O rei se inclina e mata, de Herta Müller

Por Pedro Fernandes



Quando Herta Müller ganhou o Prêmio Nobel em 2009 até seu nome me era desconhecido, embora já circulasse no Brasil algumas traduções de livros seus. Resisti certo tempo em buscar a leitura de sua obra, por razões diversas, mas cito ao menos duas delas: o interesse pelas literaturas de expressão portuguesa, cuja formação acadêmica me exige, e o tempo escasso para permitir a entrada de outros nomes em meu cânone particular. Sobre esta última, basta ter uma dimensão do que é a literatura dos cinco países falantes do português para se dar conta que, ainda que eu tivesse todo o tempo do mundo, nunca irei contorná-lo. Mas, o encontro com obras da escritora romena nas várias idas às livrarias após sua premiação e a leitura de uma crítica qualquer, esparsa e vulgar, dessas que sai com frequência nos ditos cadernos de cultura que circulam no Brasil sempre me mantiveram um alerta de que há algo na obra de Herta que quase me obriga a ler alguma coisa dela.

Já por aqui o leitor encontra títulos como O compromisso, o primeiro romance traduzido, Tudo o que tenho levo comigo, O homem é um grande faisão no mundo, Depressões, Fera d’alma, Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio e agora pelo selo Biblioteca Azul, a Globo Livros edita O rei se inclina e mata. E há apenas um elemento que desencadeou a minha leitura dessa obra – a presença do nome do escritor português António Lobo Antunes, de quem a obra ao lado da de José Saramago tem sido para mim espaço de maior depuração crítica. À medida que adentrei nesse castelo de palavras cerzidas pela memória da própria escritora – este é um livro de alto teor biográfico – fui sendo provocado com a série de esforços para compreender a partir de meu contexto o lugar literário de Herta Müller. Até então apenas tinha ouvido com muita frequência sobre sua insistência temática acerca do estado de exceção, da qual foi vítima por pelo menos trinta anos.

Mesmo desconhecendo o conteúdo de títulos como os que foram citados acima, acredito que seja pouco provável que um livro de Herta trate com melhor propriedade que este O rei se inclina e mata – termos que ela própria trata de explicar no segundo texto cujo título é o mesmo da obra e cujo diálogo se confirma mais claramente quando somos confrontados com o desenho também da escritora base de ilustração para a capa da edição em questão. Os horrores da ditadura e do nazismo estão por toda parte; é mesmo um estado de obsessão de Herta: nos livros que ela lê, na sua própria obra, nas situações diversas que viveu, nos objetos que atravessam seu caminho. É este um livro que esclarece não somente muito da própria história da escritora, mas o que é viver numa redoma de ferro, onde, por toda a parte se sente e se vê a presença do ditador à moda e semelhança de um deus punidor e vingativo.

O rei se inclina e mata é a materialização de um trauma e um registro de alerta: há de se ter a certeza que, por pior que seja, um regime ditatorial é a mais perigosa forma de dominação do homem pelo homem. Herta percorre o trauma e o alerta nunca trilhando searas das quais ela não possa ter domínio. Como escritora, sua ferramenta de trabalho é a palavra e, ora é um escopo linguístico ora é um adendo à sua própria literatura que põe a limpo aquilo sobre o qual tem a falar: a infância, as lembranças da família (o pai beberrão, a mãe calada e sobrevivente de um campo de concentração, o avô exaurido de forças a entregar toda a produção para o Estado), as lembranças da escola (como aluna e como professora), a ida para a Alemanha, a perseguição constante dos inspetores, a perda dos amigos, as primeiras leituras, a publicação do primeiro livro, sua relação com a língua alemã, suas formas de silenciosamente não ceder suas convicções em nome da ditadura, o trabalho, a religião, sua relação com a morte, enfim, as várias faces do rei, “palavra macia” e, simultaneamente, dotada de um sentido cruel, o poder excessivo.

