Sylvia Plath para crianças


É sabido que Sylvia Plath, apesar de incansavelmente uma amante do trabalho, estudiosa, irrequieta e apaixonada, gostava – e muito – de passar o tempo na cama. Em suas biografias se menciona inclusive um período em Londres, antes do nascimento de seus filhos, em que com seu marido Ted Hughes dedicava um dia da semana para que cada um permanecesse aí recostado, lendo, escrevendo, comendo torradas, enquanto que o outro se dedicava às tarefas mais urgentes da casa.

É possível imaginá-la então, numa dessas estâncias preguiçosas, desenhando mentalmente um catálogo de camas estranhas, lúdicas e diversas, onde descansar. Disso trata, aliás, O livro das camas, reeditado pela Globinho, selo de infantis da Globo Livros; um precioso volume. Esta é uma peça que pode ser catalogada (e tem sido) como histórias para crianças, mas também é apreciável por leitores fieis à escritora seja por sua raridade (da obra) seja pelos vínculos imprevisíveis com sua obra adulta. E, além disso, é uma obra póstuma, já que nenhum editor a entendeu ao certo no momento de sua descoberta, até ir ficando inédita durante muitos anos.

Sylvia Plath nasceu em 1932 numa família de ascendência alemã. Seu pai morreu quando ainda era uma criança. Segundo dizem os que a conheceram, a ausência dessa figura tão central marcou-lhe profundamente e trouxe-lhe uma tristeza para sempre. Em sua juventude, Plath se dividiu entre Estados Unidos e Londres, onde realizou uma brilhante carreira em Cambridge. Ali foi quando conheceu Ted Hughes, um poeta inglês de grande influência com quem se casou e teve dois filhos. Alguns anos depois, separada dele e numa de suas crises de depressão, a escritora pôs um ponto final à sua vida. Era o inverno de 1963, um dos mais frios na costa do Tâmisa.

Do que escreveu, publicou apenas um romance (sempre lido como de cariz autobiográfico) com um pseudônimo – o famoso A redoma de vidro – e um livro de poesia que tem por título um pesado poema que escreveu em torno da figura de seu pai. Sua vida foi tão curta que não chegou a ver publicados muitos de seus textos, entre eles os três relatos – dois deles em prosa e um verso – que findaria compondo suas Collected children’s Stories editados uma década depois da sua morte pela Faber & Faber. Naquele volume reuniam “The It-Doesn’t-Matter-Suit”, traduzido e editado em português no Brasil como “O terno do não-faz-mal”, “Mrs. Cherry’s Kitchen”, “A cozinha da senhora Cereja”, e “The Bed Book”, “O livro das camas”, o único dos três escrito em verso, sua forma de escrita mais comum. A edição brasileira ainda trouxe “Há camas de todos os tipos...” e “A senhora Murtinha Maio Cereja tinha a cozinha...”

Não podemos esquecer que foi também esta autora a que escreveu: “Sou vertical, mas preferia ser horizontal”. Uma poeta com muito de visionário, dona de uma lírica das cenas íntimas e alucinadas, como vistas, deste outro lado, dos sonhos. É essa mesma mente a que em “O livro das camas” muda o signo para o onírico, para focar-se nos leitores mais novos. Quem melhor que Sylvia Plath para pensar toda essa série de assuntos fantasiosos que vêm à mente de uma criança no momento de recolher-se para dormir? Quem melhor para divagar em alternativas sobre essa importantíssima peça do mobiliário onde as crianças (e os adultos) apagam seu corpo e sua imaginação para entregar-se sem eles ao descanso? Claro que isto não é tão sensível; muitas vezes esse estado de dormir é o melhor para entregar a mente a toda sorte de devaneios. E é exatamente isso “O livro das camas”.

A origem de um projeto tão singular não foi muito explicado nem pela própria autora: “De uma longa lista de camas muito estrambóticas, engenhosas e abstratas, elegi dez, comecei a escrever e já não pude parar”, escreveu em seu diário. É, por isso, um catálogo de camas em que ninguém poderá senão justapor o sonho. E assim é como começa a imaginar o dispositivo cama envolto em toda uma série de opções disparatadas. Camas para singrar mares e pescar ou camas para alcançar o espaço exterior e tonar-se como algumas estrelas cadentes. Camas que servem de cenário a trapezistas, camas sujas como um chiqueiro, camas comedoras de snaks para todos os gostos, camas elefante para atravessar a selva africana, ou camas nas árvores para delícia dos ornitólogos, entre muitas outras opções.

Outra das particularidades deste longo poema é que foi ilustrado por Quentin Blake*. Trata-se do mesmo ilustrador que acompanhou o lendário Roald Dahl, quem foi, além de um dos mais importantes autores infantis, um famoso rabugento que não duvidou em descrever Blake como “o melhor ilustrador de livros infantis do mundo”. Blake foi diretor do Departamento de Ilustração do Royal College of Art e recebeu ao longo de sua carreira os prêmios mais importantes em sua área como Hans Christian Andersen e o Children’s Laureate. Em “O livro das camas”, Blake recupera seus traços manuais para recriar o mundo fabuloso proposto por Plath. Desenhos de linha sensível e breve, alegres e vívidos.

O conjunto do trabalho é uma obra esquisita. Possuidor de um humor do qual Sylvia Plath nunca teve, mesmo em seus momentos mais sombrios. É, além disso, uma busca desses elementos que as crianças de todas as épocas parecem sempre estar fascinadas. Ter um espaço onde tudo está permitido – comer, pular como um trapezista, ser o que maneja um elefante ou um trator potente capaz de sulcar terrenos difíceis – pensar a partir de sua casa um modo de chegar a Marte e caçar estrelas cadentes, um pouco mais abaixo, onde possa observar os pássaros sem ser incomodado. Um livro que tem o plus de estar escrito por uma autora como Sylvia Plath, dona de uma linguagem luxuosa e serena, e que pode ainda e sempre seduzir os leitores mais novos.

 * A edição brasileira saiu com ilustrações de David Roberts. 

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