A obra de José Saramago no cinema

Por Pedro Fernandes


Cena de Ensaio sobre a cegueira, a melhor adaptação de uma obra de José Saramago para o cinema.


Perfazendo um caminho pelas sendas do plano virtual motivado por quatro textos de José Saramago que até agora ganharam adaptação para as telas do cinema (A jangada de pedra, Ensaio sobre a cegueira, A maior flor do mundo e o recente O embargo), descubro o quanto o escritor português mantém uma relação sólida com outros meios artísticos. Sim, porque além das produções cinematográficas perdemos as contas sobre as adaptações de sua obra para o teatro, a dança, as artes plásticas e outras manifestações artísticas. 

Pensei esta página para ser além do registro desses primeiros filmes, um aberto repositório capaz de receber o que estiver ao meu alcance e enquanto este blog viver, isto é, poder acrescentar sempre as próximas adaptações e minhas impressões sobre elas. 

No final desta post, deixo um link para deixá-lo a parte dessas adaptações ou maneiras outras de se aproximar de uma literatura rica e indispensável no currículo de qualquer leitor. 

A jangada de pedra, de George Sluizer (2002): O título de destaque na carreira do cineasta foi O homem que queria saber, a adaptação do romance policial de Tim Krabbé sobre um homem que perde sua noiva numa viagem e, três anos depois, recebe o contato do raptor. Se deu certo com essa adaptação o mesmo não se pode dizer com a releitura do livro de Saramago; o diretor prende-se em transformar a obra num filme discreto e tentando seguir à risca o desenhado pelo romance. O resultado é, apesar de certo zelo com o texto original, um texto moroso que não consegue passar a tela a dimensão mágica da obra saramaguiana. De todo modo, foi a primeira adaptação de um texto de Saramago para o cinema; e, possivelmente, pelo fruto do resultado com Sluizer, o escritor sentiu-se impelido a que não o adaptasse mais para as telas, resistência que só será rompida quase dez mais tarde com a autorização para que Fernando Meirelles adaptasse Ensaio sobre a cegueira.

Todas as características peculiares do conto infantil de José Saramago são perfeitamente desenhadas nesse primoroso curta-metragem de Juan Pablo Echeverry.


A maior flor do mundo, de Juan Pablo Etcheverry (2007): Bem ao contrário, do filme de Sluizer, o cineasta soube desenhar e captar a dimensão desse conto escrito para crianças - o único do gênero na carreira literária de Saramago. No enredo, o próprio escritor transforma-se em personagem, como o escritor que conta a ideia que teve de um dia escrever uma história para crianças. A maior flor do mundo é como uma narrativa que foi inventada mas permanece irrealizada porque, no final, a personagem-escritor vê-se incapaz da escrita para os mais pequenos. Mas, é justamente sobre a impossibilidade de narrar completada pela possibilidade da figura desse menino de fazer algo que signifique para sua infância (este é já o plano do que seria inventado pelo narrador) que torna o texto numa obra singela pela sinceridade e marcada por um apelo moral dos mais necessários às crianças de um tempo já distanciadas do universo fabular dos contos clássicos. O curta-metragem feito com massa de modelar é o próprio texto de Saramago em movimento. E um detalhe especial da adaptação do espanhol foi preservar a figura do escritor que empresta a voz como um narrador em off. Um encanto! A peça já foi premiada em vários festivais ao redor do mundo.

Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles (2008): O filme nasceu de uma obsessão. O cineasta brasileiro, já premiado ao redor do mundo pela adaptação do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins e do romance O jardineiro fiel, de John Le Carré, depois de ler o livro de José Saramago decidiu prontamente que gostaria de vê-lo na grande tela. O projeto levado ao escritor teve o rumo contrário de outras tentativas já ensaiadas por diretores sobre outras obras suas; Saramago autorizou a adaptação e, como figura honesta sobre as limitações com o gênero, deixou Meirelles livre na leitura. O filme abriu o Festival de Cannes no ano de lançamento e arrancou elogios e lágrimas do português. Também pudera! A leitura é, de todas as já feitas para o cinema até então, a mais original. O diretor não apenas imergiu na obra, como, assim fez Juan Pablo Etcheverry, conseguiu expor toda força da narrativa em forma de imagem. Produção fotográfica e de som são duas características à parte e, por vezes, até a voz do narrador tão característica de Saramago, não deixa de dar forma à obra.