Há por toda parte uma leitura sobre o tempo – marcadamente o do campo e o do asfalto, termos que Herta utiliza para assinalar a infância no vilarejo de poucas mil pessoas e a cidade; igualmente há o medo e a resistência – os dois impetrados pelos usos da linguagem. No texto “A flor vermelha e a vara”, por exemplo, a demarcação da linguagem como signo de poder é bem visível. Quando assume a função de professora numa escola para crianças, isso depois de passar por várias empresas e sempre ser demitida com a justificativa de sujeito sem conduta de sociabilidade, Herta se depara brutalmente como o regime ditatorial sequestrava as pessoas já na infância. O medo excessivo dos pequenos para com as surras de varas e o treinamento deles para, diariamente, em fila, cantar as sete estrofes do hino romeno opõe-se ao desinteresse de uma professora que mal conhece o hino nacional e quer educá-los a fugir da rotina levando-os a reflexão sobre o que passa além das fronteiras da sala de aula e o que há música além do patriotismo. “Em cada língua estão fincados outros olhos” – nomeia assim, Herta, o primeiro texto; peço licença para dizer que em cada forma de uso da língua estão fincados outros olhos.

Nesse embate com a palavra há duas convicções desconstruídas pela escritora: a primeira, sobre a impossibilidade de que todas as coisas tenham seu corresponde linguístico – “Não é verdade que há palavras para tudo. Também não é verdade que sempre se pensa em palavras”; a outra, de que a língua é pátria, o que coloca um leitor de língua portuguesa, por exemplo, diante da frase já célebre de Fernando Pessoa, “Minha pátria é a língua portuguesa” – “Eu não gosto da palavra ‘pátria’”. Embora, a autora de O rei se inclina e mata concorde que aquilo que dispõem a vida dispõe a linguagem. “Quando na vida nada mais está em ordem, as palavras também despencam. Pois todas as ditaduras, seja de direita ou de esquerda, ateístas ou divinas, empregam a língua a seu serviço.”

Pelas visitas rápidas a outras obras da escritora, noto parecenças deste título com Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, outro livro de ensaios em que Herta Müller conta sobre sua infância, juventude, suas experiências no estado de excessiva vigilância e censura, fazendo das suas próprias ações e do modus vivendi do povo romeno o elemento principal de suas reflexões. Nesse processo de rememoração, percebo a necessidade que faz a escritora guiar-se por uma linguagem desprovida da sisura: ora tem valia certo tônus poético em detrimento da mera narração objetiva, ora tem valia uma ficcionalização propositalmente excessiva como se beirasse a um realismo mágico – termo que utilizo aqui devido a inviabilidade de outro melhor. Falar sobre si não é apenas dar voz aquilo que a longo tempo lhe foi silenciado, mas a aquilo que foi presenciado mas nunca ninguém terá tido o incômodo necessário para o registro, seja porque se resignaram, seja porque o trauma lhe castrou a linguagem. É uma tentativa de passar adiante este estranhamento sobre o qual a escritora se recusa ser única detentora, ainda que “Refletir, falar, escrever sejam e sempre serão um mero remediar, eles nunca conseguirão acertar o ocorrido, nem por aproximação. Quanto mais precisamente a memória guardou os detalhes, menos eu compreendo o que e como eu fui través do quê.” Mas, “Quando nunca se fala sobre si mesmo não se fala muito.”

É pertinente destacar ainda a relação da escritora com a leitura. A memória de um escritor não se compõe apenas dos fatos que viveu, dos livros que escreveu, mas também daquilo que leu. Hanna Krall, Alexandru Vona, António Lobo Antunes, Jorge Seprún são alguns dos nomes evocados neste conjunto de nove ensaios. “Como eu vim de ma casa sem um único livro, a leitura de livros era mais do que preocupante para eles, ‘anormal’, tudo o que é impresso é mentira, se dizia. E escrever livros era mais perigoso que uma doença.” Terá nascido da anormalidade da leitura a escrita, porque mais que uma forma de tornar presente o passado, a escrita é para Herta Müller e uma forma de resistência. “Os livros não podiam mudar nada, já que só mostravam como se fica quando a felicidade não é viável. E isso já é muito, nunca esperei mais de um livro.” Em tempos que se vê brotar por toda parte novos embriões do totalitarismo a leitura de obras como O rei se inclina e mata são essenciais; um gesto de resistir na trincheira que ainda estamos para deixar-se domar pelos ditames da opressão oficializada: “Lembro do tempo da ditadura como uma vida por um fio, na qual sabia cada vez melhor o que se pode dizer com palavras”.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

A vegetariana, de Han Kang

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore