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Ismael Nery. Baía de Guanabara, s.d. |
Quando Joaquim Manuel de Macedo se mudou de Itaboraí para o
Rio de Janeiro com o desejo de se tornar um escritor brasileiro, ele hesitava
em pensamento se poderia conquistar algum público com suas histórias. “Fui eu
que (talvez ainda com vaidade de pai) cheguei a crer que o público a não
enjeitava”, disse ele sobre a publicação de
A moreninha no prólogo de
O
moço loiro (1845), “e, sobretudo, que minha querida filha tinha achado
corações angélicos, que, dela se apiedando, com o talismã sagrado de sua
simpatia a levantaram mesmo muito acima do que ela merecer podia”.
Em 1844, o lançamento do romance alçou o prestígio social de
Macedo na capital do Império e estabeleceu o espaço da obra como um marco
inaugural no país. Dois anos antes, Teixeira e Souza havia publicado
O filho
do pescador, porém foi com o alcance popular, sobretudo mulheres, que
A
moreninha reinou na representação de “primeiro romance romântico
brasileiro” — isso sem considerar as várias narrativas publicadas em folhetim
desde o decênio de 30, que já esboçavam a tentativa do gênero por aqui.
Chamaríamos hoje, na importação de estrangeirismos e das publicidades digitais,
um “case de sucesso”: a força da obra entre o público burguês fluminense,
ligado a Corte, somado ao esforço do autor em construir carreira literária e ao
enredo sentimental definiu a influência dos primeiros anos da prosa de ficção e
ajudou a esboçar uma esperança para nossa independência literária.
A história do namoro de Augusto e Carolina tem ainda a
ingênua proeza de conquistar leitores pelas marcas perenes de seu formato
folhetinesco, especializado por Macedo, capítulo por capítulo, nos jornais da
época. As paixões em conquista, dilemas e intrigas no decorrer da trama, as
reviravoltas fáceis e personagens carismáticas. Tudo dentro do que hoje
encaramos com previsibilidade e à época era novidade.
A aposta indecente, título do primeiro capítulo, dá o
pontapé de leitura: em reunião de amigos, o estudante de medicina Augusto
discute com Fabrício, Leopoldo e Filipe as vicissitudes do amor romântico e os
caprichos que ele reserva, sendo a conquista de moças objetivo das teses
masculinas sobre o amor. O último convida-os para uma viagem de fim de semana a
uma ilha próxima ao Rio de Janeiro e, desafiando seus colegas a despertarem
interesse por uma “coleção de belos tipos” locais, acorda ainda uma promessa
com Augusto de escreverem uma história sobre paixões ou o desprezo de se
comprometer com uma por mais de três noites.
A história dentro de nós
Antes de chegar à ilha, Augusto recebe carta de Fabrício
sobre a tentativa falida de engatar namoro com uma moça que fez uma série de
exigências. Fica marcado no início do romance o desejo de ir além de reproduzir
as pieguices do sentimentalismo barato, e brincar com a caricatura dos poetas
ultrarromânticos em voga. Como uma bela abertura de filme, apresentando o
perfil das personagens por diálogos triviais, Macedo contrapõe visões
divergentes sobre o amor entrelaçando as visões espirituosas e herméticas dadas
pelos estudantes quase como se esse fosse um tema ideológico disputado por
correntes opostas. Falar sobre as moças e não se tornar suscetível a elas é o
que move as ações dos homens — talvez até aos atos hediondos — porque
corresponde apenas às convenções de como devem agir. Uma cartilha moldada ao
uso individual. Eis um trecho da tal carta:
“Tu sabes, Augusto, que, concordando com algumas tuas
opiniões a respeito do amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão
essencial ao estudante como o chapéu com que se cobre ou o livro em que se
estuda. Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a
um tempo; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no
mais: tu és ultrarromântico e eu ultraclássico.”
Já na ilha, o protagonista toma a palavra e decide contar a
D. Ana — avó de Felipe e Carolina; a anfitriã do feriado — a história de uma
paixão perdida na infância, responsável por seu único e breve juramento de amor
até então. À medida que o jovem narra sua lembrança, a própria D. Ana insere na
conversa uma lenda local sobre dois indígenas, típico mito de fundação, marcada
pela tragédia amorosa. É assim que Macedo articula o passado e o presente para
construir uma obra de interesse coletivo: funde uma experiência individual ao
gesto narrativo da personagem mais velha, sugerindo que os relacionamentos
amorosos ainda são a ordem do dia na sociedade, e dão independência à
existência local. Em seguida, Carolina retorna à cena recitando um poema de
jograis sobre as lágrimas da mulher nativa contada pela avó, reforçando também,
de forma cíclica, a ideia de que os martírios amorosos se perpetuam oralmente.
