Memória de elefante, de António Lobo Antunes

Por Gabriella Kelmer


António Lobo Antunes. Foto: Basso Cannarsa


Ser o uso de imagens o caminho natural da poesia não consiste em nenhuma surpresa para qualquer amante da literatura. Também já não se pode dizer inovadora sua utilização na prosa, a partir de uma linha de criação estética, datada das primeiras décadas do século passado, que se afasta do regime de representação e adota o lirismo de modo a conceber aquilo que a narração racionalista não poderia abarcar: uma essencialidade humana movediça ou inexistente; as implosões e limitações da linguagem; o horror absoluto e silencioso de determinadas experiências. Em Memória de elefante, publicação de estreia de António Lobo Antunes, o emprego de imagens é fundamental, além de francamente curioso, por sua prolixidade e repetição.
 
O protagonista da narrativa, um psiquiatra retornado da guerra colonial em Angola (designações também atribuíveis ao escritor, cuja produção autobiográfica se estende ainda por outros romances), pertence “à classe dos mansos perdidos refugiados em tábuas a sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde ancorar as taquicardias da angústia” (Antunes, 2009, p. 11). Os pacientes do hospital psiquiátrico em que trabalha são “símios vagarosos moendo frases desconexas, a encalharem ao acaso nos buracos de curro em que dormiam” (Antunes, 2009, p. 39). A solidão vivenciada desde a separação conjugal tem-no “como o coronel de García Márquez, habitado pela solidão sem remédio e pelos cogumelos fosforescentes das tripas, aguardando notícias que não chegavam, que não chegariam jamais, e apodrecendo lentamente nessa espera inútil alimentada de um vago milho de promessas” (Antunes, 2009, p. 136). O futuro é um “ralo escuro e sôfrego a sugar-lhe o corpo pela garganta ferrugenta, trajeto de cambulhada de esgoto em esgoto rumo ao mar intratável da velhice deixando na areia da vazante os dentes e os cabelos das decrepitudes sem majestade” (Antunes, 2009, p. 70). A vida tornou-se “uma camisa de forças em que se lhe tornava impossível mover-se, atado pelas correias do desgosto de si próprio e do isolamento que o impregnava de uma amarga tristeza sem manhãs” (Antunes, 2009, p. 88).
 
Todos esses excertos são constituídos pelo desdobramento de imagens em outras imagens, numa aparente desordem pela qual se elaboram inclusive personagens secundárias e eventos aparentemente insignificantes. Ler o romance é, por isso, um longo exercício de visualização das pontes que vinculam uma coisa à outra e depois à outra, sucessivamente. É por meio dessa construção que se descortina um protagonista — ora personagem, eventualmente narrador — em sofrimento psíquico do qual resulta um torpor incapacitante.
 
Como técnica narrativa, podem-se atribuir algumas motivações à configuração imagética: a busca do protagonista por designações — de si próprio, do mundo — que só podem ser alusivas, pela precedência assumida pela subjetividade na narração; a confusão identitária na qual nem o casamento, nem a profissão, nem a nacionalidade fazem mais sentido, sendo a tentativa de fixar a realidade por meio de aproximações a comprovação do desconforto generalizado frente às referências que ela ora apresentara; o tateamento verbal da personagem (ou do autor) cujos escritos vivem ainda soterrados em gavetas, inseguros de si mesmos, para os quais o lirismo, as citações literárias e o perscrutamento das modalidades expressivas se constituem como viabilização do fazer artístico; e a impossibilidade das resoluções definitivas, entrevistas no adiamento proposital do fim dos períodos e na intangibilidade da unicidade das imagens, em construções sem vírgulas ou pausas. De maneiras diferentes, essas interpretações se vinculam a um momento de esfacelamento que, se oferta matéria ao romance, flagra a ruína de uma concepção de mundo, bem como a desintegração do indivíduo.
 
“O psiquiatra recostou-se para trás na cadeira e procurou no bolso o terceiro cigarro dessa sessão: será que me castigo assim, meditou, e se o faço porque diabo o faço? e em nome de que nebuloso e, para mim, inatingível pecado? Ou simplesmente faço-o por de mais nada ser capaz e constituir esse o meu peculiar modo de me sentir no mundo, como um alcoólico tem de beber para se certificar que existe ou um marialva tem de fornicar para se assegurar que é homem? E acabamos fatalmente por desembocar na pergunta essencial, que se encontra por detrás de todas as outras quando todas as outras se afastam ou foram afastadas e que é, se me permitem, Quem Sou Eu? Interrogo-me e a resposta consiste, obcecantemente, invariavelmente, assim: Uma Merda.” (Antunes, 2009, p. 119)




A narrativa acompanha o médico psiquiatra durante um dia de sua vida, desde o momento em que ele adentra o hospital onde trabalha em Lisboa até o amanhecer do dia seguinte, que assiste da varanda de seu apartamento. Durante essas vinte e quatro horas, já comparadas à odisseia de Leopold Bloom no Ulysses, de James Joyce, a volta à casa é repetidamente adiada, agarrando-se a personagem às mecânicas da rotina e à oportunidade dos encontros para evitar as ausências do ambiente doméstico. Recém-separado e mártir de afastamentos mantidos por ele mesmo, transita pela capital portuguesa sem se encontrar nas estátuas, no porto, nas praças, embora não se possa duvidar que sua perspectiva, embebida em depressão ora revelada, lance sombra sobre as avenidas, os vendedores de flores, os catadores de iscas. A melancolia da personagem, adensada pela sensação de não-pertencimento do encontro imperfeito com uma pátria transformada (talvez mais pelo observador do que em si mesma), reelabora o traço histórico da Portugal que deixara, na qual vivem ainda os resquícios do fascismo apenas recentemente expurgado.
 
