Machado ganha diferentes vozes em novas traduções de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Por Charles A. Perrone

Diego Rivera. El joven de la estilográfica, 1914.


 
Não é sempre que duas traduções de uma grande obra da literatura ocidental aparecem simultaneamente; contudo, é exatamente isso o que ocorreu com o catálogo do verão de 2020 e a publicação de novas versões em inglês das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Machado foi o presidente inaugural da Academia Brasileira de Letras, e, mais importante, é amplamente considerado o maior escritor de prosa ficcional na América Latina do século XIX, quiçá de todas as épocas. Brás Cubas foi um ponto de virada em sua carreira, marcando um afastamento da narrativa convencional dos romances românticos iniciais rumo a um realismo “sui generis” que não apenas o fez se destacar no Brasil de sua época, mas também o singularizou em meio à maior parte dos seus contemporâneos em qualquer lugar do mundo. A coincidência temporal e o interesse literário compartilhado convidam à comparação e instilam curiosidade acerca da atraente oferta dupla, dando-nos a chance de revisitar com novos olhos essa grande obra.
 
Flora Thomson-DeVeaux, uma jovem estudiosa e tradutora norte-americana que agora vive no Rio de Janeiro, lançou uma edição anotada com muitos elogios pela série Penguin Classics, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, enquanto a dupla do Reino Unido, Margaret Jull Costa e Robin Patterson, publicou Posthumous Memoirs of Brás Cubas pela Liveright. Essas traduções foram precedidas, em décadas anteriores, por outras três versões anglófonas. O título da primeira tradução era — ainda não se sabe por que razão — Epitaph of a Small Winner (1952), feita por William Grossman (1906-1980), cuja breve introdução apresentou a grandiosa metaficção de Machado de Assis para os leitores de língua inglesa. Uma reimpressão de 1991 incluiu uma avaliação crítica de Susan Sontag. Uma segunda e quase desconhecida tradução foi feita, sob o título Posthumous Reminiscences of Braz Cubas, por E. Percy Ellis para o Instituto Brasileiro do Livro (1955), e não teve boa distribuição. A terceira foi um prestigioso empreendimento acadêmico: The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Oxford, 1997) de Gregory Rabassa (1922-2016), o adorado decano da tradução das letras latino-americanas. Este volume inaugural de uma série de novas traduções da ficção machadiana inclui um agudo prefácio de um estudioso residente nos EUA e um posfácio crítico mais extenso de um colega brasileiro.
 
Como uma tradução anotada, o presente título da Penguin é comparável ao seu antecessor da Oxford em intenções acadêmicas. O prefácio de Dave Eggers, em grande parte disponível no site da New Yorker, é típico de um escritor e confirma que, embora tenha reconhecidamente demorado a descobrir Machado, ele compreende com bastante argúcia a mistura essencial de humor e melancolia do mestre. A tradutora Thomson-DeVeaux tem reconhecimento Ivy League (graduou-se em Princeton e fez seu doutorado na Brown) e um amor contagiante pelo romance de Machado, objeto de estudo de sua tese. Ela começou a verter passagens escolhidas de Machado para o inglês quando traduziu uma monografia crítica sobre o autor de um proeminente crítico brasileiro, João Cezar de Castro Rocha (Machado de Assis: Towards a Poetics of Emulation, Michigan State University Press).1 Sua introdução, notas sobre a tradução e as extensas notas finais na edição da Penguin são um deleite. Ela realmente fez seu dever de casa e demonstra verdadeira dedicação ao seu propósito. Na Universidade Brown, ela teve acesso ao acervo machadiano legado pelo já referido Grossman. Thomson-DeVeaux compara seu trabalho ponto por ponto com seus predecessores, por vezes em requintados detalhes, de modo que vemos diante de nós a minúcia da tradução literária profissional. Um aspecto significativo que ela acertadamente destaca é que sua versão mantém as quebras de página para todos os capítulos, seguindo os fascículos originalmente publicados no periódico e o que se fazia nas primeiras edições brasileiras. Ninguém mais faz isso. Dado o jogo tipográfico presente no livro, isso é algo que de fato faz diferença. O mise-en-page dá-se do começo ao fim.
 
