O fim, de Karl Ove Knausgård (1)

Por Pedro Fernandes

Karl Ove Knausgård. Foto: Nina Rangøy 


 
O último volume de Minha luta é um contínuo adiamento do fim e sua leitura cobra o mesmo esforço do leitor. No sexto livro, Karl Ove Knausgård pratica o realinhamento do tempo. A narrativa salteia por circunstâncias do seu passado, recupera-se mesmo passagens das partes anteriores, mas agora, o tempo do organizador se confunde entre o do acontecimento e do presente da narração. Isso acontece em parte porque o ponto final do longo romance coincide com a feitura do seu desfecho, ou seja, nesse instante, arma-se uma maratona para a escrita do restante do romance enquanto os primeiros tomos são publicados e numa curta distância temporal entre um e outro mais uma variedade de empecilhos familiares. Como então se conciliam o elastecimento da conclusão e a necessidade de atender o plano da editora?
 
O caso é que não se conciliam. É verdade que O fim não chega a ruir com a estrutura do projeto autobiográfico, em que os melhores instantes são mesmo A morte do pai, A ilha da infância, A descoberta da escrita e Uma temporada no escuro (nessa ordem), mas está distante de satisfazer. E não se deve ao caso de, eventualmente, todo o esforço colossal resultar em certa conclusão óbvia levantada no início de tudo por alguns leitores: a de que todo esforço do escritor resultaria na reafirmação da fatal degeneração que está na outra ponta do itinerário de uma vida. Deve-se, sim, em parte, a certa ideia talvez fixada na literatura — questionável como tudo — de que o seu tempo é essencialmente o passado. Sabemos, obviamente que o presente só existe como miragem, o instante em trânsito, mas ao dizer do passado no trato ficcional, é claro, dizemos sobre a possibilidade de, em distanciamento, conseguir melhor vislumbrar o que serve de material à narrativa. É notável que todo o trabalho de Knausgård se ancora na possibilidade de capturar o trivial em sua inteireza a fim de expandir suas fronteiras para o terreno próximo ao da imagem, da metáfora ou mesmo do símbolo.
 
O próprio narrador de O fim discute sobre essa dificuldade: “encontrar a relevância do material”, entendendo-se por relevante o “elemento comum no meio daquilo que é individual”. É uma interessante passagem do romance que ensaia uma compreensão da forma autobiográfica. Nas partes anteriores de Minha luta, esse recorte encontra-se amparado no que, de alguma maneira, está sedimentado como tema na literatura. O trivial aparece subordinado a esse tema: a morte, o conflito entre pai e filho, a infância, a formação, o primeiro amor, o despertar para os domínios da arte e a formação do escritor… No livro aqui em questão, a narrativa flerta com a forma do diário, porque nada do comum está em contato com um elemento do imaginário literário; é o tempo-em-si em estágio, diríamos, de cristalização, ou seja, a ilusão de apreensão do instante-já.
 
Talvez pudéssemos designar a história como o grande tema de O fim, mas este não se ancora ao trivial, por mais que seu narrador se esforce no que chamaríamos de rebaixamento do conteúdo da historiografia, como se buscasse dispensar o que foi instrumentalizado pela ideia positivista de monumento por uma leitura comum dessas circunstâncias. É possível que nossa própria condição de presos nesse modelo do historiográfico seja o empecilho para nos convencer da revista proposta por esse narrador, o que faz considerarmos esse interesse como uma estratégia fracassada de adiamento do fim. De maneira que a vida comum, com as complexidades do convívio familiar, mas sobretudo suas repetições, e toda angústia do escritor atacado pela insegurança e certo medo quando estoura o imbróglio com o tio interessado em fazer ruir com os planos de publicação de Minha luta chamado por ele de complexo de mentiras fabricados por um filho a mando de um mãe que nunca guardou simpatia com a família Knausgård, é o melhor do romance. E não as longas passagens que reexaminam os eventos em destaque na história europeia do século XX.
 
