“Luciana” e “Minsk”: contos exemplares do mestre Graciliano Ramos


Por Enaura Quixabeira Rosa e Silva*

1ª edição de Insônia, de Graciliano Ramos.

Graciliano Ramos inicia a carreira literária escrevendo sonetos, publicados sob o pseudônimo de Feliciano de Olivença. Em 1915, no Rio de Janeiro, trabalhava como revisor em três jornais: Correio da manhã, A tarde, e O século. Nesse mesmo ano, incursiona pela narrativa por meio de vários contos inéditos. De volta a Alagoas, evolui a literatura brasileira com textos romanescos extraordinários como São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938). Na obra Insônia (1947), composta por treze narrativas curtas, destacam-se dois contos, “Luciana” e “Minsk” que revelam um narrador carregado de ternura e compreensão  pelo humano.

Colocados um na sequência do outro, os contos trazem como personagem principal uma criança, uma menininha de tenra idade, que ainda não sabe ler, nem alcança o ferrolho da porta, mas que, segundo o tio Severino, “sabe onde o diabo dorme”. E a palavra de tio Severino tem peso de lei. Luciana gosta de imitar as senhoras que usam sapatos altos. Por isso, prende cordões em uma caixa vazia que transforma em bolsa, com um pedaço de pau simula uma sombrinha, ergue-se nas pontas dos pés, e, assim, “aparelhada”, diz o narrador, “chama-se D. Henriqueta da Boa Vista” e conversa com amigas invisíveis.

O conto penetra o psiquismo infantil, descortinando o mundo imaginário das crianças, com toda sua riqueza e ludicidade. A expressão “sabe onde o diabo dorme”, bem típica do vocabulário nordestino, refere-se à esperteza, à capacidade de invenção, à criatividade, tão próprias do universo infantil, e tão negada pelos adultos. A personagem Luciana contrasta com Maria Júlia, sua irmã, “encolhida e pálida”, segundo o narrador, muito bem comportada, correspondendo ao gosto e às expectativas da família. A protagonista, antecipando a visão do moderno conto de fadas, recusa o comportamento das princesas e não se fixa nas estrelas e “se largaria pelo mundo, importante, os calcanhares erguidos, em companhia de seres enigmáticos que lhe ensinariam a residência do diabo”, diz o narrador e, acrescentamos, que lhe poderiam ensinar a viver.

O outro conto de Insônia, intitulado “Minsk, traz os mesmos personagens: a mãe, o papai, o tio Severino, Maria Júlia, a cozinheira, Seu Adão, o carroceiro contador de histórias, Luciana, naturalmente, e um novo personagem, Minsk, um periquito grande, com manchas amarelas, que andava torto, inchado e fazia. “Eh! Eh!”, presente de tio Severino. O narrador de Graciliano continua investindo na exuberância do imaginário infantil ao narrar que Luciana vive “no mundo da lua, monologando, imaginando casos romanescos, viagens para lá da esquina, com figuras misteriosas que às vezes se uniam, outras vezes se multiplicavam”.

A chegada de Minsk modifica tudo isso. A personagem esquece as amigas invisíveis, a performance de D. Henriqueta da Boa-Vista, as escapadas, as aventuras na carroça de Seu Adão. Minsk, o amigo concreto, tudo substitui.  O exercício do amor e da troca estabelece-se entre a menina e o animalzinho. Ela lhe apresenta o seu pequeno mundo e, ele, de espírito dócil e compreensivo, mas disposto às aventuras e à liberdade, descortina para a protagonista o afeto e a doçura. A mãe, sempre preocupada em poupá-la dos cortes, arranhões ou ossos quebrados, diminui “as arrelias, censuras, cocorotes e puxões de orelhas”.

 O clímax do conto acontece quando, ao exercitar sua habilidade de andar de olhos fechados e de costas, Luciana pisa e esmaga Minsk, involuntariamente. Há uma profunda identificação entre a protagonista e a “trouxa de penas ensanguentadas” em que o pequeno animal se transforma. Parece que era ela mesma que se tinha pisado e morria. Luciana se confronta com a dor abismal da perda do objeto amado. O mundo adulto se preocupa sempre em preparar as crianças para a dor das quedas, das esfoladuras, que somem com pomadas e compressas. No entanto, nada é capaz de nos advertir para o desastre da perda de alguém que amamos, com quem nos identificamos e que é de fundamental importância para nossa vida. A narrativa graciliânica representa essa dor de forma magistral na repetição do nome do ser amado – Minsk – pela personagem-menina em diferentes entonações que vão do grito dilacerante do inesperado até o sussurro da despedida e do apelo desesperado: “– Não morra, Minsk.” O diálogo entre a protagonista e o periquito agonizante que responde por movimentos débeis se traduz na mais bela representação da perda na contística da literatura brasileira.

Notas

Além de Insônia, Graciliano Ramos publicou do gênero conto Dois dedos (1945) e Histórias incompletas (1946). Insônia foi adaptado para o cinema em 1980 por Emmanuel Calvancanti, Luiz Paulino dos Santos e Nelson Pereira dos Santos.

No Tumblr do Letras publicamos algumas capas de edições desse livro.

No canal do Letras no Youtube, você pode assistir a adaptação de "Um ladrão", um dos contos de Insônia adaptados para o cinema em 1980.


* É professora na Universidade Federal de Alagoas. Tem Mestrado e Doutorado pela mesma instituição. Publicou Prazer mortal: lições de literatura brasileira, La condition humaine dans l’oeuvre de Lucio Cardoso: entre Eros et Thanatos, l’allégorie baroque brésilienne, Sonata de outono para cordas doloridas e Lucio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira, entre outros títulos. Este foi publicado inicialmente Graciliano. Ano 1, n. 1, set. 2008.

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