Ivan Turguêniev, espelho das contradições russas

Por Andrés Seoane

O jovem Ivan Turguêniev em daguerreótipo de O. Bisson 


“Um dos princípios básicos da vida é a união entre os tempos, a transmissão patrimonial de valores. Um mundo sem tradição cria órfãos”. Honrando o espírito dessa frase, recordamos no 200º aniversário de seu nascimento, a figura do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883), perfeito modelo do complexo século XIX num império czarista tomado de irresolutas contradições e de grandes figuras literárias. Nobre latifundiário defensor da emancipação dos trabalhadores, liberal dividido entre o conservadorismo e o anarquismo, fervoroso europeísta numa sociedade eslavófila, o escritor sempre se posicionou nas grandes polêmicas políticas de seu tempo. Muitas dessas lutas que povoaram a vida de Turguêniev já caducaram, mas, dois séculos depois, resta-nos a sua literatura, marcada pela arte da descrição, na qual brilhou como poucos.

De origem nobre, nasceu em 9 de novembro de 1818 em Oriol, ao sul de Moscou, e se criou na propriedade rural de sua mãe, a rica latifundiária Varvára Petrovna Turguênieva, onde teve contato direto com o campesinato russo que foi elemento central em sua obra. Seu pai, um coronel da cavalaria imperial empobrecido que se afastou de sua família devido à múltiplas aventuras amorosas, morreu quando Ivan ainda era criança, deixando-o à mercê de uma mãe tirana que, não obstante, lhe impôs o amor pela literatura russa e estrangeira. Outra das pessoas que desempenhou um papel importante na formação de Turguêniev como escritor foi um dos trabalhadores de sua mãe, que seria o protótipo de uma das personagens principais de seu texto Punin e Baburin, onde narra o fim da Rússia czarista e escravista.

Depois de concluir a escola básica, sua família se mudou para Moscou, onde Turguêniev entraria na universidade para cursar Letras, especializando em estudos clássicos, literatura russa e filologia. No ano seguinte, já o adolescente de dezesseis anos, e já em São Petersburgo, ingressou na Faculdade de Filosofia. Na capital imperial Turguêniev, influenciado por escritores como Púchkin e Gógol começou a escrever poemas românticos. Durante sua educação, as ideias liberais, em voga nessa época, calaram em sua mente juvenil, mais ainda, quando cinco anos depois, em 1838, viajou a Berlim com o objetivo de estudar a filosofia de Hegel. Na capital alemã, entretanto, vários outros pensadores o levaram a aproximar-se do anarquismo, especialmente quando conheceu Mikhail Bákunin – Turguêniev viveu um apaixonado romance com a irmã do anarquista.

As primeiras tentativas literárias de Turguêniev, incluindo poemas e esboços de narrativas, mostram seu gênio e receberam comentários favoráveis de Belinski, então o principal crítico literário na Rússia. De sua época de estudante, escreve algo em torno de uma centena de poemas, alguns deles publicados na revista O contemporâneo, fundada por Púchkin em 1836, um ano antes de sua morte, onde publicaria em anos posteriores sua série de contos Memórias de um caçador (1847) e Rúdin (1856); e de onde vieram a luz textos de outros grandes nomes das letras russas como o próprio Púchkin, Gógol, Ivan Gontcharov ou Tolstói. Com o objetivo de escrever com maior liberdade que a oferecida na Rússia de Nicolau I, viaja para a França, onde se converte em involuntário testemunho da revolução de 1848. Ali se encontra com Alexander Herzen, ideólogo da revolução campesina russa, de quem era amigo íntimo quando estudantes.

Espantado com a ideia da revolução, regressa à Rússia em 1850. Dois anos depois, quando morre sua mãe, Turguêniev herda uma imensa fortuna. Já no posto de amo-senhor, melhora a situação de seus empregados, mas não os liberta, algo que aconteceria em 1861 com a lei do czar Alexandre II. Apesar de sua inação real, sua decidida defesa da abolição da servidão e sua condenação do nível de vida do campesinato russo se mostra em seu Memórias de um caçador, uma série de contos concatenados cujo denominador são os sucessos da vida rural. Segundo Dostoiévski, Turguêniev é incapaz de dar o salto do papel para a vida real e sua obra acaba por ser a obra de um homem acomodado, pouco comprometido com a situação de seu país, para quem só existe na Rússia a vida bucólica do campo.