A refeitura da Liveright é um trabalho a quatro mãos em inglês britânico. A venerável tradutora principal, Margaret Jull Costa (1949-), tem uma centena de trabalhos de tradução em seu currículo, diversos prêmios, e um jovem pupilo, Robin Patterson, devoto das letras. Juntos eles publicaram recentemente os contos coligidos de Machado de Assis,2 então estavam certamente afiados. Não há muitos aparatos nesta última empreitada, embora a introdução dos tradutores dê uma boa ideia do que o leitor tem em mãos; ela é complementada por uma breve biografia do autor e limitadas notas de rodapé. E nisso vemos a principal diferença quanto à sua contraparte da Penguin; a tradução da Liveright, enquanto uma publicação não universitária, está muito menos preocupada com extras paratextuais, que são mais ou menos valiosos a depender das preocupações e preferências dos consumidores.
 
E como foi possível termos um lançamento duplo? As duas editoras têm escritórios tanto em Nova York como em Londres, mas há mercados distintos, o norte-americano e o britânico/ Commonwealth,3 a se ter em vista. A reputação de Machado tem crescido consistentemente, de modo que ter editores de aquisição nas duas cidades é algo mais aceitável do que nunca. O autor está em domínio público, o que quer dizer que não é preciso se preocupar com licitações por direitos autorais ou permissão de herdeiros. Por algum motivo, a percepção mútua de que era hora de se valer disso é benéfica para nós, leitores anglófonos do mundo.
 
O texto original possui 160 capítulos, variando entre uma e seis páginas cada. A nota inicial “Ao leitor” indaga se o livro é ou não um romance. Ali começa o aspecto extremamente metaliterário das memórias. Invocam-se modelos — Sterne, Xavier de Maistre, o engenhoso romântico português Garrett — e um desfile de inumeráveis alusões tem início. Nesse aspecto, as notas de Thomson-DeVeaux são bastante proveitosas. Os capítulos de Machado são escritos com a “pena da galhofa” e “a tinta de melancolia”, e esse dificultoso equilíbrio é o principal desafio para os tradutores, que, no geral, responderam admiravelmente ao chamado. Cabe, contudo, assinalar uma imperfeição. No final do capítulo um, o narrador refere-se à sua própria ideia de um emplasto contra a melancolia como “útil” (useful), que foi vertido pelos tradutores britânicos como “futile”, uma inversão infeliz que pode afetar a interpretação.
 
O narrador é tagarela, errante, imprevisível. Há mais comentário do que ação diegética, a antiquada narração discursiva. De saída, cabe a pergunta: quando a história começa? Ela falará de nascimento, crescimento, namoricos, decadência e morte, com uma pitada de romance de formação e ampla comédia de costumes. Autorreferencialidade e gracejos abundam. O “capítulo” sobre Adão e Eva é todo feito de elipses e pontos (! ?); em outro temos apenas linhas de pontos finais (......). Um segmento-chave é chamado “The flaw in the book” [Thomson-DeVeaux], ou “The problem with this book” [Jull Costa and Patterson] (O original “senão” também foi traduzido como “defect.”).4
 
Esta história de um homem incapaz de se comprometer com o amor, a carreira ou a linguagem direta tem infinitas especulações post mortem, sobretudo quanto a escrever. Um intérprete diz que são tantas que o leitor perde a conta. Mas não o crítico perspicaz. Em Machado de Assis and narrative Theory: Language, Imitation, Art, and Verisimilitude in the Last Six Novels (Bucknell University Press, 2019), Earl E. Fitz dedica seu primeiro capítulo a Brás Cubas e ao início da autoconsciente “nova narrativa” de Machado. Ele enumera dezoito capítulos nos quais o autor-narrador se refere à sua forma original de escrever. Este é o “romance autoconsciente” definitivo de Machado. A palavra “author” aparece sete vezes, “writingonze”, e “reader” quarenta e oito. O indicativo conta.5
 