É notável como o autor prefere evocar imagens (seja por meio
de cartas, da narração oral, do mito ou do poema) para explorar as faculdades
internas da alma, sugerindo que a imaginação funciona como suporte ao amor, por
meio de passados habilmente integrados na narrativa principal e fora da
linearidade dos eventos no final de semana dos jovens.
Os estudantes, por sua vez, experimentam diversas
possibilidades amorosas a partir dessas “imagens que velam em seus
pensamentos”, antes mesmo de decidirem se vale a pena nutrir interesse por
alguma moça. Mais tarde, será o romance que devolve essa experiência ao leitor:
o percurso até o desfecho nos convida a habitar os espaços ficcionais como uma
leve prova de fogo — uma tentativa de enxergar, em preto no branco, o amor como
um encontro de almas gêmeas. O sentimento, antes tratado como discussão de
estudo sobre o sistema humano (não esqueçamos que falamos de médicos/ indivíduos
ligados a Faculdades), vai se tornando um exercício do dia a dia, uma prática a
qual vale a pena viver se desautomatizamos a seriedade dos hábitos.
“Enemies to lovers”
Retornando ao casal principal, é impossível não reparar que
após o primeiro encontro o desenvolvimento da relação entre os dois transita
entre a tensão do desejo e o ataque hostil do comportamento um do outro.
Augusto e Carolina agem como se estivessem em uma guerra dos sexos na qual cada
um levanta suas bandeiras e tenta desvelar as suas impotências. Se ele já
carrega o espírito de anti-herói por contraste aos poetas românticos, ela é a
defensora da igualdade de gênero na célebre passagem que marca sua convivência
com o pensamento de Mary Wollstonecraft.
Nossa protagonista é apresentada como um contraponto ao tipo
masculino, marcada por toques de doçura, acidez e agilidade no pensamento,
esforçando um perfil bem-humorado em equilibrar as modernidades da época nos
moldes dos relacionamentos burgueses. Essa composição justifica para o leitor o
traço de “os opostos se atraem”, que durante toda a viagem do fim de semana
pode torcer pelo casal enquanto se diverte com os conflitos entre eles. Aliás,
a irreverente descrição da jovem moreninha carrega certo arrojo singular para
aquele cenário literário pois distingue sua aparência e seus comportamentos,
como se a obra encarnasse a busca por uma protagonista romântica mais próxima
dos trópicos:
“Com efeito, Augusto, sem amar D. Carolina (ele assim o
pensa), já faz dela ideia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas
horas. Agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa,
mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é
o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior
graça; aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como
abelha, perderia metade de que vale, se não estivesse em contínua agitação.”
Macedo, então, passa a brincar com a própria estrutura
seriada e capitular do romance, seduzindo-nos com a dinâmica clássica dos
“enemies to lovers” — tão comum nas ficções folhetinescas e amplamente
consumida no Brasil por meio das narrativas populares das telenovelas. Ao longo
da trama, ele aproxima passo a passo os protagonistas enquanto estes duelam
verbal e emocionalmente.
No capítulo XVII, por exemplo, Augusto tenta disfarçar seu
estilo de “playboy” tentando iludir quatro moças após promessas amorosas,
tosquiando as revoltas delas. Logo no capítulo seguinte, Carolina o desmascara
em um encontro a sós, utilizando o mesmo método que ele empregava: ao escutar
os segredos que o mancebo confiara à avó, ela ironiza sua tentativa de sair por
cima e o expõe ao ridículo. Desta vez, fora o próprio rapaz quem saiu “tosquiado”.
Nessa antecipação de conflitos zigue-zague, o amor se torna
também aventura e entretenimento, e o brasileiro versado nas histórias de cravo
e rosa, flor e beija-flor — como se estivesse acompanhando uma comédia
novelesca de Walcyr Carrasco — vai encaixando os quadros de cada conflito do
casal, seguindo até o final da leitura em busca da emoção provocada por união
dos opostos. O amor faz o impossível e nem é tão feio assim.
