de decifrar, outras tarefas vieram interpor-se, mas agora ficou pronto — pronto com a sua própria suspensão porque nunca foi terminado. 

O episódio que o originou foi contado ao escritor algures antes do Verão de 2011. “Muitas pessoas contavam-lhe histórias e diziam-lhe: ‘Isto é um conto para ti.’ Muitas vezes não resultava.” Desta vez resultou e o conto começou a formar-se. Leia aqui.


* Atualizado em 23 de março de 2015.

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