Literatura pra quê?

Por Pedro Fernandes




Ao longo da história da arte e não diferente da tradição literária - do conjunto de textos escritos produzidos pela humanidade não para fins práticos (como manter registros, leis, fórmulas científicas, atas de sessões etc.) - tem sido perguntado quais valores e/ou funções práticas fundam esse campo. Comentemos acerca desse questionamento. Nossa fala se guia pela voz de Umberto Eco, "Sobre algumas funções da literatura".

Associada a esta indagação tem surgido uma linha do pensamento segundo o qual o texto literário se produz por amor de si mesmo, sendo sua leitura apenas para deleite, puro passatempo, uma ampliação dos conhecimentos fazendo dos leitores assíduos intelectuais - quando do caso dos leitores gerais, da prosa e da poesia -, ou puro e simples espaço de elevação espiritual - quando do caso dos leitores da poesia. A partir desta ainda há outra, oposta, segundo a qual a literatura comporta um caráter de interventora nalgumas linhas sociais. Isso não é mentira, mas também não pode ser lido como de um todo verdade. Penso que o objeto literário carrega em si certa materialidade que, apenas guiar-se por estas linhas simplórias de pensar não dá conta para a pergunta lançada. A literatura como bem imaterial não se presta apenas a um bem de consumo donde se extrai certo prazer ou torpor. Visões destas ou similares reduzem a literatura apenas a um jogo de passatempo, produto de consumo, quando bem sabemos que não é bem isso.

Antes de tudo, devemos compreender que a literatura comporta em si - inconscientemente por diversas vezes - um papel de formadora da língua e criadora de identidades. Reporto aos exemplos citados por Umberto Eco. Muito dos vocábulos novos quando introduzidos na língua advém e se consolidam apenas quando adotados no plano da escrita literária; ou o que seria da identidade do povo nordestino/sertanejo sem os romances da década de 1930.

A literatura não se preza a ser espaço de qualquer um ou de qualquer leitura. A exibição do corpo imaterial é de que se compõe a materialidade do texto; a mesma é também responsável pelo caráter literário. Mas as palavras ao serem usadas na composição gráfica desse objeto artístico não se resumem à expressão de idéias e/ou de pensamentos (fluxo de consciência), mas também o seu ocultar ou dissimular, fundando novos sentidos, novas realidades. Assim, deste modo não posso admitir que a literatura seja simples espaço do devaneio porque nela encerra certa obrigatoriedade que nos leva a compreendê-la como espaço dotado de intenções e são estas intenções que devem ser respeitadas nos diversos planos de leitura.

Ao se ler na literatura certo militarismo tem sido sempre atribuída à ela a visão duma expressão concretizada do real, de um real suscetível apenas aos olhos do escritor. Essa característica, no entanto, parece falsificar um pouco o real interesse da literatura e assim ser entendida como um território onde se assenta uma verdade ou realidade outra que por vezes se confunde com a realidade vivida. A mim me parece que o real interesse da literatura é a ausência de interesses. Não é uma preocupação da literatura fantasiar uma realidade nem tampouco fundar uma realidade "real", onde por exemplo, a Chapeuzinho Vermelho viva na pele as situações que preencham os espaços discursivos de sua época no intuito de reparar as falhas da realidade "real". Ou ainda, do mundo dos livros não posso ver um Sherlock Holmes, um Poirot, um Arsène Lupin ou uma Madame Bovary como imagens de carne e osso ambientadas em nossa ou noutra realidade, também como não posso lê-los como espectros ou almas de seres comuns. "O mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou é presa de suas próprias alucinações" (Umberto Eco). Ao enxergar o que se encontra por trás dessa proposição de Eco, associo outro pensamento, o do filósofo Giles Deleuze, segundo o qual a literatura trata de fabricar o real e não de responder a ele. Isto é, não se assenta o papel de símbolo, antes o de alegoria, de certo pictorismo da realidade vivida, tornando a realidade em algo inerente, próprio, fundada no e pelo texto.

Diante destas três perspectivas poderia ainda enumerar outras tantas, mas estas parecem suficientes para entender que a literatura é algo que sai de um mundo de fantasia - conseqüentemente da arte de entreter - para ancorar-se a um mundo real próprio, onde a relação com o real vivido torna-se ressignificada a ponto de desfazer-se numa realidade que não imita e nem se limita ao imitar, mas criar/criar-se como tal.

Por esta definição a literatura é algo que se desdobra sobre si mesma produzindo em seu interior uma realidade que lhe é inerente com a função de apresentar e não representar. Ainda devemos desprezar a simbologia como elemento transitório e determinante fechado do signo lingüístico; no território da literatura ao apreendermos a materialidade bruta do signo estamos dando prioridade a uma leitura que se compõe no silêncio e nos espaços vazio deixados pelo abandono do simbolismo. Assim, a literatura é em suma a pluralidade de sentidos, entendida como território de diversas vias que seguem seu próprio curso, quando fundam a língua, ou se cruzam, se entrecruzam, perpassam fronteiras. Por este âmbito a literatura é mais que objeto artístico do entreter ou do responder por causas nobres, é organismo, matéria vivente, onde as palavras são dispostas no curso do papel como forças do real, onde as palavras são objetos que num processo (a) simbiótico compõem os organismos textuais. O caráter de entreter, de devanear, de ler o real vivido não cabe única e exclusivamente como via de leitura porque sendo organismo a literatura tem a capacidade de atuar por sobre outros objetos no mundo, sendo corpo palpável, sentido, vivido.


* Este texto foi publicado sessão opinião do Jornal Correio da Tarde, de sexta-feira, 25 de julho de 2008. 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Ana Cristina Cesar por Caio Fernando Abreu

Oração para desaparecer, de Socorro Acioli

Um ditador na linha, de Ismail Kadaré

Cinzas de T. E. Hulme

A graça imortal de David Foster Wallace

O homem revoltado, de Albert Camus