Máquina Kafka


Por Gabriela Massuh

© Yosl Bergner




Kafka. Por quase um século, essas cinco letras serviram para parafrasear ― se não explicar ― uma multiplicidade de fenômenos. Não só literários, mas também políticos, psicológicos, teológicos, filosóficos, existenciais e outros. O simples adjetivo kafkiano se apresenta sempre que determinada situação não tem saída, ou quando é fatal e só se permite ser remediada por uma parábola do mal. As estatísticas apenas destacam a profusão do fenômeno Kafka: desde 1960, a fábrica acadêmica que produz versões sobre o autor de A metamorfose gera, em média, um livro por semana.
 
As respostas que uma mesma tradição acadêmica oferece para explicar a euforia exegética em torno de uma obra tão monumental quanto breve são variadas e, na maioria das vezes, insatisfatórias. Diz-se que é justamente a fragmentação da produção de Kafka que abre sua obra a múltiplas interpretações. Na verdade, muito do que lemos hoje não foi publicado durante a vida do escritor. Outra explicação é a tendência parabólica dos textos: é verdade, mais do que histórias, os escritos de Kafka são lidos hoje como grandes metáforas da relação do sujeito com certas condições essenciais, como o poder, a religião, o medo, a lei ou a família. Se a história mais famosa for tomada como exemplo dessa multiplicidade simbólica, a maçã que apodrece na casca quebradiça do besouro humano é uma imagem que pode falar do pecado original, do horror do sexo, da aversão ao mundo exterior, do desejos reprimidos, da culpa, da discriminação, da aversão ao casamento, da justificativa para a preguiça, do sadomasoquismo, da condenação moral, do diabo e de Deus ao mesmo tempo. Por trás dessa imagem existe, aliás, um lugar comum para todo leitor.
 
A lista de interpretações é interminável: Benjamin viu na obra de Kafka um palco onde acontecia o teatro do mundo, cujo ator principal é uma criatura inundada de vergonha que esqueceu o texto. Brecht, a partir dos antípodas dessa interpretação que implica a noção religiosa de um mundo sem Deus, argumentou que Kafka havia antecipado a superlotação dos grandes conglomerados urbanos do século XX. Gershom Scholem argumentou que Kafka delineou com antecedência a miséria dos campos de concentração que se seguiram. Borges, um agnóstico habitual, mais indulgente em questões teológicas e políticas, leu-o literalmente e viu na obra de Kafka a permissão para estabelecer na literatura a dimensão de uma irrealidade que só pode ser explicada a partir da ficção que cria.
 
As interpretações continuam, mas uma das leituras mais frequentes, dir-se-ia que a mais contemporânea dos nossos dias, é a de Kafka como o construtor por excelência das constelações políticas de opressão. Em outras palavras: Kafka geralmente está na ordem do dia quando se trata de expressar sistemas de governo que geram sentimentos incertos, mas poderosos de arbitrariedade, opressão, incerteza, aberração ou loucura. Desde que Hannah Arendt, em Origens do totalitarismo, usou O castelo e O precesso para exemplificar a atmosfera sob o estado burocrático autoritário do pré-guerra que mais tarde deu origem ao nazismo, as comparações políticas têm estado na ordem do dia. Da mesma forma, Kafka teria previsto o horror e as aporias nazistas do socialismo real. Em análises mais recentes, Kafka personifica a resistência ou submissão ao poder por excelência. Em Por uma literatura menor, Deleuze e Guattari propõem uma dupla negação a partir da leitura de Kafka: a escrita que finge fugir do mundo é, na realidade, aquela que a faz desaparecer porque subverte seus valores de representação. Giorgio Agamben parte do conto “Diante de lei” para mostrar que toda estrutura hegemônica ou soberana exerce necessariamente um poder de submissão porque mantém o sujeito dentro de um vácuo cuja característica essencial é ser sem lei (“Homo Saccer”).
 
É assim que a literatura de Kafka sempre pareceu estar muito além de seu propósito inerente. Para além da própria literatura para se instalar numa daquelas áreas de produção puramente simbólica condenada permanentemente a dizer alguma coisa. O planeta Kafka seria então algo como uma máquina de dizer perpétua, suscetível a qualquer interpretação. Destino paradoxal para quem decidiu queimar toda a sua produção literária.
 
Mas, por que a capacidade expressiva desse mundo permanece intocada ao longo do tempo? Onde está a extemporaneidade de Kafka? O que é aquele elemento a-histórico que, até hoje, o torna um eterno contemporâneo de diferentes situações e períodos? Perguntas difíceis de responder que este breve artigo não pretende dissipar, mas, modestamente, esclarecer.
 
As infinitas possibilidades de leitura de Kafka originam-se sobretudo na impossibilidade de interpretar de forma inequívoca a simbologia das narrativas, mas mais especificamente a condição das personagens: Gregor Samsa participa tanto da condição humana quanto da condição animal. O mesmo acontece com o condenado de A colônia penal: ele é um homem e também um cachorro. Algo semelhante surpreende Georg Bendemann, o personagem de O veredito: no tempo que dura uma discussão, ele passa sem solução de continuidade de filho seguro de si, de sua situação confortável de prometido e herdeiro, para a situação de aceitar sem mais delongas a condenação do pai que o manda pular no rio que corre em frente à casa. Bendemann aceita isso como se o julgamento do pai, que nega totalmente sua condição anterior, como se tivesse sido constitutivo de sua pessoa e inerente à história desde o início.
 
