De Afrodite a Vênus: reimaginando o mito da divindade feminina

Por Giovanni Villavicencio
 
Ó mãe dos filhos de Enéas; volúpia de homens e deuses,
[...]
a ti quero de sócia na escrita desses versos,
que sobre a natureza das coisas tento compor
 
— Lucrécio*


Vênus deitada numa concha. Afresco de Pompeia.

 
Ao nos aprofundarmos na literatura greco-romana, a primeira coisa que descobrimos é a importância dada às deusas no interior dessas sociedades. Essa cosmovisão foi posteriormente rejeitada pelo cristianismo, pois embora a figura de uma divindade feminina tenha sido preservada, ela perdeu sua condição de deusa para ocupar um lugar secundário como a mãe de Cristo. Hoje gostaria de refletir sobre as continuidades e rupturas do mito da divindade feminina na antiguidade clássica, abordando o caso da deusa grega Afrodite e sua equivalente romana, Vênus, através de uma série de “reimaginações” de textos clássicos. Embora ambas as tradições vissem essa divindade como a deusa do amor, cada uma deu a ela traços específicos que se escondem sob a aparente continuidade desse mito. Vamos começar reimaginando uma passagem da Teogonia de Hesíodo:
 
Minha história remonta a um passado muito distante: há milhares de anos, antes que o homem europeu invadisse a América e levasse suas grandes riquezas; muito antes da pandemia e da internet. Tudo começou numa noite escura quando Urano, o deus do céu, resolveu sair em busca de Gaia com a intenção de possuí-la. Foi então que apareceu Cronos, filho de Urano e deus do tempo, que pegou uma foice com a mão direita e cortou impiedosamente os órgãos genitais de seu pai. A ação de Cronos desperdiçou inúmeras gotas de sangue que o vento arrastou para a terra, dando origem às Ninfas. Imediatamente depois, o filho de Urano jogou no oceano o troféu que havia arrancado do corpo de seu pai. Por um momento este singrou entre o balanço das ondas até formar uma linda espuma branca que deu lugar ao meu nascimento. Meu nome é Afrodite. Eu sou a deusa do amor, beleza e paixão. Em meus primeiros momentos de vida, saí do mar e cheguei à costa de Citera, uma ilha no sudeste do Peloponeso. Quando meus pés tocaram a areia, lindas ervas em tons verdes vibrantes brotaram ao meu redor.
 
A Teogonia, texto que inspirou estas linhas, é um dos primeiros documentos sobre Afrodite que conhecemos. Seu autor foi um proprietário rural que se tornou poeta e um dos pioneiros da escrita mitológica grega. Dizem que ele foi morto e que os golfinhos cuidaram de seu cadáver à beira-mar. Partindo desse pressuposto, é paradoxal pensar que foi no oceano que por um lado nasceu Afrodite e por outro Hesíodo deixou de existir.
 
Na Teogonia, o poeta grego capturou a história dos deuses e propôs uma explicação mística do universo. Na Ilíada, texto quase contemporâneo de Hesíodo, Homero — ou o grupo de bardos anônimos que conhecemos por esse nome — apresenta uma versão diferente da origem da deusa do amor. Para Homero, Afrodite é filha de Zeus e Dione.
 
Essa divergência sugere que estamos lidando com duas divindades opostas que mais tarde seriam combinadas na mesma figura. No Banquete, Platão aborda esta questão. Por um lado, diz-nos o filósofo, temos a Afrodite de Hesíodo, a filha órfã de Urano, a quem Platão se refere como Afrodite Urania. Por outro lado, temos a deusa homérica, filha de Zeus e Dione, a quem Platão chama de Afrodite Pandêmia, e que ele considera uma deusa muito mais jovem.
 