Mas, seu trabalho não foi do agrado da censura czarista, que tratou de impor obstáculos, proibindo ou censurando as obras do escritor. A oportunidade de vingança chega ao escrever um elogioso obituário dedicado a Gógol, que é usado como acusação para levá-lo ao exílio em sua propriedade familiar. Graças à intervenção de Tolstói, dois anos depois, foi permitido que Turguêniev pudesse viver na capital, mas foi-lhe imposta a proibição estrita da publicação de novos trabalhos. Assim, muitas das obras-mestras do escritor foram publicadas na Rússia apenas depois da morte em 1855 de Nicolau I – obras como Ninho de nobres (1859), Na véspera (1860) ou Pais e filhos (1862).

Em 1855 Alexandre II se tornou czar e o clima político permitiu o país a algumas aberturas, como a da publicação de todas essas obras que tratam sobre temas como a frustração da vida, os amores falidos, a crítica sobre a vida russa e as promessas dos revolucionários, obras que refletem sobre as novas ideologias. Na última delas, Pais e filhos, reconhecido como um dos romances mais importantes do século XIX, Turguêniev utiliza pela primeira vez um termo que logo se populariza – niilismo; surgido na convulsa Rússia do século XIX, onde as revoltas camponesas, os atentados e o banditismo estavam na ordem do dia. O talento narrativo de Turguêniev, além da delicadeza de seus retratos psicológicos e de seu bom ouvido para os diálogos, reside na limpeza e contenção das histórias, onde sob um toque melancólico, todos os elementos se encaixam à perfeição e cada descrição é de uma precisão cuidadosa.

Agora, esta etapa da maturidade e plenitude criativa se vê abalada por fortes desavenças ideológicas com muitos de seus amigos. A principal razão foi certa discrepância entre as ideias que impregnaram todas estas obras do escritor e sua posição civil. Para muitos, Turguêniev só estava a favor das mudanças significativas na Rússia no papel, mas estava contra o fato de que essas mudanças se fizessem pela revolução. Por isso, rompeu em 1862 com seus queridos amigos de juventude Alexander Herzen e Mikhail Bákunin.

Teve também fortes desavenças com Tolstói. Sua complicada amizade com o autor de Guerra e paz alcançou um nível de animosidade tamanho que em 1861 este chamou-o a um duelo. Depois se desculpou, mas estiveram sem se falar durante dezessete anos. Também teve confusões com Dostoiévski, conservador e eslavófilo, que em romances com O idiota e Os demônios advertia que os liberais perverteriam a Rússia, levariam o país à sua destruição e aconselhava aos russos a conservar sua própria vida e a fé ortodoxa. Suas ideologias diametralmente opostas o levariam a dedicar-lhe observações do tipo: “Dostoiévski é um grão no nariz da literatura cuja aprofundamento, nos sombrios abismos da alma humana é um muco psicológico que deixa um mau cheiro de azedo e hospitaleiro”. Por sua vez, o autor de Crime e castigo recomendou a Turguêniev, que naquele momento residia em França, que comprasse um telescópio, “do contrário, seria difícil olhar a Rússia”, e transformou o escritor numa paródia em seu romance Os demônios através da personagem do romancista Karmazínov. Apesar de tudo, em 1880, o famoso discurso de Dostoiévski na inauguração do monumento a Pushkin versou sobre sua reconciliação com Turguêniev.

A partir de 1863 o escritor se mudou para o estrangeiro e se esteve à frente da vida cultural na Europa. Entre seus amigos se encontravam escritores famosos como Charles Dickens, Émile Zola, George Sand ou Victor Hugo, mas sempre recordou suas raízes e fez a ponte entre as literaturas russa e ocidental, seja através de traduções, seja da promoção de alguns de seus compatriotas. Em princípios de 1882, chegou à Rússia a notícia alarmante sobre a doença mortal do escritor, um câncer de medula que se o levaria à tumba um ano depois. Em seu leito de morte exclamou, referindo-se a Tolstói: “Amigo, volta à literatura”. Com tal inspiração, se diz que Tolstói escreveu obras como A morte de Ivan Ilitch e A sonata de Kreutzer. Apesar dos anos distantes de sua pátria, o corpo de Turguêniev foi trasladado, seguindo seu expresso desejo, para São Petersburgo, onde repousa no cemitério Vólkovskoie.

* Este texto é uma tradução de "Iván Turguéniev, espejo de las contradicciones rusas", publicado em El cultural.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #613

Dalton Trevisan

Boletim Letras 360º #603

Boletim Letras 360º #612

O centauro no jardim, de Moacyr Scliar