Três exemplos de tradução comparada ilustrarão o que pode distinguir essas duas versões, assim como as anteriores. O breve discurso inicial de Brás Cubas aos leitores termina com um piparote. Os tradutores vertem esse gesto como um estalar de dedos, exceto Thomson-DeVeaux. Em uma nota, ela cita o equivalente histórico mais próximo, “fillip”, mas explica que a palavra é desconhecida e que “flick” seria melhor. De fato, essa palavra comunica melhor a desdenhosa atitude em questão. Esse é um exemplo da captura de sutilezas da tradutora que recebe louvores nas avaliações dos especialistas. O conceito organizacional do romance é o de que o autor/memorialista/narrador está morto, escrevendo do túmulo. Assim, no capítulo inicial, ele precisa explicar sua peculiar situação. No original: “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Uma glosa literal, com viés etimológico e não idiomática: “I am not properly an author [who is] defunct, but a defunct [who is an] author.” Como capturar este engenhoso encapsulamento em inglês moderno com um sabor novecentista? Grossman escreveu: “I am a deceased writer not in the sense of one who has written and is now deceased, but in the sense of one who has died and is now writing.”6 Essa versão comunica a ideia, mas sacrifica qualquer anseio de concisão. Por sua vez, Rabassa traduziu com as necessárias orações substantivas: “I am not exactly a writer who is dead but a dead man who is a writer.”7 Por certo uma opção mais breve e harmoniosa. Thomson-DeVeaux, a propósito, esmiuça no rodapé toda a questão e oferece: “I am not exactly an author recently deceased but a deceased man recently an author.”8 “Deceased” enquanto escolha vocabular está mais próximo de “defunto”, enquanto “recently”, embora adequado, é um acréscimo. Por fim, Jull Costa e Patterson escrevem: “I am not so much a writer who has died, as a dead man who has decided to write.”9 A atribuição volitiva desta última versão, mais uma vez, é perfeitamente cabível, mas trata-se de uma escolha dos tradutores, e não rigorosamente de um semantema presente na passagem original. Essas comparações devem dar aos leitores uma ideia do tipo de dificuldades com as quais todos os tradutores podem se defrontar.
 
Uma outra locução emblemática é a última linha do romance, frequentemente citada para demonstrar o pessimismo de Machado. “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Grossman: “I had no progeny, I transmitted to no one the legacy of our misery.”10 Rabassa: “I had no children, I haven’t transmitted the legacy of our misery to any creature.”11 Jull Costa e Patterson: “I did not have children, and thus did not bequeath to any crature the legacy of our misery.”12 Thomson-DeVeaux: “I had no children; I did not bequeath to any crature the legacy of our misery.”13 Se é a última palavra que carrega a maior parte do peso, então qualquer interpretação pessimista haveria de preferir “misery” como palavra derradeira, como o fizeram quatro das traduções. A palavra “misery”, aliás, aparece dez vezes ao longo das memórias.14 Outra questão aqui é o efeito relativo de “transmit” e “bequeath”. Esta última é uma das acepções do verbo original (a frase de Machado é assim citada no Aurélio, o dicionário brasileiro padrão), e acaba por acentuar a ideia de uma herança malfadada, mas “transmit” tem a vantagem de estar igualmente associada à disseminação de uma doença, o que se adequa ao clima joco-sombrio.
 