Golpe branco
O final de
A moreninha talvez seja o ponto menos
empolgante esculpido por Macedo após alguns momentos de “barriga” para esticar
a narrativa. Ao adiar a declaração amorosa e separar o casal com o retorno de
Augusto ao Rio, o autor apressa o sentimento de separação — aquela “sofrência”
típica que sentimos após perdermos alguém de vista — e resolve o conflito por
meio de soluções fáceis e significações repentinas. Assim, se idealiza o
relacionamento e aproxima milagrosamente o final feliz sustentado pela fantasia
romântica.
Não chega a ser um golpe baixo, creio, porém revela o
alinhamento diplomático do romancista com a expectativa de seu público na Corte.
Como bem nos lembra Tania Serra em seu vigoroso
Joaquim Manuel de Macedo ou
os dois Macedos: a luneta mágica do Segundo Reinado (2004), naquele período
a ética narrativa da prosa estava constantemente fundamentada no caráter
econômico e social do período. Indo dos contrastes entre sociedades urbanas e
rurais e o início do troca-troca de políticas liberais e conservadores, a narrativa
zela pelos valores românticos deslizando nas benfeitorias que uma boa obra
poderia ter.
O romance surge quatro anos após a antecipação de Pedro II
ao trono, naquele episódio bem conspiratório que algumas classes do país adoram
e que pôs fim à regência. Na verdade,
A moreninha herda também esse
espírito de manipulação e é propriamente outro Golpe Branco: não há espaço para
violência ou tensões de maior grau para pressionar mudanças ativas no
comportamento das personagens. Tudo é muito sisudo e limpo evitando quaisquer
mudanças bruscas na sua composição ou estímulos imaginativos maiores.
Carolina e Augusto enfim se unem e afirmam compromisso menos
porque conversam entre si por suas diferenças, acordando-as, e mais porque o
autor destina a revelação de ser ela a menina do passado desencontrada dele. Ou
seja, o esperado beijo verdadeiro resulta não só na perda da aposta, mas também
em um encontro maior, na explicação cordial de uma união entre esses dois
brasileiros por um passado muito bem encaixado na narrativa. Depois de se
tornarem sonhos um do outro e sofrerem a doença do amor, os dois abrem caminho
para o instrumento da ficção a serviço do novíssimo país graças a reconstrução
de um passado perdido; de uma velha infância.
Já sei namorar
Os primórdios da nossa ficção em prosa são mais
eminentemente humanos do que costumamos pensar, pois ganham relevância pelo
sentimentalismo do jovem casal que declara sua prontidão para um futuro de
sonhos. Da mesma forma, caminhavam os leitores da época: envolvidos com esse
amor idealizado e pouco atentos aos demais dilemas sociais então em curso. Foi
com
A moreninha que Joaquim Manuel de Macedo ensinou o também jovem país
a namorar.
O movimento entre ser particular e universal — não ser de
ninguém e ser de todo mundo — da literatura nacional tem alguns esboços aqui
pela linguagem coloquial, na aproximação com fantasias dos cariocas e na
descrição idílica de nossos costumes. Mas talvez seja no descompromisso com a
análise austera e na procura pelo passatempo que esse romance possa nos chegar
hoje com outro brilho, sem aquela posição tão institucional que o colocaram.
Afinal, assim como Carolina e Augusto, a historiazinha só queria chutar a bola
e tentar ganhar outros jogadores.
Sem atingir a elegância esperada por alguns e já marcada
como fenômeno literário, a primeira publicação de Macedo representou sua
contribuição ao sonho do romance enquanto gênero valorizado ao longo do século.
Se me permitem a brincadeira, seu pior amigo foi seu melhor amor:
A moreninha
conquistou seu lugar no cenário literário, mas acabou, com o tempo, sendo
equivocadamente fixada como o símbolo único de uma carreira extensa e diversa.
De Macedo, então, o que se pode dizer por ora é que, a partir dali,
consolidou-se não apenas sua figura, mas também o esboço de uma longa
trajetória — e é sobre essa carreira que deveríamos voltar o olhar, sobretudo
para compreender as transformações literárias ao longo do Império e as outras
obras singulares publicada entre as décadas de 1850 e 1860 que ficaram no
padecimento.
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