Também é fundamental à compreensão do presente como transitoriedade que não comporta mais as escolhas do passado, como a pátria deixada para trás pela Angola da guerra colonial, do racismo explícito, do suicídio testemunhado, para a qual, como médico, a personagem central foi enviada. Por um lado, a estadia no país africano modifica sua relação com o tempo, com a própria nacionalidade; por outro, há marcas, ainda não completamente elaboradas (o que ocorrerá mais decididamente em Os cus de Judas, próximo romance do autor), em que se entrevê o horror e a violência aos quais ficou ele exposto. Se não se pode afirmar que a guerra foi a única responsável pela impossibilidade de retorno aos papéis de outrora, considerada a sugestão de um homem que tinha seus questionamentos e suas impropriedades muito antes de embarcar rumo à Angola, é a partir dela que se pode situar a incapacidade de gerir os acúmulos de uma vida inteira, de repente transformados, na urgência da desconstrução, em enclausuramentos insuportáveis.
 
Sem forças para pavimentar vias alternativas, é nesse momento — entre a fuga de tudo que conheceu e a projeção de um novo futuro — que flagramos o protagonista. Sua movimentação pela cidade esconde um imobilismo exasperante, de modo semelhante à maneira com que sua disposição verborrágica, sua acidez humorística nas interações com o outro, ocultam uma dor profunda. Fica por vezes o leitor repartido entre a compaixão frente ao genuíno sofrimento e a impaciência com os declarados subterfúgios, com a performática autopiedade e com a eventual e assumida misoginia da personagem. Ainda assim, é impossível duvidar do desespero que ressoa em sua absoluta confusão ou da urgência das diferenciações que estabeleceu entre si mesmo e a burguesia de onde veio. Psiquiatra antimanicomial, trabalha com pacientes internados compulsória ou voluntariamente; marido apaixonado, pai devoto, abandonou conscientemente esposa e filhas; filho carente do amor materno e das conexões familiares, não sabe se fazer entender, nem ouvir, por aqueles que repartem com ele o sangue; avesso à ditadura, não vê no seu fim a solução para os problemas do país, em que Salazar ainda vive, latente. Seus valores e ideias, assim como suas mais essenciais emoções, são insuficientes para romperem a inércia e dirimirem a ruptura que condenou todos os aspectos de sua vida.
 
“Sozinho na noite da rua Augusto Gil, sentado no carro de motor desligado e luzes apagadas, o psiquiatra apoiou as mãos no volante e começou a chorar: fazia os possíveis para não emitir nenhum som, de modo que os ombros se lhe sacudiam como os das actrizes do cinema mudo, escondendo os caracóis e as lágrimas no abraço de um avô de barbas: Porra porra porra porra porra, dizia ele no interior de si mesmo, porque não achava dentro de mim outras palavras que não fossem essas, espécie de débil protesto contra a tristeza cerrada que me enchia. Sentia-me muito indefeso e muito só e sem vontade, agora, de chamar por ninguém porque (sabia-o) há travessias que só se podem efectuar sozinho, sem ajudas, ainda que correndo riscos de ir a pique numa dessas madrugadas de insónia que nos tornam Pedro e Inês em cripta de Alcobaça, jacentes de pedra até ao fim do mundo.” (Antunes, 2009, p. 123)
 
O recurso narrativo utilizado a princípio é o narrador em terceira pessoa, que cede a interlocução às personagens em instâncias marcadas com travessão ou em parágrafos inteiros cedidos ao protagonista, marcado apenas pelo verbo de dizer (“disse o psiquiatra”, “repetiu ele”). À medida que o romance evolui, no entanto, a primeira pessoa ganha terreno. Os parágrafos que se iniciam com a voz do médico passam a produzir um efeito de atenuação dos limites estabelecidos entre narrador e personagem; sombreia a vinculação entre os dois a falibilidade da manutenção da distância objetal entre eles. O último capítulo é inteiramente em primeira pessoa, enfim revelada em sua inteireza. Embora o efeito seja interessante à construção romanesca, ele também parece consistir ainda em uma busca pela melhor dicção artística nos deslizes entre pessoas gramaticais e no falseamento evidente da terceira pessoa (impasse inexistente nos romances seguintes).
 
Memória de elefante conduz à evidenciação das dores, psiquiátricas, existenciais e nacionais, vivenciadas em um momento central à história portuguesa: a retomada da democracia no país, em 1974, a partir da Revolução dos Cravos. Publicada em 1979, a obra aponta, a partir de uma perspectiva individual, para as impossibilidades e o trauma que se ocultam sob a aparente vitória histórica. Além dessa motivação inicial, valeria a leitura somente pela riqueza imagética e linguística do texto de Lobo Antunes, que realiza com destreza estética a derrocada da saúde mental e o clamor não correspondido pelo pertencimento.


Ligações a esta post:
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Memória de elefante
António Lobo Antunes
Alfaguara, 2009
160 p.

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