O embargo, de António Ferreira (2010): O conto que deu morte para o diretor português foi publicado em 1973 pela Estúdios Cor com o mesmo título do filme. Depois, Saramago incluiu o texto na única coletânea de contos até então editada, Objecto quase. Pautado no inusitado (um dia um homem sai para o trabalho e descobre-se que ficou grudado no banco do carro e não consegue mais sair da posição de motorista, quando, na cidade vive-se um embargo para a venda de combustível), a elaboração do roteiro para um longa, tal como se propôs o António Ferreira, exigiu do roteirista a inserção de uma série de outras situações que não estão no texto original. Ainda que o cuidado em deixar passar para o telespectador aquilo que está expresso no conto seja muito visível, a sensação que fica é a de uma história que não consegue manter o ritmo e se sustentar até o fim com o mesmo fôlego com que começa. Tal como A jangada de pedra o título deixa a desejar pela morosidade onde não devia existir morosidade. Ainda assim, é um texto que tomou para si um desafio: alongar-se para dizer o que Saramago disse (muito melhor) em poucas páginas e conseguiu conclui-lo.

Para transpor uma obra como a de José Saramago há que se ter, de tudo, sensibilidade. O filme de Denis Villeneuve despreza isso e se torna ao lado de outras produções somente uma leitura que não deu certo.


O homem duplicado, de Denis Villeneuve (2014): Apesar de ser o autor de filmes sempre elogiados pela crítica (Os suspeitos ou Incêndios), o diretor canadense erra na mão ao transpor para a tela o romance de Saramago. Claro, constrói um enredo muito elaborado, não se descuida de preservar o centro da obra, mas não convence o telespectador de que tenha, tal como conseguiu Juan Pablo Etcheverry e Fernando Meirelles, captado a essência do texto do escritor português. Um exemplo? A inserção do tema da teia, materializado na forma da aranha que se transmuta na perfil da mulher fatal. Essa constatação, aliás, abre-se como uma discrepância gigantesca entre a representação criada por Villeneuve e a criada por José Saramago sobre o feminino. O próprio escritor reiteradas vezes disse repudiar qualquer artifício utilizado para designar a mulher seja como condição superior ou inferior ao homem, seja como fenômeno. Numa escala entre os títulos já transpostos para o cinema, a produção do canadense ficaria logo depois da de Sluizer. Não alcança sequer o António Ferreira, porque o texto de Villeneuve precisou de acréscimos para um texto que já tem a medida a certa, aliás, é um romance, não um conto. E a impressão que fica é que apenas a dorsal da obra foi aproveitada num texto que se intitulou ingenuamente do mesmo título de José Saramago.

O ano da morte de Ricardo Reis, de João Botelho (2020): Quando o cineasta português decide filmar este que é um dos romances mais importantes da obra de José Saramago, já havia encarado outros desafios de igual altura com obras da literatura portuguesa. Entre os quais, é possível citar a adaptação do Livro do desassossego, de Bernardo Soares / Fernando Pessoa, A corte do norte, de Agustina Bessa-Luís ou Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. O resultado da leitura oferecida por Botelho é uma narrativa que consegue suavizar a densidade do romance de José Saramago, mas sem se fechar a ele e sem simplificá-lo, reduzi-lo ao piegas e ao vulgar, isto é, um filme que consegue encontrar uma equivalência no interior da sua linguagem para a linguagem romanesca. É de extrema riqueza o cuidado não apenas com a obra do escritor, acentuando os jogos intertextuais aí estabelecidos e que na narrativa visual se estabelece com vários discursos: os da literatura; os dos jornais; os da história, os da fotografia; e a metalinguagem. Visualmente, é um filme bem-cuidado. Chama atenção para a fotografia preto-e-branco e a organização estrutural da peça em quadros. A primeira escolha, por exemplo, cumpre sentidos de variada ordem: consegue sintetizar a cena para a consciência explorada, a de Ricardo Reis, ou para o embate dela consigo e com seu outro, Fernando Pessoa; fundamenta a atmosfera fantasmal dominante, o que é uma captura original da leitura de um romance; e permite experimentarmos, com o rigoroso inverno, o universo opressivo ou em fechamento vivido no contexto evocado. A sensibilidade e a habilidade de João Botelho colocam este trabalho a altura do romance. Pelas sutilezas simbólicas nos usos da imagem e pela densidade textual, incluindo o aspecto irônico, filosófico-especulativo e interrogativo dos diálogos, é um filme para contínuas visitas e em cada uma delas sempre sairemos com alguma nova possibilidade de leitura.  


Ligações a esta post:
>>> Leia mais sobre o filme de George Sluizer
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