Dia do mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Por Pedro Belo Clara



Sobre Sophia já tudo terá sido dito. Se não tudo, pelo menos quase. Mesmo que as múltiplas considerações de notáveis amigos, familiares ou meros admiradores da célebre autora não sejam suficientes, a obra falará por si – como seria de esperar. Nas palavras de José Agostinho Baptista, a própria definição de tudo, sonho e real, ou a simples manifestação léxica erigida em verso só aos poetas cabe em direito: «eles que digam tudo, quase tudo, eles que nos cerquem, que nos toquem». E Sophia sem dúvida que pertence a essa ínclita estirpe de poetas que ainda nos cercam e nos tocam com a mais suave subtileza de uma palavra depurada ou de um poema amanhecido.

Encerramos o mês que, como se sabe, marcou uma década desde o desaparecimento físico de Sophia com a sugestão de mais um livro de índole poética. No caso, Dia do Mar, um dos seus primeiros trabalhos, editado em 1947. A bem da verdade, a sugestão é meramente simbólica, já que em alguém tão versado em diversos temas e autor de obras tão esparsas, desde o conto ao ensaio, difícil será eleger um livro só que possa servir de montra aos demais. Importa, contudo, acrescentar que a presente edição é aquela que se tem por “definitiva”, apresentada pela editora Caminho nos primeiros anos do novo século. Isto porque, como será de adivinhar, a obra conheceu diversas modelações ao longo dos tempos. Esta edição assume, assim, a entrada de um novo capítulo, que encerra a obra, contendo alguns dos poemas que pertenceram à edição inicial do livro No tempo divido, de 1954. Em todo o caso, tal acrescento não diminui o carácter singular deste trabalho, tampouco lhe retira a unidade temática que tão fortemente se faz sentir durante um prolongado folhear de páginas.

Dividido em seis capítulos, Dia do Mar é um exemplo prefeito do estilo da primeira poesia de Sophia. Naturalmente, algumas das características que marcariam o seu traço futuro já aqui se faziam notar com a devida propriedade. Nomeadamente, o cariz social dos seus poemas, ainda que permanecesse algo diluído nestes tempos ditos iniciáticos.

Num país sem flores onde o mar não é mar
E enigma são os navios,
Eu não entendo o sentido das velas
Tenho fome e sede de horizontes frios.

(EXÍLIO)




Mas a sua principal virtude, sem dúvida que sobeje, é o carácter limpo de cada verso, a luminosidade das palavras e dos sentidos, a depuração de uma poesia que se vai apresentado com pontuação cada vez mais escassa. Neste seguro poetar de forte intenção visual, é deveras difícil não ceder aos encantos dos suaves feitiços que cada trabalho habilmente tece, seja através dos sedutores artifícios da rima ou da branda fluidez de um verso tão livre quanto a brisa que o inspira.

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
(MAR SONORO)

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que contava só para mim.
(As ondas quebravam uma a uma)


Como se poderá constatar pelos exemplos atrás expostos, a praia e o mar são os cenários eleitos e que povoam de um modo geral as lustrosas páginas deste livro, numa clara alusão à infância da autora e aos seus longos passeios e joviais brincadeiras na praia da Granja, em Vila Nova de Gaia (que, aliás, inspiraram muitos outros trabalhos seus, como o conto infantil A menina do mar). É, assim, envolta num ambiente ímpar, numa atmosfera tão singular quanto cativante, que a poesia discorre como as vagas da maré, permitindo o aflorar de belas metáforas, imagens e até mesmo de reflexões sobre a efemeridade do mundo e dos elementos, físicos ou não, que o compõem ou que nele podem ser experimentados: «(…) horas leves / Bailando na doçura / E na amargura / De serem perfeitas e de serem breves» - Dia de hoje. 

De igual modo, o cenário em causa é amiúde um palco de transcendentalismo, onde “tempo” e “lugar” são nomes que não cabem na imensa, eterna e alva vivência espiritual em que só a luz e o silêncio subsistem: «É esta a hora em que o tempo é abolido / E nem sequer conheço a minha face» (É esta a hora). Este claro abandono do material e consequente celebração do etéreo é um dos pontos mais brilhantes da poesia de Sophia e o que mais se aproxima dos ideais de unidade entre todos os seres e da própria cosmologia do espírito.