Mas vamos continuar reimaginando a história da deusa, tomando como ponto de partida o relato de Homero sobre a biografia da deusa na Odisseia:
 
Poucos dias depois do meu nascimento, fui levada ao Olimpo para viver com os deuses e as deusas. Os primeiros ficaram maravilhados com a minha beleza, enquanto os segundos me olharam com inveja. Atena e Hera sabiam que nunca poderiam competir com a minha beleza. Rejeitei o amor de Zeus e ele me castigou, obrigando-me a casar com o mais feio de seus filhos, Hefesto. Isso me levou a fugir várias vezes do Olimpo, em busca de uma amante que merecesse minha beleza. Na terra dos homens encontrei Adonis e Anquises, de quem fiz meus amantes. Porém, o ser que mais amei foi Ares, o deus da guerra e das batalhas, que roubou meu coração com sua coragem e selvageria. Ele retribuiu meu amor tornando-se meu amante favorito por toda a eternidade. Algum tempo depois tive meu primeiro filho, Eros, o deus do amor. Ele herdou minha beleza e sensualidade, gosto de pensar que o pai dele é Ares, mas também pode ser filho de Zeus ou Hermes, já que eles também foram meus amantes.
 
Séculos depois, os romanos adotaram a figura de Afrodite com outro nome. Sulpícia, poeta que viveu durante o reinado de Augusto em Roma, introduziu oficialmente as mulheres do império ao culto de Vênus, embora seja provável que os ritos dedicados a esta divindade tenham sido realizados muito antes naqueles territórios. Embora Vênus retivesse os principais atributos de sua contraparte grega, ela adquiriu um papel mais importante que o de sua antecessora, pois não era apenas a deusa do amor, mas também a progenitora da raça romana. Outra representação importante da deusa aparece nas Metamorfoses de Ovídio, um poeta que, segundo a estudiosa Nora Clark, escreveu na época do nascimento de Cristo. Seguindo esta autora, nos textos de Ovídio encontramos uma clara ligação entre as esferas pública e privada através da celebração do festival de Vênus. A sociedade romana acreditava que deixar de adorar a divindade de seus pais poderia perturbar Vênus, que não hesitaria em puni-los. A fúria da deusa do amor foi captada na épica Tebaida, escrita por Públio Estácio cerca de uma década antes de Cristo, na qual o autor narra que Vênus se opôs à guerra em Tebas, enquanto Marte — a versão romana de Ares — incitou o conflito entre os mortais.
 
Segundo Estácio, as ações de Marte durante a guerra tebana fizeram com que os habitantes da ilha de Lemnos negligenciassem os altares da deusa do amor. Vênus, furiosa, punia as mulheres da ilha fazendo com que seus corpos exalassem odores horríveis, o que levava seus maridos a buscar consolo nos braços de suas escravas. Como se isso não bastasse, a deusa também obrigou as mulheres a matarem todos os homens da ilha, para que eles também fossem punidos por não cumprirem com sua devoção.
 
Sigamos agora com nossa biografia reimaginada da deusa, inspirando-nos desta vez em Virgílio. Não sem antes confessar que nas linhas seguintes me afastei um pouco das fontes clássicas para dar prioridade à minha interpretação pessoal da história de Afrodite:
 
Uma vez desfrutei de uma bela noite de paixão com o mortal Anquises. Os romanos acreditavam que os deuses do Olimpo me castigaram ao descobrir meu caso secreto com Marte, obrigando-me a cometer esse ato de paixão. A verdade é algo diferente do que se conta. Depois do meu casamento com Hefesto, decidi que nenhum deus ou homem jamais influenciaria meu livre arbítrio ou me forçaria a fazer algo que não queria. Sou eu quem decide quem merece meu corpo e romance. Dormi com Anquises porque quis. Como resultado de nossa noite de paixão, nasceu Eneias, que se tornaria um herói da batalha de Tróia que fugiu com seu povo para encontrar um novo lar longe da guerra.
 
Na Eneida de Virgílio, narra-se que o destino de Enéias era estabelecer o Império Romano. Daí a importância dada a Vênus como progenitora de Roma. A estudiosa Bettany Hughes menciona que a adoção do culto à deusa do amor teve um pano de fundo político: a colonização dos domínios gregos de Afrodite e sua conversão ao culto de Vênus fazia parte da estratégia romana de expandir os limites de seu império. Durante esse período, Júlio César aproveitou sua suposta associação genealógica com Vênus, implorando a ela que o ajudasse a vencer a Batalha de Farsalos em 48 a. C. Pouco depois, em 26 de setembro de 46 a. C., quando Júlio César assumiu o cargo de tirano, ordenou a construção de um enorme templo dedicado a Vênus, dentro do qual foi colocada uma estátua de sua amante, Cleópatra do Egito, representando a deusa do amor.
 
