Pablo Picasso, o poeta



“Se fosse chinês não seria pintor mas escritor, escreveria minhas pinturas.”

“No final de contas, todas as artes são apenas uma. É possível escrever uma pintura com palavras como é possível pintar sensações num poema.”
(Pablo Picasso)

Pablo Picasso. Foto: Gjon Mili

A inclinação de Pablo Picasso para as palavras, a literatura, a poesia remontam aos tempos de infância e juventude, quando redigia pequenos jornais em forma de cartas e enviava aos seus pais. Mas, só se revela como escritor a partir de 1935, quando se viu imerso numa crise sentimental e criativa, ocasião que chegou a confessar para o seu amigo Jaume Sabartés que queria mesmo largar tudo, a pintura, a escultura e a poesia, para se dedicar exclusivamente ao canto. Sabe-se que isso não aconteceu, mas no mesmo ano de sua revelação poética, André Breton o consagrava através do seu texto “Picasso poète”, publicado no Cahiers d’Art.

Mais tarde, em 1954, ele organizou e publicou Poèmes et Litographies (ver o final desta matéria). Mas, o trabalho em poesia do pintor só alcançou alguma visibilidade pouco depois de sua publicação na França em 1989 de Écrits, uma edição organizada por Marie-Laure Bernadac e Christine Piot; ali descobriu-se que escreveu nos dois anos seguintes à revelação com intensidade quase diária, e que escreveu antes e depois disso uma variedade de textos que remetem a mesma qualidade criativa de sua obra plástica. Resulta desse período cerca de quatro centenas de textos do gênero e três peças de teatro.

O pintor escrevia em francês e espanhol, por vezes combinando as duas línguas num mesmo texto; os poemas mais extensos estão escritos na língua materna e se utiliza do francês para os textos mais experimentais. Alguns foram escritos de um só fôlego, pura transposição do imaginativo para o papel, sem retoques ou revisões futuras; esses são designados por Androula Michaël como “poemas-rio”, textos nos quais as palavras ganham uma precipitada velocidade como as coisas em suas telas. Outros, pressupõe um trabalho de contínuo retoque, seja quando se revela a urdidura bem elaborada do texto ou quando o poeta se mostra afeito aos jogos de palavras em poemas que, segundo Michaël são “poemas-variações”. Em muitos, Picasso se dedica a uma experimentação baseada na distribuição de seus elementos constitutivos.

Mas, o que prevalece é o tratamento semelhante ao dos materiais pictóricos, seja na combinação de elementos de natureza díspar (palavras, números, notas musicais) que produzem vocabulários distintos e simultaneamente produtos de uma coexistência numa espécie de colagem, seja no trabalho de acumulação. Em grande parte das vezes, a revisão do texto é rizomática, isto é, por acréscimo de novos materiais que agregam novos rumos e modificam os já existentes. Nos casos dos poemas continuamente revistos, nota-se uma obsessão em torno de criação de um objeto autêntico. Há textos resultado de dezenas de reescritas: é o caso de “Nieve al sol” (1934) reescrito, até ao que se sabe, onze vezes. Estes são textos que oferecem variadas possibilidades de leituras, derivadas ou não do mesmo afluxo.

Há poemas que adotam a forma de um hieróglifo ou de uma interferência do plano verbal pelo visual. “A sutil presença do pintor Picasso em sua obra poética se manifesta, como é lógico, na plasticidade de sua escrita e na distribuição do texto na página, assim como na materialidade de seus suportes e ferramentas de escrita”, sublinha Antoni Gelonch-Viladegut. Aqui, nota-se o criador interessado em registrar a volição criativa apropriando-se de qualquer suporte para registrar suas ideias, por vezes, esse é um processo visível nos seus próprios trabalhos plásticos, quando tece juntamente com o desenho, frases dispersas.

Outros de seus poemas mesmo não guardando quaisquer interesses de obedecer a uma estrutura lógica ou formal tendem para uma prosa surrealista. Ao fundir poesia e prosa, Picasso rompe com a sintaxe dos gêneros e se afasta propositalmente dos convencionalismos; não é um escritor afeito ao gramatical. Quando se utiliza do espaço como elemento de composição dos textos, recupera, por instantes, procedimentos cuja herança remete-nos aos caligramas de Guillaume Appolinaire, de quem foi muito próximo, ou os textos de Mallarmé.

