As bruxas de Salém, de Nicholas Hytner

Por Pedro Fernandes



As bruxas de Salém (The crucible, no original) é uma peça de teatro escrita por Arthur Miller que ganhou adaptação para o teatro ainda em 1953. Depois de bastante elogiada pela encenação na Broadway,  a obra ganhou duas adaptações para o cinema: uma, na França, em 1957 por Jean-Paul Sartre; e outra, a mais famosa, feita pelo próprio Miller, que recebeu a indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, em 1996. Além do teatro e do cinema, o texto de Miller serviu ao compositor Robert Ward para uma ópera; pelo trabalho, Ward recebeu o Prêmio Pulitzer.

É um texto de forte incursão alegórica. Arthur Miller utiliza os acontecimentos históricos de 1692, na pequena vila de Salém, quando algumas meninas ficaram doentes e foram vítimas de alucinações e convulsões, evento que levou uma série de investigações e perseguições à mulheres pela Inquisição, como elemento para expor outro dado histórico, o dos acontecimentos durante a década de 1950 que ficou conhecido como Macartismo. O senador republicano do estado de Wisconsin, Joseph McCarthy, numa época em que os Estados Unidos viviam em pé de guerra com a União Soviética, deu pulso à criação do Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas cujo interesse era basicamente o de caçar comunistas tal como a caça às bruxas do século XVI. O próprio Miller foi um dos chamados a depor nesse comitê.

A transposição para o cinema em 1996 com Daniel Day-Lewis, Winona Ryder e Joan Allen entre os atores principais trouxe à tona mais o episódio base de construção do texto de Miller: a histeria em Salém que levou dezenove condenados à forca. Assim apresentado, o filme finda por tocar noutro tema de igual relevo para a composição da trama: a atuação sem limites, a qualquer preço, da Igreja durante o período da Inquisição.

É um filme movido pelos extremos: uma paixão tornada obsessão; uma ira tornada ódio; uma justiça tornada vingança. E, claro, aposta desde sempre na ideia que terá sustentado todos os grandes fatos dramáticos na história da humanidade: a verdade é a de cada um, mas prevalece a de quem tem o poder. Os dois episódios com os quais o texto tece diálogo e essa constatação da verdade como um jogo de poder expressam ainda do que a humanidade é capaz quando tomada por um sentimento coletivo de alienação. Nem precisava, a história, não apenas dos dois episódios sobre os quais Miller constrói sua obra, tem registros dos mais perigosos: basta citar o horror do nazismo e dos regimes ditatoriais. Medir-se pelos instintos é sempre perigoso tanto quanto pelo excesso da razão. Aliás, os dois extremos atuam em perfeito diálogo. No fim, essa talvez seja a lição maior que o expectador comum conseguirá elaborar a partir do filme. 

É preciso citar ainda o quão bem construído é o enredo para o cinema a título de, pouco a pouco, expor essas ideias sobre as quais buscaremos raciocínio muito depois de ver a película; ganha a fotografia que, mesmo proposta para marcar a atmosfera da época, integra os acontecimentos num espaço de atemporalidade, tal como sucede ao texto de Miller que, mesmo ligado por dois fatos históricos, é uma alegoria sobre os modos de atuação do poder numa sociedade fraca e incapaz de ver as coisas para além daquilo que é oferecido como pensamento pronto. E, claro, as atuações brilhantes dos envolvidos na materialização do texto. Prova essa constatação a indicação de Elizabeth Proctor (no papel de Joan Allen) para o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. 


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