Após a revolução cristã, a cada vez mais poderosa igreja romana tentou exterminar o culto a Vênus, destruindo seus templos para construir igrejas sobre seus restos. Além disso, os cristãos primitivos atribuíam natureza demoníaca às representações da deusa do amor e corrompiam sua imagem em sua literatura, como é o caso de Coluto, poeta épico do século V d. C., que em uma de suas obras descreveu Vênus como uma mulher perversa que desfilava sem vergonha com o corpo nu.
 
No entanto, o cristianismo não conseguiu fazer as pessoas esquecerem uma deusa que eles adoravam há mais de quatro mil anos. Os humanos precisavam de uma divindade feminina para se sentirem completos. Segundo a estudiosa Bettany Hughes, a igreja preencheu esse vazio com a devoção à Virgem Maria. Afrodite voltou a se transformar de acordo com o contexto da época, adotando a figura da mãe de Cristo. As estudiosas Anne Baring e Jules Cashford mencionam que o nome Maria vem do latim mare, que significa mar, refletindo uma conexão entre a deusa que nasceu da espuma do oceano e a virgem cristã. No entanto, ao longo do caminho, a divindade perdeu seu papel de deusa para se tornar uma figura secundária, subserviente a um único deus.
 
Terminemos, então, nossa narrativa reimaginada:
 
Apesar de minha imagem ter sido profanada, minhas estátuas destruídas e meus templos demolidos, consegui sobreviver à imposição do cristianismo adotando o papel da Virgem Maria. Em tempos mais recentes, meu culto renasceu. As bruxas modernas que praticam o neopaganismo continuam a adorar as deusas gregas, sendo Hécate e eu as favoritas de sua devoção. Na astrologia, estou associada ao planeta que leva meu nome romano, Vênus, que rege as relações pessoais dos humanos. No tarot estou associada à carta da Imperatriz, que representa a criatividade, o poder feminino, a abundância e a sensualidade. Na cultura popular, funciono como um símbolo eterno de beleza e divindade, incorporado em inúmeras obras de arte. Continuo a ser a deusa do amor. Eu estive desde o início dos tempos e continuarei a estar enquanto os mortais continuarem a amar uns aos outros.
 
 
Referências²
 
Balmer, J. (org.) Classical women poets. Bloodaxe, Newcastle-upon-Tyne, 996.
Baring A.; Cashford, J. The Myth of the Goddess. Evolution of an Image. Penguin Books, 1993.
Clark, N. Aphrodite and Venus in Myth and Mimesis. Under the Sign of Nature. Cambridge Scholars Publ., Newcastle upon Tynem 2015.
Colluthus. Rape of Helen, from the Greek of Coluthus, with Miscellaneous Notes. Gale Ecco, Print Editions, 2018.
Gildenhard, I.; Maro, P. B. Virgil, Aeneid, 4.1-299: Latin Text, Study Questions, Commentary and Interpretative Essay. Open Book Publishers, Cambridge, 2012.
Hesíodo. Teogonia. Trad. Christian Werner. Hedra, 2022.
Homero. Ilíada. Trad. Trajano Vieira. Editora 34, 2020.
Homero. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. Editora 34, 2014.
Hughes, B. Venus and Aphrodite: a biography of desire. First US Edition, Basic Books, 2020.
Lucrécio. Sobre a natureza das coisas. Trad. Rodrigo Tadeu Gonçalves. Autêntica, 2021.
Ovídio. Metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. Editora 34, 2017.
Platão. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza, 2016.
Statius; Papinius P.; Melville; A. D. Thebaid. The World’s Classics, Oxford University Press, 1995.
 
 
Notas da tradução
 
1 Versos de “Invocação a Vênus” (De Rerum Natura, Livro 1, vv. 1, 24-25). Tradução de Fabio Malavoglia.
 
2 Substituímos, do original, as referências que os leitores encontram traduzidas e publicadas no Brasil.
 
* Este texto é a tradução livre para “De Afrodita a Venus: reimaginando el mito de la divinidad femenina”, publicado aqui, em Nexos.

Comentários

Que texto interessante e belo!

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