Mas, como a história, nesse itinerário de estreitamentos subjetivos alcança o romance? É muito provável que antes de ler a obra de Karl Ove Knausgård, a primeira coisa a reparar seja a similitude entre o título do seu projeto e Mein Kampf. Essa aproximação, por sua vez, se manifesta aqui por outro caminho: as dificuldades do escritor com a leitura de poesia e a demonstração de uma tentativa construída a partir do convívio com um poema de Paul Celan estabelecido num desses cursos de estudo e análise do texto poético. A discussão de “Stretto” deságua nos resquícios do nazismo na esfera familiar e no fascínio que o tema histórico, algo talvez recorrente entre muitos leitores, desempenha na adolescência; na família, Knausgård recorda dois episódios específicos, a descoberta de um broche do estado nazista encontrado entre as coisas do pai e um exemplar do livro de Adolf Hitler entre os objetos da avó.
 
Abre-se, assim uma longa monografia que ora investiga Mein Kampf ora o confronta com algumas das biografias sobre o seu autor. Mas, não é apenas o dado biográfico o que interessa ao investigador e sim como se formou na Europa (e aqui as determinantes não são apenas históricas, são também científicas, filosóficas e literárias) as condições para a existência do regime de ódio e de horror implementado com o Terceiro Reich. Nesse esforço, a narrativa de Knausgård levanta uma série de pontos interessantes, principalmente sobre como a historiografia sintetizou os eventos terríveis do século XX na figura de Hitler. Não existe nenhum interesse de absolvição do ditador, tampouco a relativização do regime. O que se pratica é um questionamento acerca do mito do mal e o seu desmantelamento atentando para a condição vulgar do déspota — um sinal de alerta para o perigo de sua sagração ou do estabelecimento de outros de natureza semelhante.
 
Noutra direção, o escritor oferece como a sua Minha luta finda por se estabelecer enviesadamente numa maneira de corromper o modelo Mein Kampf; o que lemos é exatamente o contrário de uma autobiografia autocentrada num eu que ignora abrir-se para o outro a fim de se destacar como o predestinado, tal como analisa. O romancista examina, assim, como esse ideário do ditador se consolida não apenas pelos feitos condenáveis, mas sobretudo pelo tratamento que a história o tem reservado, demovendo a natureza de um sujeito comum pela de uma potência do horror, alçando-o, portanto, ao condenável pedestal. Nem todos que em algum momento se fizeram fascinados com os tempos escuros do nazifascismo desenvolveram o sentido negativo do regime. O fascínio reside na tênue fronteira entre o horror e a admiração.
 
Parece que, por vezes, esses narradores se confundem; ambos são espécies de Narciso, mas no caso do romance, a introversão, a centralidade do mundo no eu, é outra porque reafirma a exata condição do homem comum cujo único anseio é por uma irmanação com os demais. A manifestação desse desejo, diríamos, é o próprio norte de existência do romance de Knausgård e essa obsessão encontra-se marcada repetidas vezes em O fim. Vale citar dois exemplos: o seu encontro com a geografia possível para o cenário de Hamlet e como a partir disso, o escritor se indaga sobre como Shakespeare e os que vieram depois se encontram ligados sem quaisquer barreiras temporais, ainda que a segunda metade do século XX tenha significado uma ruptura radical com o passado. O dilema examinado pelo bardo inglês na sua tragédia é o mesmo do nosso tempo.
 
Outro acontecimento é a visita que faz a Jon Olav. Além do registro dos acontecimentos da viagem e da pequena estadia na propriedade do primo, chama atenção do narrador a indescritível beleza do dia (o de quando se sentiu pela primeira vez “como um pai de verdade”) e como isso contrasta com a melancolia de Magne, uma das personagens no círculo de celebração. Ao estabelecer essa contraposição, a narrativa recorda que o sol que produz a sensação de bem-estar e alegria para o narrador é o mesmo descrito por Broch ou pintado por Turner ou ainda o motivo para uma passagem da Eneida. Note que em todos os casos, o elemento essencial para irmanação é a arte.



Nesse sentido, todo o périplo pela história de formação da civilização ocidental, remontada não apenas no século XX, mas desde suas bases míticas até o presente administrado pela ciência, centrando-se no tema da violência, especificamente nos horrores da Segunda Guerra, cumpre um papel para o romance: de como a arte foi paulatinamente substituída por outros aparatos, mas nenhum deles conseguiu ocupar o que só é possível de alcançar pela articulação dos materiais da experiência, isto é, o vivido e o inventado. É singular sua compreensão sobre a matéria do romance. Diz: “O romance é a forma da vida pequena, e quando não é assim o romance está mentindo e não é um romance de verdade, porque não existe um eu que não seja também pequeno.” A questão é que toda sua perquirição exaustiva pela história caberia nos limites de um calembour.
 