O presente trabalho também se assume como o prelúdio do amor de Sophia pelas temáticas de génese grega. Certos poemas chegam mesmo a adoptar uma clara celebração dos deuses, nomeadamente pela sua caracterização, algo que o belíssimo “Deus puro, Apolo Musageta” (o «sem espinhos e sem cruz»), ilustra na perfeição. Na verdade, existe um forte paralelismo entre a sua inclinação para o politeísmo grego e o neo-paganismo que outros poetas antes dela proclamaram (nomeadamente Pessoa, através de alguns dos seus heterónimos), ainda que, como bem sabemos, Sophia apenas expressasse uma profunda admiração pela cultura clássica grega – e não um dedicado culto aos deuses de outrora.

É a naturalidade destas divindades que as torna simples de adivinhar e, muito provavelmente, de serem alvo do amor e da admiração dos Homens, uma vez que têm a sua raiz no universo terrestre que a este é tão familiar. Sophia, como uma amante dos espaços abertos e da essência física do mundo, não tardou a compreender tal evidência:

Nasceram, como um fruto, da paisagem.
A brisa dos jardins, a luz do mar,
O branco das espumas e o luar
Extasiados estão na sua imagem.
(OS DEUSES)

Mas a par dessa admiração confessa, que traduz uma natural atracção pela implacável e magnífica verdade dos deuses, cresce igualmente a frustração pela efemeridade e imperfeição da humana condição a que Sophia está confinada: «Mas solitários somos e passamos, / Não são nossos os frutos nem as flores» (Bebido o luar). E esse carácter passageiro, aos Homens inexorável, é em parte o motivo que os impossibilita de serem «exactos e perfeitos como deuses». Ainda que Sophia, e pelos seus poemas tal depreendemos, fosse alguém que de sobremaneira dominou a subtil arte de passar pelas coisas sem deixar um rastro indelével, virtude que, impregnada de leveza, bem poderia ser pertença de algum deus esquecido, do tanto que se diluía na magnificência das paisagens circundantes.

Esta poesia de sentidos, com o enfoque dos substantivos a sobressair mais do que a introdução metafórica de outros elementos que poderiam corroer a autêntica experiência do real, resulta de uma perseguição exaustiva pela realidade mais concreta e pura. Sophia era, aliás, extremamente exigente com o trabalho que publicava. De ritmo brando e sempre muito bem marcado, estes poemas, pertencendo ao grupo dos primeiros, registam a forte presença dos quatro elementos e demais referências naturais como algo intrínseco à sua fímbria mais íntima. Ademais, um vocabulário claro e conciso auxilia a completar o sublime quadro final, plano donde se extraem as características mais depuradas e luminosas que atrás referimos. A poesia de Sophia, contudo, também se povoa de sombras, embora o exemplo deste livro em particular não seja o melhor a ilustrá-lo. Aqui, ao invés, impera um carácter evocativo que geralmente colora as obras de “fim de vida”, adensado por um intenso desejo de contacto e de vivência com o primordial, isto é, o efectivar de um retorno no tempo que significaria um notável avanço evolutivo, marcado pelo regresso do Homem à sua essência primeira: a Natureza.

Um dia, mortos, gasto, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais
(UM DIA)

Sophia despediu-se, mas permanecerá viva em todos nós, leitores que tanto a admiram. E o natural suceder dos anos apenas poderá fomentar um interesse cada vez maior no seu trabalho e na meditação sobre o mesmo. Mais do que ideias, foram-nos legadas inspirações e esperanças sob a mais perfeita forma que as palavras comportam. E porque as palavras são pertença dos poetas, que as semeiam, cultivam e colhem, com elas encerraremos esta publicação quinzenal hoje dedicada a um dos maiores nomes  de sempre – arrisco dizê-lo – do universo lusófono.

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
(QUANDO)

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


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