Sua poesia evoca também os temas do pintor, seja na recorrência vocabular relacionada ao seu ofício principal, seja na retomada de formas geométricas; e é, como nos seus quadros, inseparável da Espanha, sempre evocada através da tauromaquia, das canções populares, da cultura gastronômica e do espinhoso tema da guerra. Para Gelonch-Viladegut, a ditadura franquista é lembrada por entre pratos e comidas incomestíveis, como o próprio regime; ela se mostra motivada em sua poesia pela obra do amigo Paul Éluard. O poeta francês compôs “Novembre 1936” motivado pelo bombardeio do exército de Franco sobre Madri; este poema influenciou Picasso na realização de “Sonho e mentira de Franco” que depois alimentaria o seu poema “La victoire de Guernica”, enquanto Picasso desenvolvia Guernica. Evoca ainda temas caros de sua formação, a memória da infância, as sensações do vivido, os objetos de seu convívio imaginário e as implicações com temas como o amor, a velhice, a morte. A passagem do tempo é, aliás, a força melhor visível em sua poesia.

No mesmo texto em que Androula Michaël designa as formas da poesia de Pablo Picasso, o prefácio para a antologia Poemas en prosa de Pablo Picasso, uma edição que reúne em língua espanhola parte da criação poética do pintor malaguenho, é reportado que, “para Picasso, a literatura, ao invés de ser distração ou passatempo, foi sempre uma atividade com a qual se comprometeu apaixonadamente. Uma atividade plenamente integrada no conjunto de sua obra, a qual seria inconveniente separá-la. Resulta que não faz sentido se distrair em estabelecer comparações entre as duas facetas de seu gênio, procurando decifrar os poemas à luz – ou na sombra – de sua pintura.”

Surrealista, lúdica, exagerada, poucas vezes lírica, repleta de repetições, com abundantes referências a Góngora, sempre plástica. Como afirma Antoni Gelonch-Viladegut “O resultado é uma obra idiossincrática que não é necessário que apareça assinada com o nome de seu autor para que possamos reconhecê-la como própria de Picasso”. O próprio Picasso se viu como “poeta descarrilado”, ou como confessou ao amigo Roberto Otero: “No fundo, sou um poeta que se perdeu.”

A descoberta de Pablo Picasso poeta se deveu em parte ao seu convívio com o teatro; sabe-se que escreveu três peças: Le Désir Attrapé par la Queue (1941, traduzida no Brasil como O desejo pego pelo rabo), sua primeira aventura literária, escrita em francês e em questão de dias durante a ocupação alemã, que ganhou estreia sob direção de Albert Camus e com Jean-Paul Sartre como ator principal, conforme registra Luis María Anson, da Real Academia Espanhola; Les Quatre Petit Filles (1947), peça de estilo surrealista composta em seis atos, tal como a primeira; e L’Enterrement du Comte D’Orgaz (1950), inspirada e com o mesmo título de quadro de El Greco.

É do reencontro com uma série de materiais do período da infância e juventude de Pablo Picasso apresentada na exposição Picasso Poeta que estas inclinações para o literário ficam mais bem compreendidas. Nos primeiros contatos com a expressão arte mostram-se nos primeiros exercícios com a escrita e o tratamento de modos e recursos variados. É nos livros escolares que lê, tanto prosa como poesia: Cervantes, Alarcón, Góngora, Quevedo, Teresa de Ávila, Zorrilla... Com apenas 12 anos, em La Coruña, elabora pequenos jornais que enviava para sua família; criou três títulos: Azul y blanco, La Coruña e Torre de Hércules. O interesse pelo jornalismo e pela literatura registra-se ainda em 1901, já em Madri, quando funda com Francesc d'Assís Soler a revista Arte Joven, um suplemento sobre literatura e arte modernista à maneira da revista Pèl & Ploma, de Barcelona. Tudo o que fará florescer o Picasso poeta de 1935. “Todos sabemos que a arte não é verdade. É uma mentira que nos faz ver a verdade, pelo menos o que nos é dado para entender. O artista deve saber convencer os outros da verdade de suas mentiras”, dizia o artista. E é por esse mundo outro que melhor encontramos a verdade do gênio.

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