Ao revelar os falseamentos e as adulterações do primeiro Minha luta, o escritor norueguês amplia seu argumento a partir da celeuma instituída pelo tio Gunnar — ele é, como dissemos, o principal elemento que ameaça ruir com o projeto do sobrinho. Esse gesto é investigado por outras perspectivas que não as de Knausgård, ainda que todas estejam submetidas ao seu ponto de vista. Chamará atenção do leitor os impasses que começam na incapacidade da parte acusadora em compreender o verossimilhante, passam pela fluidez das fronteiras da autoficção e findam nas implicações da lei — outra vez, desde que a justiça é a justiça — com a literatura. Se com Madame Bovary ou Ulysses, para recordar dois casos mais citados, os livros foram parar nos tribunais acusados de imorais, agora, o aparato jurídico sempre capaz de servir a deus e ao diabo, atua caprichosamente na desnaturalização do literário, achatando a liberdade criativa aos limites do que não é imoral ou ilegal.
 
Em O fim, são mostradas algumas das alternativas encontradas pelo escritor a fim de satisfazer os gostos da lei. Se essas imposições modificam o seu interesse pela evidenciação da realidade em seu estado mais puro — um gesto que se encontra plenamente conseguido na arte entre os gregos, tal como observa —, os ajustes ampliam a rede de sentidos do romance. Um exemplo, é a impossibilidade de nomear o pai, o outro essencial para o funcionamento da narrativa, porque dele e no seu entorno tudo se desenvolve. Mesmo indiretamente. Podemos reparar que atenção desenvolvida pelo narrador sobre a educação e o convívio com os três filhos resulta das dispendiosas dificuldades na sua relação com o pai. Acontece que ao não o nomear, o pai se torna uma figura e o dilema se universaliza. Individualizado, se universalizaria da mesma forma, mas indefinido, o drama entra no campo da imagem, do símbolo, o campo exclusivamente literário — esse cuja passagem no romance agora lido se encontra de alguma maneira afetada pelo excesso de presente.
 
O conflito entre a verdade documental e a invenção é apenas a superfície do dilema com o tio Gunnar. Ele obriga o escritor a abrir a caixa de funcionamento do seu próprio universo para admitir que a forma autobiográfica não responde pela noção de verdade, como acreditam os incautos leitores de agora viciados na ideia de realidade na literatura, quando esta é exatamente o ponto fora desse limite. Esse estágio puro da verdade — como acredita Gunnar e mesmo Knausgård quando mergulha no esforço de estruturação do seu passado — será sempre variável porque variável é o ponto de vista de quem conta. O gesto do tio, uma figura que pode muito bem ser lida como o leitor desprovido de imaginação, desestabiliza a natureza do já-dito. Ao sopesar alguns dos acontecimentos relatados nas partes anteriores do romance, abalam-se as bases da fortaleza desse narrador, a capacidade de registrar minimamente o acontecido. Obviamente que a memória de elefante é o primeiro indício de invenção, mas quando encontramos esse narrador agora em questionamento sobre o narrado, se o que contou foi mesmo como narrou, desfaz-se também a ideia de verdade legitimada. Ao duvidar do que escreveu, abala-se ainda certa imagem da memória como um lugar do absoluto; a memória é interstício entre o acontecido e o inventado.
 
Com isso, O fim pode ser lido a partir de duas constatações: a literatura como extensão de nós mesmos (algo que se confirma em Minha luta) e como resultado da impossibilidade de separar o factual e o ficcional porque são essas as dimensões próprias do literário e também as que nos definem. Os novos aparelhos de ficcionalização — como as redes sociais — que bipartem a realidade entre o físico e o virtual são um claro exemplo disso. É nesse contexto que Knausgård celebra o autobiográfico como a justa medida para os tempos que correm, reafirmando a previsão sobre o futuro da literatura estabelecida por Goethe; quando tudo “ou é ficção ou é visto como ficção, o dever do romancista já não pode ser o de escrever mais ficções”, sustenta o escritor norueguês. Talvez esteja nisso uma explicação para como conseguimos nos deixar levar seduzidos por um mundo de irrelevâncias e disso descobrirmos melhor não sobre quem nos apresenta, mas sobre nós mesmos.

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O fim, Karl Ove Knausgård
Guilherme da Silva Braga (Trad.)
Companhia das Letras, 1056p.


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