Guerra fria, de Pawel Pawlikowski

 Por Pedro Fernandes 



 
Um amor que atravessa toda sorte de reveses, rente e se confundindo com o mesmo fluxo da conturbada história de quando uma parte da Europa envolvida sob o mesmo ideal de liberdade se deixava trair outra vez pelas amarras do poder das ideologias. Guerra fria é um documentário com uma narrativa de ficção ao fundo que aos poucos emerge e ganha forma. Sua narrativa acompanha o trânsito entre o reerguimento de uma Polônia profundamente destruída no fim da Segunda Guerra e a entrada do país num modelo de domínio tão cruel ou radical quanto este período: a assunção do ideário comunista, com as mesmas marcas da grande vaga que havia soterrado meio mundo poucas décadas antes.
 
A alternativa encontrada pelo cineasta polonês, reconhecido um obcecado pela história, para acompanhar a escala dessa segunda grande noite, é acompanhar a formação de um grupo de dança folclórica dedicado à performance de música e dança. A larga escala ― que começa com um tratamento etnográfico para mapear temas e cantigas populares, se amplia num concurso que visa encontrar cantores e dançarinos e resulta na expansão dessa companhia em turnê por grande parte da Europa ― perfaz o itinerário histórico recuperado pela narrativa fílmica. Isso significa dizer que o factual não é apenas um pano de fundo para a ficção (por isso o uso da expressão documentário) e esta se modula ora pelo mesmo arco da história dessa companhia ora pela trajetória musical da jovem Zula, quem compõe par no imbróglio amoroso com Wiktor, principal músico e maestro desse projeto de renascença da cultura polonesa.
 
A jovem descoberta nas audições para a formação da companhia folclórica alcança destaque no grupo e existe mesmo fora dele numa carreira solo que implica construir uma obra distanciada daquilo que o Estado passa a exigir da organização e dos artistas. É que, interessado no sucesso dos criadores, o governo neles encontra uma alternativa ideal para promoção dos seus ideais, o que, bem sabemos, se é capaz de oferecer o aparecimento de um tipo de arte singular é também favorável (e foi o que prevaleceu no seu tempo) ao que há de pior na criação artística: uma obra regida pela celebração protocolar, pelo artificialismo da forma e pela baixa complexificação da linguagem, que precisa atender mais ao servilismo do panfleto e da propaganda que aos interesses propriamente da arte.
 
O caráter documental de Guerra fria se faz pelo tratamento da história da Polônia comunista por esta companhia da dança; o tom se perde um pouco, quando o governo começa a perseguir os que não seguem os princípios por ele estabelecidos. É quando o plano ficcional se interpõe como matéria principal. Isso se marca pelo afastamento progressivo dos destinos da companhia folclórica pela aproximação dos destinos das duas personagens principais: Wiktor e Zula. Ele, um perseguido pelo regime e não necessariamente porque foi um opositor, mas por ambições de um segundo na companhia envolvido de interesses amorosos para com Zula. E esta, como dissemos, coloca-se sempre numa difícil encruzilhada: a verdade e a mentira do amor, o deslumbramento e a decepção com a história, com a vida artística, com as escolhas sempre marcadas pelo lugar de origem, este que a cada vez que o tempo passa, mais torna uma obsessão pela incapacidade de adequação fora da terra natal, esta que, uma vez conseguido o retorno não é a da primeira juventude, mas um campo de desterro, difícil, opressivo e cruel.
 
Este é um filme feito por escalas, sempre com variações muito bruscas entre um ponto e outro: da bonança à miséria; da esperança ao desespero; da vida à morte; do amor ao ódio; da liberdade à opressão; da paz à guerra; do progresso à destruição; do céu ao inferno; da salvação à condena. E, delas, oferece uma leitura talvez difícil de se assimilar entre os criados numa tradição da narrativa que sempre oferece uma alternativa ante a imposição do lado oposto da beleza. Nesse caso, porque escolhe acompanhar os altos e declives do amor, poderia ser este o sentimento capaz de ao menos salvar os primeiros envolvidos visto se tratar da impossibilidade, para o contexto, de uma salvação coletiva. Assim, o amor é, em vida, apenas um sentido de pulsão material dos corpos, capaz de guiá-los para fora do destino imposto e da degeneração, nada mais que isso. Qualquer outra alternativa reside fora dessas linhas.
 
Todas as variáveis de escala e mesmo certa lição fatalista sobre o destino se revela pela multiplicidade sonora que envolve (ou é a própria) a narrativa. Há qualquer coisa de musical em Guerra fria, mesmo que seja este um filme falado. Talvez seja este mesmo o interesse do cineasta que, se queria contar uma história de amor, findou por recriar uma epopeia de notas acentuadamente trágicas e dramáticas com um outro toque idílico; no rol dos comparativos, este é uma espécie de Doutor Jivago, o romance de Boris Pasternak que mesmo situado noutro contexto é feito das mesmas tintas e colorido com as mesmas expressões: amor e desterro.
 
A ficção que se emoldura neste grande painel, para não deixarmos de estabelecer os vínculos literários, é uma reescrita do amor impossível nos mesmos modelos eternizados pela tragédia shakespeariana Romeu e Julieta. As famílias que se odeiam são agora o homem e a história. Se não fosse o andamento desta, tudo entre os dois amantes seria outra coisa; mesmo que fosse perdido o idealizante, aberto sempre diante da impossibilidade, o que colocaria em risco a própria continuidade do amor, os empecilhos alcançariam menor força. Sim, aos olhos de Pawel Pawlikowski, a história é uma Hidra, infecta a tudo, não só os destinos coletivos.
 
Visualmente, Guerra fria é um filme belíssimo. As constantes invasões musicais, sempre atentas à paixão com a qual os artistas depositam nas atividades que desempenham, o que nos induz para uma verdade do sentimento, estão entre seu ponto-alto. Mas, há a fotografia em preto-e-branco, a maneira sutil de dizer as coisas e a construção muito detalhada de todas as situações que completam a experiência artística deste filme que, sem esses atributos, cairia na mesmice e seria apenas mais uma longa e tediosa história de amor. Reafirma-se a sensibilidade para o equilíbrio, tudo aquilo que pareceu desnecessário às artes do período evocado pela cena fílmica.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #608

É a Ales, de Jon Fosse

Dez poemas e fragmentos de Safo

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito