Os muitos materiais misturados com precisão em “Nosso grão mais fino”

Por Alfredo Monte




“Não consultes dicionário”, nos diz Bentinho a respeito do significado do seu apelido, D. Casmurro. Hoje em dia sabemos: o relato do protagonista do clássico de Machado de Assis tornou-se tão suspeito que devemos fazer justamente o contrário do aconselhado.
 
A consulta de dicionários acaba sendo também uma consequência da leitura de José Luiz Passos (vou utilizar um chavão — perdoe-me, leitor, mas se trata da mais pura verdade: ele é uma das maiores revelações literárias dos últimos anos), não que ele tenha nada de preciosista do idioma: em Nosso grão mais fino, o protagonista é um químico, cuja família acabou perdendo as terras de que era proprietária, e nas quais se produzia açúcar. Entre outras “esquisitices”, por assim dizer, ele nos impinge um irmão imaginário (Zelino), com quem manteve intensa relação, para além da infância. Suas reminiscências são pontuadas, alternando-se com estranhos diálogos com Ana Corama, a amada, que amiúde parecem mais  recitativos, onde cada um está isolado em si mesmo.
 
Lemos: “Como um químico deve misturar seus muitos materiais?” Acompanharemos os desencontros entre Vicente e Ana, filha do antigo dono do engenho  (que teria se matado, atirando-se de um zepelim durante uma travessia do Atlântico), “tomado” pela família dele.  Ele e o tio materno, de idade muito próxima, Gaetano (que será o marido dela) transformam-se nos descendentes derradeiros das duas linhagens, os Campelo e os Dueire.  Também veremos o termo “maranha” muito utilizado. No Aurélio: “porção de fibras ou fios enredados; crespidão, grenha; coisa intrincada, emaranhamento, enredo, complicação, teia; intriga, embrulhada, confusão; conluio, pacto; astúcia, esperteza; manha, velhacaria”. O talentoso autor pernambucano não deixa suas palavras ao acaso: o leitor de Nosso grão mais fino encontrará tudo isso: um narrador autoproclamado “caviloso” (portanto useiro e vezeiro de manha, astúcia); todo o emaranhamento dessas vidas ligadas — atávica ou passionalmente; sequer falta a conotação ligada a cabelos, uma vez que, anos depois do seu caso de amor, Vicente e Ana encetam uma jornada a Santo Antão, a propriedade perdida, e o clímax é um ritual em que ele cortará os cabelos dela, ali mesmo, no carro, quando desistem de ir até o fim da empreitada nostálgico-purgativa.
 
Vicente especializa-se em zimotecnia. No relato está explicado: o estudo da fermentação. No verbete dedicado a este último vocábulo, encontramos: “Transformação química provocada por um fermento vivo ou por um princípio extraído de fermento; efervescência gasosa; efervescência moral, agitação, comoção, ebulição.” O que pensar da presença de Ana Corama, efervescendo e agitando esse clã gorado, o que pensar de um trecho como: “Hoje estou sozinho, sei. Zelino pode ser que não tenha existido da maneira como falo dele, mas tudo que volta pela comoção, retorna com a força dum segredo turbado…”? Como já disse, um dos segredos da magia narrativa de Nosso grão mais fino está na perícia da escolha de palavras com profundo  impacto conotativo e associativo (experimente, leitor, pesquisar os significados de “mascavo”, termo aparentemente óbvio e literal, numa trama que envolve o fabrico de açúcar).¹
 
Esse drama familiar portentoso (cujo cerne é, sobretudo, a questão da identidade pessoal), em sua concentração poética, apresenta tal fermentação, tal tensão em seu emaranhamento, que muitas vezes a sintaxe “normal” é quebrada (há várias inversões frasais, principalmente no desafiador começo do livro), as formulações roçam um lirismo desautomatizador da lógica da linguagem (“olho para ela e ela me ouve” ou ainda “Você tem nos olhos o mesmo baque de seu pai, Ana”); por isso, não é de surpreender que, na ebulição de todos esses ingredientes e fios enredados, a parte final do livro relate uma enchente destruidora em Recife (Vicente e Gaetano ali consomem os resquícios do patrimônio familiar e roem a solidão dos deixados para trás), a qual parece trazer tudo de roldão. De fato, contrariando uma afirmação de Ana Corama (admoestando Vicente, “seu contato com o mundo é por vapores”), “Deve-se amar sem metáforas”, ironicamente a catástrofe parece ser a corporificação literal de uma metáfora: uma vida de coisas submergidas, de afetos e fetiches afogados pelo Tempo.
 
O que vem à tona é a desnorteante qualidade desse romance de estreia.
 
Notas:
 
¹ Todas as considerações acima, e mais a figura de Ana Corama, me trouxeram à mente o universo do grande escritor Osman Lins, cujo estilo (por exemplo, o de Avalovara, seu livro mais ambicioso) algumas vezes foi taxado de afetado. Certamente, há um quê de quase pernóstico na voz narrativa (de Vicente) nas primeiras páginas, mas assim como em Osman, tudo — até a suposta afetação — é funcional e necessário ao mundo ali evocado. Muito diferente do preciosismo subliterário de uma Nélida Piñon, por exemplo, modelo acabado de estilo fake.
 

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