Longe de mim encerrar com uma nota desalentadora como essa, então celebremos o enorme progresso presente no surgimento dessas duas esmeradas traduções do brilhante texto protomodernista de Machado. Lá nos anos oitenta, um jovem professor nos EUA especializado na ficção do mestre brasileiro submeteu um artigo de crítica para uma publicação acadêmica. Eles responderam elogiando a qualidade do estudo, mas rejeitando a submissão porque se tratava de um “autor desconhecido”. Essa reação não diz grande coisa quanto ao amplo conhecimento comparativo dos editores envolvidos, mas é perfeitamente indicativa da situação naquela época. Só imagine como seria enviar um estudo sobre uma obra de Cervantes, Flaubert, James, Kafka Borges – todos estes evocados por proeminentes escritores em anos recentes para dar uma ideia da merecida estatura de Machado – apenas para vê-lo devolvido devido à falta de familiaridade dos jurados acerca do universalmente reconhecido escritor sob escrutínio. Para Machado, o ponto de virada na consciência e valorização internacional foi o brilhante texto de 1990 de Sontag publicado na New Yorker,15 reimpresso como prefácio à reedição de Grossman. Os volumes atuais citam todo tipo de louvores a Machado, que há de crescer ainda mais com essas bem-vindas adições à bibliografia. A versão da Liveright é uma publicação comercial, e não um livro acadêmico, como fora o volume da Oxford em 1997. A de Thomson-DeVeaux, feita a partir de uma tese,16 é uma anomalia, uma publicação comercial dotada de todas as marcas de uma edição crítica. Parece que nós leitores podemos ter o melhor dos dois mundos: um lançamento britânico por um dos maiores nomes no campo da tradução de espanhol/português e seu talentoso parceiro, e uma tradução norte-americana por uma recém-chegada de esplêndido talento que pesquisa e escreve como experimentada veterana. Potenciais clientes e leitores não precisam se preocupar em escolher uma ou outra: basta ir atrás das duas. Dobre o seu prazer. Machado de Assis nunca é demais, seja no original ou em traduções triunfantes.

 
Notas:
 
1 Edição brasileira: Machado de Assis: por uma poética da emulação (Civilização Brasileira, 2013).
2 The Collected Stories of Machado de Assis (Liveright, 2018).
 
3 Commonwealth ou Comunidade das Nações é um grupo de cooperação formado pelo Reino Unido e suas ex-colônias, abrangendo mais de 50 países, com o intuito de promover objetivos comuns de democracia e desenvolvimento.
 
4 O título original do capítulo 71 é “O senão do livro”
 
5 Não fica claro se a contagem foi feita no original ou em uma tradução específica. Usando recursos digitais e tomando por base a obra original, minhas contas foram um tanto diferentes, mas isso não parece prejudicar o argumento do resenhista.
 
6 Algo como: “Eu sou um autor defunto não no sentido de alguém que escrevia e agora é defunto, mas no sentido de alguém que morreu e agora escreve.”
 
7 Algo como: “Não sou exatamente um escritor que está morto mas um morto que escreve.”
 
8 Algo como: “Não sou exatamente um autor recém-defunto mas um defunto recém-autor.”
 
9 Algo como: “Não sou tanto um escritor que morreu quanto um morto que decidiu escrever.”
 
10 Algo como: “Não tive progênie, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria.”
 
11 Algo como: “Não tive filhos, não transmiti o legado de nossa miséria a criatura alguma.”
 
12 Algo como: “Não tive filhos, e assim não investi criatura alguma com o legado da nossa miséria.”
 
13 Algo como: “Não tive filhos; não investi criatura alguma com o legado da nossa miséria.”
 
14 Pelas minhas contas, são 14 ocorrências, sendo duas no plural.
 
15 Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/1990/05/07/afterlives-the-case-of-machado-de-assis
 
16 Aqui o original diz “thesis”, que, a rigor, equivale à nossa “dissertação de mestrado”, mas o próprio texto já nos informara que o livro fora assunto da tese de doutorado da tradutora.


* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para a resenha da edição de junho de 2020 da revista Words without Borders, publicada aqui.
 

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