O próprio Kafka muitas vezes confessou a sua “impossibilidade de ser”: não se dedicou inteiramente à escrita, continuou a manter a sua posição na seguradora onde trabalhava até onde a sua saúde o permitia. Nunca chegou a se casar, apesar de várias tentativas dolorosas e frustrantes; não era tcheco, embora tivesse nascido em Praga, não era alemão, embora essa fosse sua língua; era judeu, mas nunca se sentiu parte da comunidade judaica em Praga. “Eu gostaria de estar morto para assistir ao luto por mim”, disse ele a Max Brod dois anos antes de morrer, confessando que tinha medo da morte porque ainda não havia começado a viver. Se houve alguém que experimentou o delicado equilíbrio de viver apenas nos limites de sua própria existência, foi Kafka.
 
Ele nunca deixou de afirmar, especialmente em seus diários e em sua correspondência, que ele mesmo era feito de literatura. Em geral, essa confissão costuma vir acompanhada de uma descrição irônica e meticulosa de seu corpo muito esguio, como se o rabisco Kafka tivesse sido escrito em seu corpo ou, ainda mais, fosse seu corpo. Nesse contexto, é notória a sua proverbial obsessão pelo casamento e pelas mulheres, a quem esquadrinhava com a pertinácia de um entomologista para chegar sempre à mesma conclusão: não ia beber dessa sensualidade. Porque para ele não havia escolha entre se submeter à loucura de um cotidiano “normal” e se submeter à loucura de continuar a ser o pária que escreve para negar, não para publicar, para continuar vivendo no deserto que lhe servia de comida e desprezo.
 
Muito se tem falado sobre o elemento esparsamente corpóreo das figuras criadas por Kafka, às vezes chamadas não por nomes próprios, mas por sua função: o viajante, o oficial, o pároco, o caçador, o artista. São seres sem atributos humanos (ou são humanos demais), que cumprem uma função abstrata dentro da história, como se fossem fórmulas destinadas a transportar certos conteúdos intercambiáveis ​​entre um texto e outro, entre uma época e outra: significados parciais que se derramaram sobre si, dentro de sua própria funcionalidade na ficção, respondem pela parcialidade de todo significado. A abstração de Kafka não é uma abstração para significar um todo, mas o contrário, é uma abstração para representar o vazio, para aniquilar a cena em que ele se passa, para aniquilar a representação.
 
“Quando aquele mundo despertar, a palavra verdadeira se desvanecerá em sonho”, disse Karl Kraus para esse universo literário que usava o texto como última razão, da qual também era preciso se livrar. Frases que dizem outra coisa ou dizem permanentemente para não dizer nada. Para Kafka, um sedutor culpado e travesso, escrever era a armadilha na qual ele queria desaparecer. Em uma carta endereçada a Kurt Wolff e datada de 4 de novembro de 1913, ele afirma:
 
“Uma lamentável crônica que começa a partir de uma construção cuja base inferior certamente flutua acima do vazio. Quando me aproximei da minha mesa para levar o tinteiro para a sala, senti uma rigidez em mim que me fez pensar no ângulo de um enorme edifício que aparece na névoa e desaparece novamente. Não me sentia perdido, algo em mim esperava e esse algo estava separado de cada ser humano. Eu me perguntei o que aconteceria se, de repente, eu decidisse abandonar tudo para andar pelo campo como todo mundo faz. Este modo de antecipação, esta tendência permanente de procurar exemplos, esta névoa de medo ... tudo isto é ridículo. São apenas construções que nem mesmo na representação do escritor atingem a superfície do que está vivo e, quando chegam, são vítimas de uma leve e repentina inundação que os varre do planeta. Que teve a arte mágica de transformá-los numa máquina para evitar que milhares de facas espalhem seus fragmentos e os façam desaparecer.”
 
Escrever como máquina aniquiladora é uma construção, uma plataforma onde pode acontecer o frágil e contundente teatro do mundo, que, ao mesmo tempo, pode ser apagado repentinamente por uma inundação ou pelo movimento de um cotovelo. Kafka concorda com a neutralidade absoluta da voz narrativa, com a inversão absoluta do narrador onisciente: ele se transforma na narrado, na garatuja de um alfabeto permanentemente perdido e redescoberto. Quem conta finge dominar o que é narrado, conta, mas é como se nada soubesse, como se o narrado lhe fosse estranho; não comunica ou comunica infinitamente. Em Kafka, trata-se um procedimento pelo qual cada afirmação tende a sublinhar seu vazio de significado; isto é, torna-se a negação não mais de seu conteúdo, mas de sua própria anulação: a anulação da pessoa Kafka.
 
“Falar com neutralidade ― diz Maurice Blanchot em De Kafka à Kafka ― é falar à distância, sem mediação ou referência; é a prova da distância irredutível para apagar a mensagem e os dois polos que definem a instância da comunicação”.
 
Assim entendida, a voz pela qual a “máquina Kafka” se expressa está deslocada de um centro comum e, nesse deslocamento, assemelha-se à fala de um louco, por causa do invertebrado; ou a linguagem do sonho, pela pureza de sua estrutura inconsciente ou subconsciente. Enfim, é aí onde a linguagem de Kafka adquire a carnalidade que a torna suscetível a tantas interpretações quanto os leitores: nesse não-lugar do extemporâneo, onde o dizer negativo se transforma numa máquina de expressão infinita. Nesse espaço de extrema densidade e precariedade, vazio de representação ao mesmo tempo cheio de possibilidades, a subversão pode instalar-se, pois não há outra regra senão a irreverência e também o riso.

* Este texto é a tradução de “Máquina Kafka”, publicado aqui no jornal La Nación.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore